Mais
interessado em ter um novo interlocutor dentro da Corte do que em aumentar a
representatividade social da instância, o presidente ignorou a pressão de parte
da sociedade para indicar uma jurista negra na vaga aberta com a aposentadoria
de Rosa Weber. Com isso, o Supremo volta a ter apenas uma
mulher em sua composição de onze ministros, a ministra Cármen Lúcia.
A
confirmação de Dino no cargo ainda depende da aprovação do Senado, o que costuma
ocorrer com tranquilidade — nenhuma indicação para a Corte foi rejeitada desde
1894.
O
perfil político combativo do atual ministro da Justiça, porém, cria mais
resistência ao seu nome entre parte dos senadores do que se observou na indicação de
Zanin.
A
expectativa é que sua aprovação exigirá mais articulação do governo com as
principais lideranças do Senado, como o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco
(PSD-MG), e o presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Davi
Alcolumbre (União Brasil-AP).
Alcolumbre
marcou para 13 de dezembro a sabatina de Dino na CCJ; depois, a votação vai a
plenário.
Caso
aprovado pelo Senado, juristas ouvidos pela BBC News Brasil esperam que Dino
tenha uma postura alinhada com a esquerda nas pautas econômicas, mas não tão
progressistas em pautas de constumes.
Católico,
o ministro de 55 anos já se disse "filosoficamente, doutrinariamente, contra
o aborto" e defendeu "que a legislação brasileira não deve ser mexida
nesse aspecto".
Já
nas pautas penais, entrevistados que acompanham de perto a trajetória de Dino
acreditam que ele pode ter "mão pesada", contrariando as expectativas
iniciais de que Lula privilegiaria alguém de perfil mais garantista em sua
escolha para a Corte (entenda melhor ao longo da reportagem).
A entrada de um 'camisa dez' no STF?
Enquanto
Zanin se projetou para o STF por ter sido o advogado que liderou a defesa de
Lula nos processos da operação Lava Jato, Dino conquistou a confiança do
presidente aos poucos, ao longo de anos de sua carreira, em que exerceu cargos
no Judiciário, no Legislativo e no Executivo, dizem entrevistados pela BBC News
Brasil que acompanham de perto sua trajetória.
A
relação se fortaleceu neste ano, quando Dino passou a comandar uma das pastas
mais importantes do governo e protagonizou a reação do Executivo aos ataques de
8 de janeiro, quando um multidão de radicais
depredaram as sedes dos Três Poderes. Houve, por outro lado,
desgastes com crises na área de segurança pública, mas que não foram
suficientes para abalar a confiança do presidente.
Os
dois temas levaram a fortes embates com lideranças bolsonaristas, algo que
contribuiu para projetar Dino para a opinião pública. Com uma forma de se
expressar irreverente, o ministro costuma viralizar nas redes sociais com falas
“lacradoras”. Segundo levantamento do instituto pesquisa Quaest, é o segundo
ministro mais popular do governo, atrás de Fernando Haddad (Fazenda).
Foi
também no contexto da reação ao 8 de janeiro que o ministro da Justiça se
aproximou do ministro do STF, Alexandre de Moraes, entusiasta de sua escolha
para a Corte. Contribuiu também para a indicação de Lula o apoio do ministro
Gilmar Mendes, com quem Dino tem longa relação de amizade, desde a época em que
era juiz federal, antes de ingressar na política.
Na
primeira passagem de Lula pelo Palácio do Planalto, havia uma distância entre
ele e Dino devido ao cenário político no Maranhão, lembra o Secretário Nacional
do Consumidor, Wadih Damous, amigo de 30 anos de Dino e ex-deputado petista.
Dino,
então filiado ao PCdoB, era oposição ao clã político de José Sarney, forte
aliado do petista em seus dois primeiros mandatos.
Seu
desempenho como governador e sua postura nos momentos de maior fragilidade do
PT conquistaram a admiração do presidente, acredita Damous.
Dino
manteve fiel apoio à Dilma Rousseff durante e após
o processo de impeachment e foi crítico de primeira hora da
operação Lava Jato – operação que atingiu em cheio Lula, o PT e outros partidos
tradicionais.
Seu
apoio foi importante, não só por ser governador naquele momento, mas por
conseguir debater a operação juridicamente — antes de ingressar na política,
Dino foi juiz federal de 1994 a 2006 e chegou a presidir a Associação dos
Juízes Federais (Ajufe).
Deixou
a magistratura para ser deputado federal (2007 a 2011), presidente da Embratur
(2011 a 2014) durante a gestão Dilma, e depois governador do Maranhão por dois
mandatos (2015 a 2022). Eleito senador no ano passado, se licenciou para
assumir o Ministério da Justiça.
Para
os entrevistados pela BBC News Brasil, a rara experiência nos Três Poderes deve
dar a Dino, que tem 55 anos, um rápido protagonismo dentro da Corte, com
capacidade de redefinir o equilíbrio de forças do Supremo.
"A
grande maioria dos ministros recentes entraram com um perfil muito cauteloso,
tentando buscar sua voz nesse espaço tão público quanto o Supremo. Não vai ser
o caso (do Dino)", acredita Pedro Abramovay, vice-presidente global de
programas da Open Society Foundation, que integrou o Ministério da Justiça nos
primeiros governos de Lula.
Na
sua visão, Dino chegará ao STF não como um jogador que precisa
"aquecer", mas como um "camisa dez".
"Ele
vai entrar aquecido. Isso faz diferença Não vai precisar buscar o apoio de um
grupo pra ser legitimado como a gente viu acontecer com outros ministros, mas é
alguém que pode inclusive criar novos grupos e novos arranjos com uma presença
tão forte", reforça.
Na
visão de Damous, Dino será um "polarizador" e vai marcar sua passagem
na Corte.
"O
Flávio tem posições muito nítidas, é sempre muito enfático nas coisas que ele
defende. Então eu acho que ia ser uma personalidade ali dentro do Supremo,
assim como o Alexandre de Morais tem sido, o Gilmar Mendes. Ele vai ser, sem
dúvida", compara.
"Os
tribunais constitucionais sempre são políticos, mas o Supremo se politizou
indevidamente ao longo dos últimos anos. Então, a trajetória de Dino na
política e na carreira de juiz daria a ele um perfil único lá", ressalta
ainda.
Garantista ou punitivista?
A
decisão de Lula de indicar nomes próximos a ele ao STF em seu terceiro mandato
contrasta com suas escolhas nos primeiros dois governos, quando o presidente
definia os nomes a partir das sugestões do seu então ministro da Justiça Márcio
Thomaz Bastos e do advogado e ex-deputado do PT Sigmaringa Seixas, ambos já
falecidos.
A
mudança é atribuída ao trauma com a Lava Jato, operação controversa que revelou
grandes esquemas de corrupção envolvendo a Petrobras e obras públicas. Lula
chegou a ser preso pela operação, mas depois teve suas condenações anuladas
quando o STF entendeu que houve ilegalidades na condução dos processos.
Por
causa disso, a expectativa no meio jurídico seria de que Lula indicaria ao
Supremo juristas com perfil garantista — ou seja, que dão mais ênfase às
garantias constitucionais dos acusados durante investigações e processos, como
o direito à ampla defesa e a responder processos em liberdade, usando a prisão
preventiva em situações muito excepcionais.
Os
entrevistados ouvidos pela BBC News Brasil, porém, avaliam que Dino não tem um
perfil tão garantista.
Como
ministro da Justiça, chegou a enviar ao Congresso um pacote que endurecia leis
penais sob justificativa de enfrentar ataques ao Estado Democrático de Direito.
A
proposta incluía estabelecer pena de 20 a 40 anos de prisão para quem atentasse
contra a vida do presidente da República, do vice-presidente, dos presidentes
do Senado e da Câmara dos Deputados, dos ministros do Supremo Tribunal Federal
e do Procurador-Geral da República, com o objetivo de alterar a ordem
constitucional democrática.
Outra
proposta era permitir a um juiz bloquear contas e apreender bens "quando
houver indícios suficientes de autoria ou de financiamento de crimes contra o
Estado Democrático de Direito" em uma decisão de ofício, ou seja, sem
solicitação prévia de outro órgão como a Polícia Federal ou o Ministério
Público.
O
pacote gerou controvérsia entre juristas e acabou não avançando no Congresso.
"Ele
tem a fama de mão pesada. É aquele negócio também de ter sido governador e
precisar lidar com o crime comum, com a criminalidade. De forma arbitrária acho
que ele não vai se conduzir, mas não se deve esperar uma postura intensamente
garantista não", prevê Wadih Damous.
A
visão é compartilhada por um advogado criminalista com trânsito nos bastidores
de Brasília.
"Flávio
não é um cara propriamente garantista. Ele é um cara um pouco mais do lado do
punitivismo. Então, a gente sabe que o Flávio não vai adotar uma linha tão
liberal no âmbito criminal quanto o Gilmar, quanto o (Ricardo) Lewandowski
(ministro aposentado), quanto o (Dias) Toffoli", destaca.
Na
avaliação desse advogado, o presidente parece ter privilegiado a proximidade
com seus indicados – Zanin e Dino – do que realmente o perfil garantista.
"Em
relação ao Lula, ele (Dino) vai se absolutamente leal às posições políticas e
ideológicas", ressalta.
Visão à esquerda na pauta econômica
No
âmbito econômico, os entrevistados acreditam que Dino levará ao STF uma visão
de esquerda, próxima a de Lula e a do PT.
A
expectativa é que tenha decisões favoráveis aos direitos do trabalhador — Dino
foi advogado trabalhista no início da carreira — e uma postura menos liberal.
"O
Flávio é uma pessoa de esquerda e pragmático. Não vejo ele de jeito nenhum como
alguém ultraestatista, mas claramente mais à esquerda que o (ministro Luís Roberto)
Barroso na pauta econômica", disse Abramovay.
"Como
governador foi muito aberto a investimentos privados. Não tem de jeito nenhum
um preconceito contra o investimento privado, privatizações, mas certamente não
virão dele as decisões que vão impedir o Estado de atuar em esfera
econômica", acrescenta.
Aborto, maconha e a crise com o Congresso
Caso
aprovado pelo Senado, Dino chegará ao STF em um momento de escalada da tensão
entre a Corte e o Congresso.
O
Parlamento vem debatendo propostas que batem de frente com o Supremo, como uma
possível alteração na Constituição que pode limitar poderes individuais dos
ministros ou a criação de mandatos com duração fixa — hoje os ministros podem
ficar na Corte até os 75 anos.
Como
pano de fundo dessa crise, analistas apontam uma insatisfação da maioria
conservadora do Congresso com decisões progressistas do STF, como a rejeição do
marco temporal para territórios indígenas e o andamento de julgamentos que pode
descriminalizar o aborto e o porte de maconha para consumo.
Na
visão dos entrevistados, a experiência prévia de Dino como parlamentar pode
contribuir para uma melhor interlocução entre o Congresso e o Parlamento.
Também
há uma expectativa que seu lado político pragmático o leve a atuar com cautela
e contensão em pautas controversas, para não alimentar essas tensões com o
Parlamento.
"Ele
pode fazer um cálculo político (ao analisar uma pauta progressistas) e não
trazer a fúria dos fundamentalistas para dentro do ambiente do Supremo: 'Ah,
isso não é matéria do Supremo, isso é matéria pro Congresso'", exemplifica
Damous.
"Não
me causaria surpresa se ele raciocinar dessa maneira. Mas, do ponto de vista do
entendimento pessoal dele, ele é progressista", ressalta.
Declarações
anteriores de Dino reforçam essa percepção. O ministro já se colocou contra a
ampliação da legalização do aborto, embora tenha apoiado falas de Lula de que o
tema seria uma questão de saúde pública, algo que gerou desgaste para o petista
junto ao eleitorado conservador na eleição de 2022.
“Eu
sou filosoficamente, doutrinariamente, contra o aborto, e acho que a legislação
brasileira não deve ser mexida nesse aspecto. Por que eu registro minha
posição? Porque essa é a prova de que é um tema que não tem consenso nem no
nosso campo político. Acho que temas que neste momento desunem devem ser
evitados, porque o bolsonarismo precisa da polêmica”, disse em abril do ano
passado, em entrevista ao Valor Econômico.
“A
posição do presidente Lula em relação a isso (ao aborto) levanta uma
preocupação necessária, qual seja, a da desigualdade entre mulheres ricas e
mulheres pobres. E como você vai tratar desse assunto, que não é pela via do
Direito Penal, e sim pela via das políticas públicas. Ele levantar essa preocupação
não há nenhum problema. Agora, isso não vai constar de programa de governo
porque nem na esquerda existe consenso sobre isso”, disse ainda, na entrevista.
O
STF tem uma ação em andamento que discute a descriminalização ampla do aborto,
prática que hoje é permitida no país apenas em caso de estupro, risco de vida
para a mãe e quando o feto é anencefálico. Dino, porém, não poderá se
manifestar no mérito dessa ação quando o julgamento for retomado (não há
previsão ainda) porque a ministra Rosa Weber – única a se manifestar até o
momento – já votou pela ampla liberação.
Por
outro lado, ele poderá julgar outras ações que costumam chegar ao STF
discutindo casos particulares, como ações criminais contra suspeitos de
realizar abortos ilegais ou pedidos de gestantes para abortar, por exemplo em
casos de fetos diagnosticados com problemas que impedem sua vida após o parto
(casos similares ao da anencefelia, mas que não são permitidos nas regras
atuais).
Na
questão das drogas, Dino se coloca contra o consumo, mas já indicou ser contra
o atual modelo de criminalização.
“Individualmente,
eu tenho uma atitude contra as drogas, de rejeição ao consumo. Como política
pública, nós temos que enxergar sempre a questão da eficiência. O que nós
estamos vendo é que esse modelo atual faz com que marcadamente jovens de baixa
instrução negros de periferia, essencialmente esses, sejam atraídos pelo
tráfico de drogas e depois levados ou a morte violenta ou ao cárcere”, disse,
em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 2019.
No
momento, há um julgamento em andamento no STF que discute descriminalizar o
porte de maconha para consumo e fixar parâmetros que diferenciem qual a
quantidade liberada para usuário e qual a quantidade que enquadraria o portador
como traficante.
A
princípio, Dino não se manifestará no mérito principal dessa ação, caso seja
aprovado para a Corte, porque a ministra Rosa Weber já votou. Mas, como o
julgamento ainda está em curso, pode ser que o próximo ministro precise se
manifestar em alguma etapa do caso.
(BBC)
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