Passadas
algumas décadas, porém, a prática mostrou que o uso dessas medicações, das
quais o Rivotril é a marca comercial mais famosa, requer alguns cuidados
básicos.
O
principal deles está em limitar o consumo desses comprimidos a períodos mais
curtos, de poucos dias, ou apenas em situações de emergência, segundo
especialistas.
“Em suma,
os benzodiazepínicos não são nem venenos, nem panaceias universais”, resume o
psiquiatra Márcio Bernik, coordenador do Programa de Transtornos de Ansiedade
do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo (IPq-FMUSP).
A atenção
extra na hora de prescrever e orientar o uso adequado desses remédios tem a ver
com o risco de abuso, tolerância e dependência, apontam os entrevistados.
Se
Rivotril e outros remédios do grupo são tomados de forma contínua, por várias
semanas, meses ou até anos, o paciente precisará de doses cada vez maiores para
obter o mesmo efeito — além de criar um perigoso vínculo emocional entre a
melhora dos sintomas e a necessidade de se medicar com frequência.
Procurada
pela reportagem, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informou
que mais de 65 milhões de unidades de clonazepam (Rivotril) foram vendidas no
Brasil em 2022.
A seguir,
você entende como essas substâncias agem no corpo e produzem uma sensação de
calmaria — e quais são as situações em que elas realmente estão indicadas,
segundo especialistas e bula do medicamento.
Bernik
lembra que, ao longo da História, a humanidade sempre buscou e usou substâncias
com efeito sedativo.
“Desde o
tempo de xamãs e curandeiros, as pessoas têm uma demanda por produtos que
aliviam a dor, auxiliem na interação social, facilitem o sono ou aplaquem a
ansiedade.”
Durante
boa parte dos séculos 19 e 20, os principais ansiolíticos disponíveis eram os
barbitúricos — o antigo gardenal talvez seja o representante mais conhecido
dessa classe.
“Esses
medicamentos eram consumidos em excesso, mesmo numa época em que já se sabia
que eles estavam relacionados a envenenamento e alto risco de morte”, lembra o
psiquiatra.
Uma das
vítimas do abuso de barbitúricos foi a atriz e modelo americana Marilyn Monroe (1926-1962).
O
desenvolvimento e a popularização dos benzodiazepínicos a partir dos anos 1960,
então, representou um grande alívio. “O principal aspecto positivo desses
remédios é a segurança, ainda mais quando os resultados deles são comparados
aos barbitúricos”, diz Bernik.
Mas como
essa classe de ansiolíticos funciona? O farmacêutico André Bacchi, professor da
Universidade Federal de Rondonópolis, no Mato Grosso, explica que os neurônios
funcionam por meio de impulsos elétricos — e é justamente na brecha entre uma
célula nervosa e outra que esses fármacos agem.
“Nesse
espaço entre os neurônios, conhecido como fenda sináptica, os sinais elétricos
são transformados em sinais químicos, mediados por neurotransmissores”, aponta
ele.
De forma
geral, essas substâncias produzidas pelo organismo têm dois efeitos principais:
algumas geram excitação e estímulo, enquanto outras funcionam como inibidores e
redutores da atividade cerebral.
Vamos
focar na parte inibitória desse sistema, pois é aqui que os benzodiazepínicos
atuam.
O
principal neurotransmissor responsável por “frear” o sistema nervoso é o ácido
gama-aminobutírico, ou Gaba na sigla em inglês.
“O Gaba se
liga a receptores dos neurônios, que funcionam como um portão na membrana
celular. Essa conexão permite a entrada de íons de cloro, que têm carga
elétrica negativa e vão diminuir a atividade da célula”, detalha Bacchi.
Mas o que
Rivotril e companhia têm a ver com esse sistema? Quando uma pessoa está numa
crise de ansiedade ou de epilepsia, por exemplo, o sistema nervoso está
excitado além da conta — é por isso que surgem sintomas como o nervosismo
exacerbado, a crise emocional ou até o descontrole dos músculos (no caso de uma
convulsão).
“Os
benzodiazepínicos se ligam nas células nervosas e aumentam a afinidade dos
receptores pelo Gaba”, aponta o farmacêutico.
Com isso,
a ação inibitória desse neurotransmissor é reforçada — e o sistema nervoso
tende a entrar nos eixos novamente.
Outra coisa
que chama a atenção nessa classe farmacêutica é a rapidez. Os efeitos sedativos
podem ser sentidos poucos minutos depois que o comprimido é ingerido (ou
colocado debaixo da língua).
Ação
generalizada
Bernik
destaca que o sistema Gaba responde por 40% de todos os neurônios do cérebro.
Na prática, isso significa que a ação dos benzodiazepínicos acontece
praticamente em todos os cantos da massa cinzenta.
“Isso leva
a uma miríade de efeitos, que vão dos esperados aos indesejados”, aponta o
psiquiatra.
Ou seja, a
pessoa se sente mais calma, mas também vai ter sono, reage menos aos estímulos
externos, fica com os músculos muito relaxados, perde uma parte da memória
daquele período… Afinal, falamos de remédios com um efeito sedativo de amplo
espectro.
E isso já
demanda um cuidado: como descrito em bula, benzodiazepínicos lentificam as
reações, então o paciente não deve dirigir ou operar máquinas pesadas durante o
tratamento.
O álcool
também é contraindicado, pois as bebidas podem intensificar o efeito sedativo —
sob risco até de parada cardiovascular ou respiratória, coma e morte.
Outro
alerta relacionado aos remédios desta classe tem a ver com o risco de
tolerância e dependência. “O uso contínuo dos benzodiazepínicos leva à perda do
efeito terapêutico. Com isso, é necessário aumentar a dose necessária com
relativa rapidez”, diz Bacchi.
De acordo
com o farmacêutico, é possível notar sintomas de abstinência em paciente que
utiliza Rivotril e outros medicamentos do grupo por mais de quatro semanas
consecutivas.
“Trata-se
de uma questão química do cérebro. Quando tomado de forma constante, o remédio
gera uma espécie de deformação nos receptores dos neurônios, que ficam menos
sensíveis à ação dele”, detalha Bernik.
Ponderações
feitas, quais são as situações em que os benzodiazepínicos podem ser usados com
eficácia e segurança?
Casos de
emergência
Na bula do
clonazepam, não há menção específica ao tempo limite de uso. Para cada doença
(como crises epilépticas, espasmos infantis, transtornos de ansiedade e de
humor, síndromes psicóticas, entre outros), há uma indicação específica, e os
fabricantes dizem que o uso contínuo, ou a prescrição de uma "dose de
manutenção" depende do "critério médico".
Bernik diz
que essa classe de sedativos não aparece mais como a linha inicial de cuidados
contra diversas doenças psiquiátricas.
“O
principal erro é prescrevê-lo como tratamento único ou como a primeira opção
terapêutica”, diz o médico.
“Para as
fobias, é preciso testar a terapia cognitivo comportamental antes. Para o
transtorno de pânico, dá para tentar um antidepressivo em baixa dose mais a
psicoterapia. Mesmo para a ansiedade, é possível recorrer aos antidepressivos
de baixa dosagem”, exemplifica ele.
O
psiquiatra aponta que, neste contexto, os benzodiazepínicos trazem um alívio
inicial e momentâneo. “Eles podem ajudar no período de duas a três semanas em
que os antidepressivos demoram para começar a fazer efeito.”
“Mas o
paciente precisa entender que, depois disso, esse medicamento será retirado”,
pontua Bernik.
O
psiquiatra relata ter atendido vários pacientes que consomem esses comprimidos
há anos e nunca receberam a orientação adequada de quando e como abandoná-los.
“Certa
vez, uma paciente me contou que tomava diazepam porque teve uma discussão muito
pesada com o marido, e logo depois eles se separaram. Daí ela foi a um posto de
saúde e recebeu a prescrição desse medicamento”, relata.
“Só que
isso aconteceu em 1968 e ela continuou a tomar o remédio por décadas.”
Em casos
como o dessa paciente, porém, não é indicado fazer a retirada repentina da
medicação, segundo os especialistas.
O ideal é
buscar um médico para prescrever uma espécie de “desmame”, em que as doses são
diminuídas aos poucos, ao longo do tempo, para que os sintomas de abstinência
não sejam tão bruscos.
Bacchi reforça
a ideia de que os benzodiazepínicos são um recurso de emergência.
“Falamos
aqui de medicamentos para uso pontual. Eles não tratam o transtorno em si,
apenas aliviam os sintomas de uma crise”, diferencia ele.
“Agora, se
as crises acontecem o tempo todo e você precisa recorrer às drogas de
emergência todos os dias, há algo de errado e é necessário buscar uma avaliação
de um especialista”, pondera Bernik.
O que
dizem as farmacêuticas
A BBC News
Brasil procurou as farmacêuticas responsáveis pelas marcas citadas ao longo da
reportagem para perguntar sobre as ações do medicamento, indicações de uso e
efeitos colaterais.
Em nota, a
Roche disse que o Rivotril, que foi desenvolvido pela farmacêutica, é “indicado
para tratar crises epilépticas, espasmos infantis (síndrome de West),
transtornos de ansiedade e de humor, síndromes psicóticas, das pernas
inquietas, do equilíbrio e da boca ardente e vertigem, conforme previsto em
bula”.
Em janeiro
de 2021, a empresa “iniciou o processo de transferência dos direitos
relacionados ao clonazepam (Rivotril) globalmente”. Segundo a famarcêutica, no
Brasil, esta ação foi concluída em julho do mesmo ano, com a transferência
realizada para a empresa Blanver Farmoquímica e Farmacêutica S.A.
“Em tempo,
esclarecemos que, devido à validade dos últimos lotes do medicamento produzidos
pela Roche, é possível encontrar unidades remanescentes de clonazepam com a
embalagem da farmacêutica suíça em alguns pontos de venda”, conclui o texto.
Até a
publicação desta reportagem, a Blanver não havia respondido os contatos feitos
pelo site oficial da empresa.
Bernik
lembra que o tratamento da ansiedade, da depressão e de outras condições
psiquiátricas ainda é muito afetado pela forma como esses quadros — e os
tratamentos para amenizá-los — são estigmatizados.
“A
sociedade precisa aceitar de uma vez por todas que as doenças mentais são
reais. Não se trata de 'mimimi' ou frescura”, diz ele.
“O
estresse psicossocial tem um efeito na saúde e precisamos encontrar formas de
lidar com isso”, conclui o especialista.
(BBC)
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