A obra resulta de tese de doutorado produzida na Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp) e aborda pontos de relevo da vida nacional
ao longo de mais de 15 anos da chamada Nova República, período que sucedeu a
ditadura militar. O livro mostra como e por quais meandros o Supremo passou a
figurar em destaque no cotidiano político do país até se tornar destino
frequente das investidas de grupos extremistas.
A análise da autora se fixa no recorte temporal que
vai especificamente de 1988 a 2004. Tais marcos representam, respectivamente, a
data de promulgação da Constituição Federal e a reforma do Judiciário, esta
última instituída por uma emenda constitucional que inaugurou diversas mudanças
na organização da Justiça brasileira e buscou imprimir maior agilidade
aos trabalhos. Mas a obra lança luz ainda sobre outros acontecimentos
posteriores que ajudaram a atrair os
holofotes e fazer do Supremo o ator político que ele é hoje,
esse sujeito ativo e midiático no plano nacional.
Ao mostrar a gênese desse processo, a pesquisadora
pontua que, muito antes da consolidação da era digital, o Supremo
já se comunicava, ainda que de forma mais tímida, como é o caso do que
ocorria nas décadas de 1980 e 1990. O que muda ao longo do tempo, segundo ela,
é o tom e a intensidade da atuação da Corte nessa frente. “Desde a Constituinte
[em 1987] já se tem material na literatura da área que mostra que os ministros
do Supremo iam para as sessões da Constituinte para ver [os trabalhos] e para
serem vistos. Eles mandavam recado, etc., mas isso não tinha uma expressão tão
volumosa como tem hoje. Era uma coisa mais de bastidor, para quem cobria mais
de perto [o Judiciário].”
Em um apanhado histórico, o livro mostra que, nos
anos 1990, o Supremo atuava dentro de uma dinâmica de comunicação mais
clássica, enviando releases [textos informativos de caráter institucional] às
redações de jornal por meio do trabalho da assessoria de imprensa da
instituição, criada em 1995. Foi no mesmo ano que a Corte institui ainda o
chamado “comitê de imprensa”, espaço destinado ao trabalho dos repórteres
correspondentes que acompanham a rotina do tribunal para, a partir disso,
produzirem notícias sobre o Judiciário.
A pesquisadora vê esse processo como um ponto
importante para ajudar a entender a crescente aparição de personagens do
Supremo no imaginário coletivo e midiático do país. Isso porque o salto que
levou a Corte a se manter atuante na agenda pública foi precedido por um
movimento institucional caracterizado pela tentativa de ocupar o noticiário
nacional. “Naquele momento da década de 1990, havia uma comunicação mais
tradicional e mais voltada aos jornalistas, mas foi um processo de abertura. O
Supremo foi profissionalizando a sua comunicação nesse período, com ampliação
da assessoria, e houve um consequente aumento da cobertura jornalística [sobre
a Corte]”, destaca.
Anos 2000
O livro aponta que a expertise do Supremo no
ambiente da comunicação foi se desenvolvendo no curso do tempo. Os anos
2000 inauguraram uma outra tônica no comportamento da Corte. “Era um contexto
de cobrança sobre o Judiciário em relação ao ‘accountability’ [prestação de
contas]. Isso era no Brasil e em outros países da América Latina. O Banco
Mundial tinha alguns documentos e relatórios que falavam justamente sobre isso,
sobre a necessidade de transparência, porque havia interesse em se ter uma
previsibilidade do sistema, inclusive do ponto de vista do financiamento, etc.,
para que houvesse mais clareza nas decisões judiciais, também por conta do
impacto na economia.”
A pesquisa convertida em livro mostra também que o
motivo não era só esse. “Havia uma questão interna de que o Judiciário
pudesse se mostrar, e se mostrar do ponto de vista também de um controle
social. Para você ter ideia, a primeira pesquisa mais empírica com dados sobre
o Judiciário brasileiro é de 2003, em pleno momento de antessala da reforma do
Judiciário. Antes disso, a pesquisa que a gente vai ter com um desenho semelhante
é dos anos 70. Então, nos anos 90 não se sabia quantos juízes e servidores
tinham no Brasil, por exemplo. Você não tinha dados que hoje a gente tem
anualmente pelo ‘Justiça em números’ [banco de estatísticas oficiais do Poder
Judiciário]”, ressalta Grazielle Albuquerque.
Foi ainda na esteira dos anos 2000 que foram inauguradas a TV Justiça e a Rádio Justiça, ambas voltadas à divulgação de ações e agendas institucionais para o grande público. Os veículos serviram de janela para uma maior difusão do trabalho do Supremo e, consequentemente, para uma presença crescente da Corte no noticiário. “São instrumentos que a gente chama de ‘mídia das fontes’, que pulam os jornalistas, digamos assim, e chegam diretamente com o cidadão, na ponta. Eu cito esses exemplos para mostrar que essa explosão da comunicação que a gente vê hoje [em torno do Supremo] tem uma origem e vem numa crescente. Não é algo que nasceu do dia pra noite”, afirma Grazielle.
Foi também nos anos 2000 que o escândalo do
mensalão e a operação Lava Jato
saltaram para o noticiário, atraindo as atenções nacionais, e
ajudaram a orientar ainda mais o farol midiático para o papel e o
trabalho do Supremo. “Com certeza mensalão e Lava Jato foram momentos de
explosão [da exposição]. A gente vê aí um olhar sobre o Judiciário que começa a
sair de uma cobertura especializada e toma as ruas. A Lava Jato mobilizou as
ruas e o mensalão foi uma antessala disso. Ali as pessoas estavam discutindo a
questão do ‘juiz herói’ [sobre Sérgio Moro], do Batman [analogia feita com o relator
do caso do mensalão no STF, Joaquim Barbosa]. Foi ali que a
população em geral começou a saber o nome dos ministros, por exemplo”, resgata
Grazielle.
Ela lembra ainda que todo esse processo ocorreu
perto do movimento que pariu a conhecida frase “o gigante acordou”, relacionada
à eclosão dos protestos que pipocaram nas ruas do país – e principalmente
de Brasília – em 2013. “O Brasil foi vivendo um processo de ebulição social
muito grande, principalmente a partir dessa década de 2010”, recorda a
pesquisadora, lembrando ainda que tais capítulos precederam o contexto que
gerou o impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT), em 2016, e reforçaram a
presença permanente do Supremo e de seus ministros nos veículos de mídia
tradicional e na também nas redes sociais.
Audiência
No passado, o tribunal era menos conhecido e
acompanhado não só pela população, mas também pelos próprios personagens do
mundo político em geral. O livro mostra que a cobertura jornalística das
atividades do Supremo e a consequente audiência dada à instituição por parte de
quem joga nesse tabuleiro da política foram se ampliando conforme foi se expandindo também
o poder da Corte.
“Esse aumento se deu depois da Constituição de
1988. Ela é um marco em si, mas, após a Constituição, uma série de mudanças
legislativas deu mais poder o STF. A Emenda Constitucional nº 3, que regula a
ação declaratória de constitucionalidade (ADC), é um exemplo disso. E a gente
tem vários outros exemplos, como a própria reforma do Judiciário [em 2004],
como a criação das ‘súmulas vinculantes’, que faz com o Supremo possa hoje
deliberar quando uma prefeitura descumpre algo que está referendado numa
súmula. Se antes era preciso ir inicialmente para a primeira instância, hoje se
pode reclamar diretamente ao STF”, ilustra a pesquisadora.
“Ao longo dos anos 80, 90, 2000 e até agora, o STF
foi angariando poder político. Essa atenção em torno dele tem uma relação muito
estreita com o incremento de poder político do tribunal. É por isso que estamos
vendo essa crescente, e a política é que dá o tom da cobertura jornalística,
como a gente sabe. A política é muito importante porque ela mobiliza as
atenções”, continua a autora.
8 de janeiro
O resgate de fatos marcantes da linha do tempo da
política nacional e da jornada recente do Supremo contribui não só para o
entendimento da emergência do STF como um ator político de destaque, mas também
para a interpretação do que significaram as invasões ocorridas no fatídico 8 de
janeiro. Para Grazielle Albuquerque, não é por acaso que a Corte se tornou o
principal alvo dos vândalos que destruíram os prédios dos três Poderes – na
ocasião, a sede do Supremo foi a mais depredada pelos extremistas de
direita que apoiam o ex-presidente Jair
Bolsonaro (PL).
“Acho que uma das coisas que ajudam a explicar isso
é o que ocorreu na quadra anterior, quando se viu um grande antagonismo entre o
Executivo e o Judiciário, com aquelas declarações do Bolsonaro contestando o
STF de maneira muito enfática, o que também foi personalizado na figura do
Alexandre de Moraes – e dali surgiu o personagem do ‘Xandão’. Há críticas ao
STF em diversos setores da população, mas invadir e destruir um prédio, um
patrimônio público é algo que vem de um grupo bem definido. E esse grupo não
surgiu da noite pro dia. Ele foi fermentado no período anterior. Depois as
coisas explodiram.”
Para a pesquisadora, para além dos problemas da extrema direita em si, que tradicionalmente é contrária às instituições do mundo democrático, a colocação do Supremo na berlinda desse campo político não pode ser vista como algo dissociado da jornada de superexposição da Corte. “Veja que se compara muito o 8 de janeiro com o que ocorreu no Capitólio, mas nos Estados Unidos as pessoas não invadiram a Suprema Corte. Quando aqui o STF passa a ter uma voz deliberativa muito forte, todo mundo passa a gostar ou não dele, assim como se gosta ou não de um presidente da República e se vota ou não em um presidente. O problema é que o Judiciário, diferentemente dos outros Poderes, não está sob o escrutínio do voto. Tudo isso é muito representativo.”
(Brasil
de Fato)
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