“Nenhum dinheiro do mundo é capaz de
compensar ou apagar as marcas que a segregação provocou na alma e no coração
das pessoas portadoras de hanseníase e suas famílias. Mas estender aos filhos o
direito à pensão especial é dar mais um passo importante para reparação de uma
dívida enorme que o Brasil tem com aqueles que, durante anos, foram privados
dos cuidados e carinho dos pais”, afirmou o presidente Lula ao sancionar a lei
no Palácio do Planalto.
O PL nº 3.023/2022 altera a Lei nº 11.520/2007 — criada a partir de Medida
Provisória do segundo mandato do presidente Lula —, que concedeu pensão às
pessoas com hanseníase isoladas ou internadas compulsoriamente até 1986, para
incluir os seus filhos. Outra novidade é que agora fica estipulado valor não
inferior a um salário mínimo nas pensões de pessoas que ficaram isoladas.
A nova legislação é uma reparação
histórica da decisão do Estado brasileiro, que vigorou desde a década de 1920 e
determinava isolamento e internação compulsória de pessoas com a doença. Embora
tenha sido abolida em 1962, a prática, que causava a separação de famílias,
persistiu até 1986, quando foi definitivamente encerrada.
“O Estado errou ao manter segregados
pais e filhos, mesmo depois de a cura para a hanseníase ter sido descoberta na
década de 1940. Mesmo depois da recomendação mundial para o fim do isolamento
nos anos 1950. Errou por manter, na prática, a política de segregação até o ano
de 1986. É preciso pedir desculpas. E é preciso, principalmente, construir
políticas públicas para reparar os danos sociais que a segregação causou”,
disse Lula.
O presidente contou que visitou colônias
e ex-colônias, antes, durante e depois de deixar a presidência em 2010. “Nesses
encontros, fiz amigos e conheci de perto a complexidade da hanseníase e a
realidade de homens e mulheres que contraíram a doença”, ressaltou. Lula também
se comprometeu a reconstruir uma política para que seja possível acabar
definitivamente com a hanseníase no país.
“Hoje é um dia de consagração dos nossos
11 meses de governo. Nesta semana, nós fizemos aqui muitas coisas de interesse
do povo brasileiro: a questão da educação das crianças com deficiência, do
Viver sem Limite (Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência), de
cuidar das pessoas que mais precisam do Estado. E não poderia ser mais feliz
de, na sexta-feira, fazer a reparação histórica de erros cometidos pelo Estado
brasileiro”, celebrou o presidente.
VÍTIMAS — Na cerimônia, a senhora Maria de
Fátima de Lima e Silva, vítima de isolamento compulsório, contou, ao lado do
presidente Lula, um pouco da sua história. Mãe de oito filhos, ela afirmou que
foi doloroso ter que abrir mão de criá-los devido à política da época. Até
hoje, ela não sabe onde estão quatro deles. Uma de suas filhas, que a
acompanhou no evento, disse que passou por muitas famílias, nas quais era
humilhada e vivia de forma servil, sem carinho.
O coordenador do Movimento de
Reintegração dos Acometidos pela Hanseníase (Morhan), Francisco Faustino Pinto,
também narrou como a política de segregação impactou a sua vida. “Tínhamos que
obrigatoriamente ser separados de nossos pais e enviados para educandários,
creches, ou até mesmo para familiares que nem sempre nos acolhiam devidamente.
Alguns filhos foram enviados para adoção legal e alguns foram dados como
mortos. Passamos por maus-tratos, aliciação e abuso sexual, além de castigos
severos e humilhações”. Após anos de busca por reparação, ele comemorou a
sanção da lei.
SAÚDE — A ministra da Saúde, Nísia
Trindade, citou as ações que o Governo Federal está tomando para melhorar o
atendimento às pessoas com hanseníase. “O presidente Lula criou um Comitê
Interministerial para eliminação da tuberculose, hanseníase e outras doenças
determinadas socialmente. Temos nove ministérios trabalhando em conjunto para
essa meta”, afirmou.
Neste ano, o SUS disponibilizará teste
rápido para avaliação dos contatos dos pacientes. “Também estamos trabalhando
para o financiamento no desenvolvimento de medicamentos para o início imediato
do tratamento, que hoje já é oferecido pelo SUS, mas que nós queremos avançar,
aperfeiçoar e melhorar”, disse a ministra.
O desenvolvimento de inovações para as
chamadas doenças negligenciadas é um dos eixos centrais da estratégia para o
Complexo Econômico-Industrial da Saúde lançado em setembro pelo Governo
Federal.
“Mas eu afirmo aqui que não se tratam de
doenças negligenciadas, se tratam de pessoas e grupos da sociedade
discriminados por várias condições sociais e pelo preconceito. É isso que esse
ato hoje repara e é nisso que a nossa política pública tem que avançar. São
doenças que marcam a grande desigualdade social no nosso país. A partir de
2024, avançaremos com novos testes laboratoriais de biologia molecular para
aperfeiçoar esse diagnóstico”, ressaltou a ministra.
ENTENDA — A hanseníase é uma doença
infecciosa, contagiosa, de evolução crônica, causada pela bactéria Mycobacterium
leprae. Atinge principalmente a pele, as mucosas e os nervos periféricos
(braços e pernas), com capacidade de ocasionar lesões neurais, podendo
acarretar danos irreversíveis, inclusive exclusão social, caso o diagnóstico
seja tardio ou o tratamento inadequado.
A transmissão ocorre quando uma pessoa
com hanseníase, na forma infectante da doença, sem tratamento, elimina o bacilo
para o meio exterior, infectando outras pessoas suscetíveis, ou seja, com maior
probabilidade de adoecer. A forma de eliminação do bacilo pelo doente são as
vias aéreas superiores (por meio do espirro, tosse ou fala), e não pelos
objetos utilizados pelo paciente. Também é necessário um contato próximo e
prolongado.
Os doentes com poucos bacilos não são
considerados importantes fontes de transmissão da doença, devido à baixa carga
bacilar. Não se transmite a hanseníase pelo abraço, compartilhamentos de
pratos, talheres, roupas de cama e outros objetos.
O tratamento medicamentoso da
hanseníase, feito com a regularidade recomendada de uso do esquema PQT-U, leva
à cura da doença. Já no início do tratamento, pela ação dos medicamentos, o
paciente deixa de transmitir a doença.
RESSIGNIFICAÇÃO — O Brasil
ocupa a segunda posição do mundo entre os países que registram casos novos. Em
razão de sua elevada carga, a doença permanece como um importante problema de
saúde pública no país, sendo de notificação compulsória e investigação
obrigatória. A partir da década de 1980, o Brasil dispõe de iniciativas
institucionais que modificam a estratégia de cuidado às pessoas acometidas pela
hanseníase, com o fechamento dos hospitais-colônia que pressupunham a
internação compulsória.
Em 1995, como iniciativa inovadora para
ressignificação social da doença, o Brasil determina, por meio da Lei nº 9.010,
que o termo “lepra” e seus derivados não podem mais ser utilizados na linguagem
empregada nos documentos oficiais da Administração centralizada e
descentralizada da União e dos estados. Esses passos foram importantes para
ampliar a compreensão da história da hanseníase enquanto uma trajetória que não
é do bacilo, mas de pessoas e famílias acometidas pela doença.
Nenhum comentário:
Postar um comentário