No Brasil, Milei se notabilizou não apenas por
propostas como a de dolarização da economia argentina e o fechamento
do Banco Central do país. Por aqui, o presidente eleito argentino também ganhou
notoriedade por suas críticas ao atual presidente Luiz Inácio Lula da
Silva (PT) – a quem chamou de "presidiário" –, ao Mercosul e à
China.
Mas, a despeito do que tenha dito sobre Lula ou a
respeito das relações com o Brasil, Milei vai assumir uma Argentina com uma
economia extremamente conectada à brasileira.
Dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria,
Comércio e Serviços (MDIC) do Brasil mostram que a Argentina é, há anos, o
terceiro maior parceiro comercial do Brasil, atrás apenas da China (1º) e os
Estados Unidos (2º).
Em 2022, por exemplo, o Brasil exportou US$ 15,3
bilhões em produtos ao país vizinho. Isso é o equivalente a 4,5% de todas as
exportações brasileiras.
No mesmo ano, o Brasil importou US$ 13,09 bilhões,
o que gerou um saldo positivo para a balança comercial nacional de US$ 2,21
bilhões.
Além disso, a Argentina é um dos membros fundadores
do Mercosul, junto com Brasil, Uruguai e Paraguai.
Impactos para o Brasil
As declarações de Milei sobre como seriam as
relações entre Argentina e Brasil caso ele vencesse as eleições são vistas com
ceticismo e preocupação por analistas ouvidos pela BBC News Brasil.
Em entrevista ao jornalista norte-americano Tucker
Carlson, em setembro deste ano, Milei disse que Lula não entraria no grupo de
"defensores da liberdade".
"Eu sou um defensor da liberdade, da paz e da
democracia. Os comunistas não entram aí. Os chineses não entram aí. [Vladimir]
Putin não entra aí. Lula não entra aí. Nós queremos ser o farol moral do
continente. Os defensores da liberdade, democracia e diversidade e da paz. Nós
do Estados não vamos promover nenhum tipo de ação com comunistas e nem
socialistas", disse o então candidato.
Em agosto deste ano, Milei disse em entrevista à
plataforma Bloomberg Linea que acredita ser necessário "eliminar" o
Mercosul.
"De fato, acho que temos que eliminar o
Mercosul porque é uma união aduaneira defeituosa que prejudica os argentinos de
bem. É um comércio administrado por estados para favorecer empresários",
disse Milei à época.
As críticas de Milei ao governo Lula aumentaram na
reta final da campanha, especialmente depois de uma reportagem publicada pelo
jornal O Estado de S. Paulo que disse que a gestão do petista havia se
empenhado pela liberação de um empréstimo internacional à Argentina como forma
de favorecer a campanha de Sergio Massa. O Palácio do Planalto negou
interferência do governo com o objetivo de interferir nas eleições argentinas.
Nesse contexto de tensão, analistas ouvidos pela
BBC News Brasil avaliam que seria importante não levar ao pé da letra algumas
das declarações de Milei e que ele, na presidência, se verá obrigado a adotar
uma postura mais pragmática e menos ideológica.
"Todos sabemos que nas campanhas muito
polarizadas [...] os candidatos tendem a ir aos extremos [...] O que se fala na
campanha não é necessariamente o que será efetivamente implementado",
disse o diretor-presidente da Câmara de Comércio Brasil-Argentina, Federico
Servideo, à BBC News Brasil.
Para Silvio Campos Neto, economista e sócio da
consultoria Tendências, apesar da retórica de Milei, o Brasil pode obter ganhos
com a sua vitória.
"Um ponto positivo talvez seja a possibilidade
deles [argentinos] experimentarem uma mudança nos rumos na condução da economia
que, ao longo de várias décadas, na verdade tem seguido uma linha na direção de
um uso muito grande de mecanismos de Estado para dar impulso econômico",
disse Campos Neto à BBC News Brasil.
A tese é a de que, se o receituário de Milei der
certo e a Argentina superar a crise econômica, isso poderá ter efeitos
positivos na economia brasileira, já que o Brasil é um grande exportador de
produtos para o país.
"Se a macroeconomia Argentina se estabiliza, o
Brasil ganha um mercado importante para as exportações de produtos
industrializados. Lembremos que a Argentina é e tem sido o principal
destinatário de produtos industrializados exportados pelo Brasil", disse
Federico Servideo.
Os especialistas apontam que até mesmo uma das
propostas consideradas mais radicais de Milei, a dolarização total da economia
argentina, poderia ter efeitos positivos para o Brasil, se implementada com
sucesso.
Eles ponderam, no entanto, que a medida é complexa
e dificilmente poderia ser feita de forma imediata porque, atualmente, a
Argentina não tem reservas cambiais em dólares em volume suficiente.
"Se essa implementação for bem sucedida, isso
seria algo bem-vindo porque facilitaria as transações comerciais da Argentina
com o resto do mundo, uma vez que ela passaria a utilizar uma moeda
mundialmente aceita", disse Silvio Campos Neto.
"Se houvesse a dolarização, teríamos só uma
cotação [do dólar] e isso facilitaria tremendamente a relação comercial entre
os países", disse Federico Servideo.
Os analistas, no entanto, avaliam a gestão de Milei
também poderia resultar em perdas para o Brasil.
A maior parte delas, eles ressaltam, seriam no
campo político.
Eles temem que o desalinhamento ideológico entre
Milei, que é de direita, e Lula, de esquerda, possa atrapalhar planos do
governo brasileiro.
Um dos planos brasileiros que Milei pode atrapalhar
seria o ingresso da Argentina nos Brics, grupo inicialmente formado por Brasil,
Rússia, Índia, China e África do Sul. Em agosto deste ano, o grupo anunciou o
ingresso de seis novos membros, entre eles a Argentina, em um movimento que
teve o Brasil como principal articulador.
Em declarações à imprensa, no entanto, Milei e a
candidata que ficou em terceiro no primeiro turno, Patrícia Bullrich, disseram
que retirariam a Argentina dos Brics caso fossem eleitos. Ela declarou apoio a
Milei no segundo turno das eleições.
Para o professor de Política da América Latina na
Universidade de Buenos Aires Ariel Goldstein, a incorporação da Argentina aos
Brics é uma parte central da estratégia do presidente brasileiro para a sua
liderança na América do Sul e na América Latina, e, por isso, "Lula também
está tão preocupado".
Outra possível perda do Brasil seria uma demora ou
até mesmo a inviabilidade do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia,
negociado desde 1999.
Em 2019, o acordo foi fechado entre os dois blocos,
mas ainda precisava passar por um processo de revisão jurídica.
Neste ano, o bloco europeu enviou uma carta com
exigências na esfera ambiental ao Mercosul que bloquearam o andamento dessa
etapa.
Como o acordo vem sendo negociado pelos quatro
países do Mercosul em conjunto, se Milei retirar a Argentina do bloco, como
prometeu, isso poderia ter impactos no seu andamento.
"O acordo está com muitas dificuldades [...]
Mas é fato é que uma fragilização do Mercosul colocaria em xeque esse acordo.
Poderia atrasar ou mesmo eliminar qualquer possibilidade nesse sentido",
disse Silvio Campos Neto.
"Minha principal preocupação é que esse
desalinhamento ideológico prejudique o relacionamento comercial e que,
inclusive, possa vir a prejudicar a convalidação do acordo entre Mercosul e
União Europeia e isso pode vir a acontecer", disse Federico Servideo.
(BBC)
Nenhum comentário:
Postar um comentário