Segundo o livro, até o começo da Idade
Moderna, o mundo ocidental não dispensava tratamento especial para os mais
novos, vistos como miniadultos. A partir de documentos antigos, principalmente
pinturas medievais, Ariès conclui que a infância não era vista como uma fase
específica da vida. Por isso, quadros mostram crianças vestidas como pessoas em
miniatura e, ainda de acordo com o autor, desde os primeiros anos da infância
havia uma convivência constante com o mundo dos adultos, o que incluía jogos,
instrumentos, trabalho e até mesmo exposição à sexualidade.
Ariès também diz, baseando-se no fato
da raridade de túmulos dedicados a crianças no período, embora fosse grande a
mortalidade infantil, que essa banalização da morte nos primeiros anos de vida
acabou provocando uma total ausência de vínculos de amor familiar. Em outras
palavras, era como se não valesse a pena investir tanto esforço e afeto às
crianças, diante da incerteza de sua própria sobrevivência.
“O conceito de infância foi atribuído
ao historiador Ariès. No entanto, outros pesquisadores, como [o historiador
americano] Peter Stearns, em sua obra A Infância [de 2006],
questionam tal ideia”, afirma à BBC News Brasil a pedagoga Maria Angela Barbato
Carneiro, professora na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Ela afirma que, se “o conceito de
infância está relacionado ao papel que a criança ocupa na sociedade” e não há
registros sobre isso anteriores ao historiador francês, “atribui-se a ele os
primeiros estudos sobre ela”.
“Na sociedade medieval […] o sentimento
da infância não existia — o que não quer dizer que as crianças fossem
negligenciadas, abandonadas ou desprezadas”, diz Ariès, no livro. “O sentimento
da infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à
consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue
essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem. Essa consciência não existia.”
Na arte
“Até por volta do século 12, a arte
medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. É difícil crer
que essa ausência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade. É mais
provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo”, pontua Ariès.
Ele observa que as crianças eram pintadas
com deformações, como se fossem réplicas menores de adultos. E cita uma
ilustração que consta de evangeliário feito por volta do ano 1000, no
Sacro-Império Romano Germânico. “O tema é a cena do Evangelho em que Jesus pede
que se deixe vir a ele as criancinhas […]. Ora, o miniaturista agrupou em torno
de Jesus oito verdadeiros homens, sem nenhuma das características da infância:
eles foram simplesmente reproduzidos numa escala menor. Apenas seu tamanho os
distingue dos adultos.”
Descrevendo outra obra, Ariès lembra
que “o pintor não hesitava em dar à nudez das crianças, nos raríssimos casos em
que era exposta, a musculatura do adulto: assim, no livro de salmos de São Luís
de Leyde, datado do fim do século 12 ou do início do 13, Ismael, pouco depois
de seu nascimento, tem os músculos abdominais e peitorais de um homem.”
Ele defende que essa ideia da infância
como um período próprio da vida havia se perdido com a romanização do mundo, na
Idade Média. E só seria recuperada com o fim dessa fase histórica.
A partir do século 13, ele nota o
reaparecimento de figuras infantis, mas ainda ligadas ao religioso — ou seja,
não crianças exatamente, mas anjos, em que “os artistas sublinhariam com
afetação os traços redondos e graciosos — e um tanto efeminados — dos meninos
mal saídos da infância”. “Já estamos longe dos adultos em escala reduzida […]”,
comenta.
O historiador notou que a criança só
começa a protagonizar retratos já no século 15, mas ainda assim com trajes de
adulto.
Em efígies funerárias, a situação encontrada pelo pesquisador foi ainda mais tardia: remonta ao século 16 a presença de imagens alusivas a crianças mortas. “Ninguém pensava em conservar o retrato de uma criança que tivesse sobrevivido e se tornado adulta ou que tivesse morrido pequena”, explica ele. “No primeiro caso, a infância era apenas uma fase sem importância, que não fazia sentido fixar na lembrança; no segundo, o da criança morta, não se considerava que essa coisinha desaparecida tão cedo fosse digna de lembrança: havia tantas crianças, cuja sobrevivência era tão problemática.”
“O sentimento de que se faziam várias
crianças para conservar apenas algumas era e durante muito tempo permaneceu
muito forte”, afirma. Ele se baseou em relatos que traziam histórias como a de
uma mulher, no século 17, que estava nervosa por dar à luz ao sexto filho e era
consolada por uma vizinha que lhe lembrava: “antes que eles te possam causar
muitos problemas, tu terás perdido a metade”.
“As pessoas não se podiam apegar muito
a algo que era considerado uma perda eventual”, diz Ariès.
Ele conta que muitas famílias optavam,
inclusive, por retardar em alguns anos o batismo dos filhos. E isto fazia com
que não houvesse a necessidade dos ritos cristãos do enterro. “Consta que
durante muito tempo se conservou no País Basco o hábito de enterrar em casa, no
jardim, a criança morta sem batismo”, aponta ele. “[…] será que simplesmente as
crianças mortas muito cedo eram enterradas em qualquer lugar, como hoje se
enterra um animal doméstico, um gato ou um cachorro?”.
Havia então quem ainda entendesse as
crianças como um ser marginal, que ainda não haviam se inserido completamente
na vida. Por esse entendimento, bastava a criança superar esses primeiros anos,
cuja sobrevivência era mais difícil, para logo ser considerada parte do mundo
dos adultos.
Sexualidade
Outro ponto curioso abordado pelo
historiador francês diz respeito à sexualidade — ou como esta era tratada em
relação às crianças. Para isso, ele utiliza como fonte o diário do médico de
Henrique 4º (1553-1610), rei da França, especialmente as anotações sobre fatos
corriqueiros do filho do monarca, o futuro rei Luís 13 (1601-1643).
Quando o menino tinha menos de 1 ano de
vida, o médico escreveu: “Ele dá gargalhadas quando sua ama lhe sacode o pênis
com a ponta dos dedos”. E, mais tarde, relata que Luís passa a exibir seu órgão
sexual sempre que avista um criado.
“Muito alegre, ele manda que todos lhe
beijem o pênis”, relatou o médico, quando o herdeiro tinha 1 ano de idade.
Alguns meses depois, quando ficou arranjado seu futuro casamento com a infanta
da Espanha, ele passaria a colocar a mão em seu pênis sempre que os adultos lhe
perguntavam “onde está o benzinho da infanta?”.
A julgar pelos relatos, todas essas
brincadeiras de cunho sexual eram encaradas com naturalidade, nunca com
reprovação. Aos quatro anos, conforme o diário, ele já havia aprendido, na
teoria, como ocorria o ato sexual.
Espaço da infância
Mas Ariès nota que a partir do século
16 é possível verificar um movimento de inclusão da criança, sem respeitar suas
diferenças, ao mundo dos adultos. Primeiro, como um divertimento. O filósofo Montaigne
(1533-1592) escreveu, sobre o gosto pelo pitoresco e a graça dos pequeninos,
que com eles era possível se divertir “para nosso passatempo, assim como nos
divertimos com os macacos”.
“Esse sentimento podia muito bem se
acomodar à indiferença com relação à personalidade essencial e definitiva da
criança, a alma imortal”, diz Ariès.
O historiador nota que a partir do
século 17 a criança começa a protagonizar retratos de família. Na mesma época,
a infância passa a ser entendida como uma fase da vida.
Essa definição vai ficando mais intensa
à medida que a sociedade moderna se organiza. As rotinas de trabalho, dentro do
contexto industrial, acabam por criar uma divisão mais clara entre o espaço das
crianças — ainda muito novas, impossibilitadas ao trabalho — e o espaço dos
adultos — no qual, claro, estavam incluídas as crianças um pouco mais velhas,
que também trabalhavam.
E a educação escolar começa a tomar a
forma como a conhecemos — são nas escolas que as crianças têm seu espaço e,
cada vez mais, passam a ser tratadas com o respeito devido à infância.
“Não saberia dizer se o conceito de
infância acompanhou o próprio conceito de ensino como entendemos hoje mas, de
fato, sempre foi um processo que envolveu ensino e aprendizagem”, comenta a
professora Carneiro. “A escolarização assume um papel importante a partir da
Reforma Protestante, quando surgem as escolas da igreja onde poderiam aprender
a ler a Bíblia, porque antes eram privilégio da elite e da igreja.”
Ela lembra, contudo, que as crianças,
“de fato tiveram seu lugar” no mundo a partir da Declaração dos Direitos da
Criança, documento criado pela Organização nas Nações Unidas (ONU) em 1959. “É
algo bastante recente e, mesmo assim, pouco respeitado”, diz.
Doutor em educação, arte e história da
cultura e professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, Ítalo Francisco
Curcio concorda com a ideia de que “o conceito de infância, como assimilamos
hoje”, tenha surgido com a modernidade, “não por coincidência, paralelamente ao
novo modelo de produção, surgido com a chamada primeira Revolução Industrial”.
“Até então […], o ser humano era visto
e entendido socialmente num modelo de dois segmentos, o do ‘pré-adulto’, ou
criança; e o do adulto”, diz ele, à BBC News Brasil. “Mais precisamos, o
segmento antes da capacidade de procriação e o segmento a partir da capacidade
de procriação”.
Curcio sintetiza: embora o conceito de
infância existisse, de forma subliminar, desde a origem da humanidade, “somente
a partir do fim do século 17 ele é efetivamente assimilado como uma fase do
desenvolvimento da pessoa humana”.
“Mais precisamente, a partir do século
18, especialmente no meio cristão, passou-se a ver o ser humano, nos seus
primeiros 10 anos de vida, como um tempo de crescimento não somente físico mas
também intelectual, cultural e espiritual”, afirma ele.
A historiadora da educação e psicóloga
Maria Cristina Soares de Gouvêa, professora na Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) também situa a era moderna como o marco do surgimento da ideia de
infância. “Veio mais ou menos com as mudanças advindas do que a gente chama de
modernidade”, diz ela, à BBC News Brasil.
Isto porque a fundação do Estado
moderno implicou na “necessidade de construção de uma ordem social ligada ao
Estado, em que sujeitos não obedecessem mais apenas a disputas entre nobres”.
Segundo ela, como era preciso desenvolver indivíduos “capazes de controlar a si
mesmos” dentro dos princípios da “civilidade”, o momento para essa formação
passou a ser a infância.
“Na virada do século 16 surge uma série
de tratados, manuais de conduta, de educação moral, tudo ensinando como educar
os filhos ainda no ambiente doméstico. Ao mesmo tempo, se expandem as escolas,
ainda restritas às elites”, afirma a psicóloga. “A escola dá nova visibilidade
à criança, cuja formação passa a ser entendida como função do Estado.”
É quando gradualmente começa a existir
um momento determinado em que a criança “não é produtiva” porque “todo o
investimento é voltado para sua escolarização”. “A criança, inicialmente de 8 a
12 anos, ganha uma nova função social: a função de aluno inserido na escola.
Este é o modelo de infância que se constitui com a decadência do modelo da
sociedade medieval”, diz ela.
Legado e
controvérsias
Gouvêa lembra que o principal mérito da
obra de Ariès está no papel de fundamentar o conceito de infância.
“Ele entendia que havia [no passado]
uma indiferença em relação às crianças, um sentimento de indistinção entre
infância e idade adulta. E uma certa indiferença afetiva, ligada à alta
mortalidade e às condições de vida”, comenta ela. “Para ele, as crianças eram
tratadas como pequenos adultos.”
Gouvêa acrescenta que “as pesquisas
dele foram muito importantes porque ele foi o primeiro a trazer visibilidade
para a história e para as ciências sociais acerca da questão da infância”. “A
infância até então era entendida como tema restrito à psicologia e à pedagogia
ou à pediatria. Ele trouxe a ideia da infância e o sujeito criança para o
interior do campo história. Ele historicizou a noção contemporânea que temos da
infância.”
Se o pioneirismo de Ariès é amplamente
reconhecido, também não faltam críticas ao seu modo de teorizar a questão.
A psicóloga Gouvêa lembra que a
pesquisa do francês foi “muito original” na utilização de lápides, pinturas de
época, cartas e tudo o mais que ele foi levantando, “já que a criança não
aparecia claramente nos discursos oficiais, então ele foi procurando traços do
infantil nas produções culturais”.
Por outro lado, isto limitou seu
alcance. “Ao pesquisar pinturas, ele só teve acesso a crianças nobres da Idade
Média e não a criança concreta. E essa criança nobre era retratada como um
pequeno adulto porque, historiadores da época vão dizer, naquela época a
pintura não retratava o sujeito, mas a posição social”, diz a professora. “Era
preciso então retratar o herdeiro do trono, por exemplo, daí essa posição do
adulto.”
Outra hipótese aventada por ela é de
que, naquele tempo em que as telas precisavam de uma observação do artista, “a
criança não apareceria porque era difícil retratá-las, difícil que ela ficasse
parada por horas”.
“E pesquisas posteriores já mostraram
que, mesmo com a alta taxa de mortalidade, isso não significaria que os pais
tratassem os filhos com indiferença. Há cartas em que eles expressavam a
tristeza pela perda dos filhos, o vínculo afetivo, etc.”, diz Gouvêa.
Carneiro lembra ainda que a “ausência
de quaisquer tipos de representação referente às crianças” era menos por um
entendimento do papel delas e mais “porque elas viviam pouco, morriam cedo”.
“Imagine os povos nômades carregando os pequenos”, exemplifica. “A
sobrevivência era difícil para os adultos devido às adversidades, imagine para
as crianças.”
O historiador Stearns, por exemplo,
defende que a parca documentação sobre crianças do passado é decorrente do fato
de que as descrições das mesmas dependiam do ponto de vista dos adultos. “Na
minha opinião, a infância sempre existiu, mas não temos dados suficientes para
estudá-la melhor nos diferentes contextos e épocas”, completa a professora.
“Se por um lado, foram poucos os dados
encontrados sobre as crianças, em algumas sociedades elas trabalhavam ajudando
os adultos e participando de ritos de iniciação”, comenta a professora
Carneiro.
Ela ressalta, contudo, que o Ariès precisa
ser entendido “dentro de uma sociedade ocidental europeia” e, deste ponto de
vista, considerando a época analisada, “ele está correto”. “Não podemos falar o
mesmo de sociedades sul-africanas ou indígenas sul-americanos, porque as
realidades eram outras”, afirma Carneiro.
A psicóloga Gouvêa acrescenta ainda que
é preciso ter em mente a diferença entre criança e infância. O primeiro termo é
carregado de universalidade: significa sujeito de pouca idade. “Já infância é
uma construção social que age sobre esses sujeitos. Ou seja: a criança é criada
de acordo com o modelo social de infância de sua sociedade, de sua cultura”,
contextualiza.
Etimologicamente, a palavra infância
vem do latim, da combinação de um prefixo de negação com um substantivo que
significa “falante”. “Infância poderia ser entendia literalmente como ‘alguém
sem fala’, ou que não sabe falar. Sem confundir, porém, com o significado de
mudo. Entende-se por mudo quem não consegue falar, o que é diferente de não
saber falar”, define Curcio.
(Fonte:BBC)
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