A
afirmação é feita no estudo inédito “Cartografia dos Catolicismos Jurídicos”,
ao qual a Agência Pública teve acesso com exclusividade. O levantamento é
realizado por um grupo de trabalho do Instituto de Estudos da Religião (ISER),
que observa a relevância da Igreja e de atores católicos na consolidação do
conservadorismo no Brasil.
Essas
instituições atuam nos tribunais, e para além deles, com articulações que
passam tanto pela atuação legislativa quanto pela incidência no Congresso
Nacional. A pesquisa também localizou conexões dessas redes que se estendem a
instâncias educacionais e parcerias com organizações sociais.
Um
exemplo prático é a atuação em pautas que propõem avanços para o aborto legal
no Brasil, como a ADPF 442, que discute a descriminalização da interrupção
voluntária até o terceiro mês de gestação. Sete dos centros citados no
levantamento do ISER peticionaram ingresso como amicus curiae (amigo da Corte)
na ADPF 442.A União dos Juristas Católicos de São Paulo (UJUCASP) e Ives Gandra
conseguiram ingressar.
O
julgamento da ADPF 442 pode ser retomado em breve no STF, caso a ministra Rosa
Weber decidir incluir a pauta antes de deixar o cargo, em outubro. No fim de
agosto, 20 entidades cristãs, entre elas centros jurídicos católicos, como o
IBDR; o Instituto Ives Gandra; a União dos Juristas Católicos da Arquidiocese
de Goiânia; assinaram conjuntamente uma carta aberta ao STF, com pedido de
providências ao Congresso Nacional, onde dizem ser “cientificamente comprovado
que a vida se inicia no momento da fecundação.” O documento ainda diz que “o
STF entrar no mérito da ADPF significaria, para a Suprema Corte, assumir a
posição de legislador, a fim de descriminalizar um ato contra o maior bem de
todos que é a vida, claramente protegida pela Constituição Federal”.
Em
2022, quando uma menina de 11 anos em Santa Catarina enfrentou entraves
jurídicos para a realização de um aborto legal, após sofrer violência sexual,
sete entidades católicas citadas na pesquisa do ISER assinaram juntas uma nota
na qual criticam a “pressão midiática” que deu visibilidade ao caso.
Este
ano, quatro uniões católicas voltaram a se reunir para a publicação de uma
“nota conjunta em defesa da vida”, na qual repudiam “recentes iniciativas do
Governo Federal, por meio do Ministério da Saúde, quanto à flexibilização do
aborto”. O documento refere-se à desvinculação do Estado Brasileiro da
declaração do Consenso de Genebra, um documento assinado por vários países,
promovido no governo Trump, e que é contrário ao aborto. O Brasil fez parte da
iniciativa no governo Bolsonaro.
Segundo
as pesquisadoras Ana Carolina Marsicano e Tabata Tesser, do ISER, as entidades
jurídicas católicas mapeadas agem em grupo contra o avanço de uma agenda de
direitos, oferecendo assessoramento e dialogando com atores do campo político.
“Elas também participam de instâncias de poder”, diz Ana Carolina Marsicano.
“As organizações mapeadas têm como membros juízes, advogados, integrantes do
Ministério Público e políticos”, completa.
Um
exemplo dessa participação é a União Brasileira dos Juristas Católicos
(UBRAJUC), liderada pela deputada federal e presidente da Frente Parlamentar
Mista Contra o Aborto na Câmara, Chris Tonietto (PL-RJ), uma das principais
ativistas antiaborto do Congresso Nacional e autora da PL 434/21, um dos
projetos que busca a aprovação do Estatuto do Nascituro.
Chris
Tonietto é advogada e uma das principais lideranças antiaborto no Congresso.
Ela apresentou ao menos nove projetos de lei sobre o tema entre 2019 e 2020,
seus primeiros anos de mandato, segundo levantamento do Cfêmea. Ela é também
uma das fundadoras do grupo católico ultraconservador Centro Dom Bosco (CDB),
que conseguiu censurar o especial de Natal do grupo de comédia Porta dos
Fundos, em 2019, que representava Jesus como homossexual. O programa foi
exibido no Netflix.
No
dia 10 de agosto, um seminário na Câmara dos Deputados, organizado pela
deputada conservadora católica, que também é advogada e presidente da União de
Juristas Católicos do Brasil, discutiu a ADPF 442. O título do encontro foi
“competência do Legislativo e ativismo judiciário”. Entre os expositores estava
o jurista Ives Gandra, um dos membros da Opus Dei, entidade católica
ultraconservadora.
Gandra
é um dos principais atores do conservadorismo no meio jurídico brasileiro. Ele
também é membro da União dos Juristas Católicos de São Paulo (UJUCASP), que tem
em seu estatuto a “defesa da vida desde a concepção” e o estudo do “direito
natural”. A filha dele, a jurista Angela Gandra e ex-secretária Nacional da
Família do governo Bolsonaro, também estava entre os expositores.
Ativismo antiaborto
Em manifestações de rua como as Marchas Pela Vida, articuladas pelo Movimento
Brasil Sem Aborto, do qual a ex-ministra do governo Bolsonaro, a senadora
Damares Alves (Republicanos) foi uma das lideranças, a presença e engajamento
dos principais atores antiaborto do Brasil frequntemente envolve católicos e
evangélicos.
Angela
Gandra participou da Marcha Pela Vida enquanto era secretária Nacional da
Família do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Desde 2019, a
UJUCASP realiza o congresso nacional de juristas católicos, que está na
terceira edição. Com uma mesa de palestrantes que discute, além do aborto,
assuntos como “ideologia de gênero” e ensino religioso nas escolas, alguns
nomes são recorrentes: o jurista Ives Gandra Martins, ao lado dos dois filhos,
Angela Gandra e Ives Gandra Filho.
A
família Gandra, de São Paulo, é uma das mais atuantes no campo jurídico
conservador. Além de fundador do IBDR e da UJUCASP, Gandra Filho é ministro do
Tribunal Superior do Trabalho. Em 2020, ele chegou a ser apontado como um dos
favoritos à indicação de Jair Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal.
Já
Angela Gandra, que atualmente integra a Federação da Agricultura e Pecuária do
Estado de São Paulo (Faesp) ao mesmo tempo em que pertence à Comissão de
Bioética da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Durante sua participação
no governo Federal, Angela Gandra formou, junto com Damares, a principal
interlocução antiaborto no Executivo.
Em
2020, Angela Gandra viajou à Polônia, durante um momento crítico da pandemia de
Covid-19, a convite de uma instituição conservadora local, a Ordo Iuris. O
objetivo era palestrar contra o aborto e representar o Brasil no momento em que
o país europeu aumentava restrições ao aborto legal. Dois anos depois,
participou da decisão que endureceu a legislação sobre aborto nos Estados
Unidos ao ingressar como um dos amicus curiae consultados pela Suprema Corte.
Outros
quatro nomes que participaram do governo Bolsonaro também são membros ativos do
Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR) de Ives Gandra: Marcel Edvar
Simões, que coordenou um Grupo de Trabalho dentro do então Ministério da
Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), liderado por Damares Alves; Natamy
Bossoni, que foi coordenadora-geral em educação e Direitos Humanos; Cândido
Barreto Neto, coordenador-geral de Combate ao Trabalho Escravo e Warton de
Oliveira, empossado como secretário executivo do Conselho Nacional dos Direitos
da Criança e do Adolescente (Conanda).
Apesar
da forte ação católica, pauta do antiaborto é uma das agendas que protagonizam
união entre católicos e evangélicos conservadores na política. Dessa
articulação, surgem entidades como o Associação de Direito da Família e
Sucessões (ADFAS), da qual participaram nomes comuns na educação e na mídia,
como a jurista católica Regina Beatriz Tavares da Silva, que também compõe a
Diretoria de Relações Institucionais da União dos Juristas Católicos de São
Paulo.
As
entidades e pessoas citadas na reportagem não responderam os questionamentos da
reportagem até a publicação. As pesquisadoras do ISER pretendem disponibilizar
o mapeamento de entidades e atores jurídicos católicos conservadores
brasileiros em uma plataforma aberta, como segunda etapa da pesquisa. Elas
também pretendem aprofundar o mapeamento dentro dos próprios processos
judiciais que se encaixam “em uma estratégia internacional de
transnacionalidade deste associativismo jurídico”.
(Fonte: JB)
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