Mais de 30 mil pessoas no Reino Unido foram infectadas com HIV e hepatite C após terem recebido transfusões de sangue contaminadas nas décadas de 1970 e 1980.
Um inquérito público sobre o que ficou conhecido como o maior desastre em um tratamento na história do NHS, o sistema público de saúde britânico, concluiu que as autoridades encobriram o escândalo após exporem conscientemente as vítimas a riscos inaceitáveis.
O relatório final do inquérito, divulgado nesta segunda-feira (20/05), acusa os médicos, o governo e o NHS de permitirem que os pacientes contraíssem HIV e hepatite.
As vítimas estão
fazendo campanha pelo pagamento de uma indenização que deve custar bilhões de
libras ao governo.
Quem recebeu sangue
infectado e quantas pessoas morreram?
Dois grupos
principais de pacientes do NHS foram afetados.
Em primeiro lugar,
aqueles com hemofilia — e com doenças semelhantes —, que possuem uma condição
genética rara que faz com que seu sangue não coagule adequadamente.
As pessoas com
hemofilia A apresentam deficiência de um agente de coagulação chamado Fator VIII,
enquanto quem tem hemofilia B não apresenta Fator IX suficiente.
Na década de 1970,
um novo tratamento — que utilizava plasma sanguíneo humano fornecido por
doadores — foi desenvolvido para substituir esses agentes coagulantes.
Mas lotes inteiros
foram contaminados com vírus mortais.
Após receberem os
tratamentos infectados, cerca de 1.250 pessoas com distúrbios hemorrágicos no
Reino Unido contraíram tanto HIV, vírus causador da Aids, quanto hepatite C,
incluindo 380 crianças.
Cerca de dois
terços morreram mais tarde de Aids. Alguns transmitiram HIV involuntariamente
aos seus parceiros.
Outras pessoas — de
2,4 mil a 5 mil — desenvolveram apenas hepatite C, que pode causar cirrose e
câncer de fígado.
É difícil saber o
número exato de pessoas infectadas com hepatite C, em parte porque pode levar
décadas até que os sintomas apareçam.
Um segundo grupo de
pacientes recebeu transfusões de sangue contaminado após o parto, cirurgias ou
outro tipo de tratamento médico entre 1970 e 1991.
O inquérito estima
que entre 80 e 100 pessoas deste grupo foram infectadas com HIV, e cerca de 27
mil com hepatite C.
No total, estima-se
que cerca de 2,9 mil pessoas morreram.
Entre elas, está
Martin White, que tinha hemofilia. Aos sete anos, ele recebeu um tratamento
para coagulação do sangue que mais tarde descobriu-se estar contaminado com
HIV.
Ele morreu aos 33
anos, depois de desenvolver HIV aos 14.
"O HIV era tão
novo que não tínhamos ouvido falar muito dele até então", diz a mãe dele,
Val White, hoje com 77 anos.
Era ela quem
aplicava as injeções, e nunca poderia imaginar que o tratamento que estava
dando ao filho iria matá-lo.
No entanto, mais de
20 anos depois, ela ainda hoje se sente culpada pela morte do filho.
"Isso destruiu
a vida dele", afirma.
"Grande parte
do que sinto é culpa — culpa por que queria ter feito mais. Culpa por ter dado
a injeção nele — era eu quem aplicava."
Por que o escândalo
aconteceu?
Na década de 1970,
o Reino Unido estava com dificuldade de satisfazer a demanda por tratamentos
para coagulação sanguínea, devido à escassez de hemoderivados no país. Por
isso, importou dos EUA.
Mas grande parte do
sangue foi fornecido por doadores de alto risco, como presidiários e usuários
de drogas.
O fator VIII foi
produzido reunindo plasma de dezenas de milhares de doadores.
Se apenas um doador
estivesse infectado, todo o lote poderia ser contaminado.
As doações de
sangue no Reino Unido só começaram a ser testadas rotineiramente para hepatite
C a partir de 1991, 18 meses após o vírus ser detectado pela primeira vez.
O que o inquérito
concluiu?
Ao anunciar suas
conclusões nesta segunda-feira, o inquérito afirmou que as vítimas haviam sido
deixadas na mão "não uma vez, mas repetidamente".
O relatório diz
ainda que a segurança dos pacientes não estava no centro da tomada de decisão,
e que o risco de infecções virais em hemoderivados era conhecido desde 1948.
Além disso, o texto
destaca que:
- Muito pouco foi
feito para impedir a importação de hemoderivados do exterior, que utilizavam
sangue de doadores de alto risco, como prisioneiros e usuários de drogas;
- No Reino Unido,
as doações de sangue de grupos considerados de alto risco, como prisioneiros,
eram aceitas até 1986;
-Só no final de
1985 que os produtos sanguíneos passaram a ser tratados termicamente para
eliminar o HIV, embora os riscos fossem conhecidos desde 1982;
- Havia poucos
testes para reduzir o risco de hepatite, a partir da década de 1970.
Brian Langstaff,
que presidiu o inquérito, disse que houve uma falta de transparência por parte
das autoridades e elementos de "absoluta dissimulação", incluindo a
destruição de documentos.
Também foram
contadas meias verdades, para que as pessoas não soubessem do risco do
tratamento, da disponibilidade de alternativas ou até mesmo se estavam
infectadas.
"Este desastre
não foi um acidente. As infecções aconteceram porque as autoridades — os
médicos, os serviços hematológicos, e os sucessivos governos — não colocaram a
segurança dos pacientes em primeiro lugar", declarou Brian.
É difícil
estabelecer os números exatos, mas a Sociedade de Hemofilia acredita que 650
pessoas infectadas com hemoderivados contaminados, ou seus parceiros enlutados,
morreram desde que o inquérito foi anunciado em 2017.
Quando as
autoridades descobriram sobre o sangue infectado?
Em meados da década
de 1970, houve repetidos alertas de que o Fator VIII importado dos EUA
apresentava um risco maior de infecção.
Mas as tentativas
de tornar o Reino Unido autossuficiente em hemoderivados fracassaram, então o
NHS continuou a utilizar suprimentos estrangeiros.
Os ativistas alegam
que poderia ter sido oferecido um tratamento alternativo, chamado
crioprecipitado, aos pacientes com hemofilia. Este tratamento era muito mais
difícil de administrar, mas era produzido a partir do plasma sanguíneo de um
único doador, diminuindo o risco de infecção.
A BBC News também
descobriu evidências de que crianças foram infectadas com hepatite C e HIV após serem
submetidas a ensaios clínicos para novos tratamentos — muitas
vezes, sem o consentimento da família.
Ainda em novembro
de 1983, o governo insistia que não havia "provas conclusivas" de que
o HIV podia ser transmitido pelo sangue, linha de pensamento que era fortemente
defendida pelo ex-ministro da saúde Ken Clarke, ouvido pelo atual inquérito.
No fim de 1985,
todos os produtos do Fator VIII passaram a ser tratados termicamente para matar
o HIV.
As vítimas do
escândalo vão receber indenização?
Aqueles que foram
infectados recebem uma ajuda financeira anual do governo. Mas não se chegou
ainda a um acordo definitivo sobre a indenização.
No fim de 2022,
após uma recomendação do inquérito, o governo efetuou pagamentos provisórios de
£100 mil (R$ 650 mil) para cerca de 4 mil vítimas sobreviventes e alguns
companheiros daquelas que morreram.
Em abril de 2023,
Brian disse que uma indenização provisória também deveria ser oferecida aos
filhos e pais das pessoas infectadas.
Ele também
recomendou que seja estabelecido um sistema de indenização definitivo.
O custo total
provavelmente vai ficar na casa de bilhões.
O governo afirmou
que aceitava o argumento da indenização, mas seria "inapropriado"
responder antes da publicação do relatório final do inquérito.
Em abril de 2024,
os ministros concordaram em apoiar uma emenda do Partido Trabalhista ao projeto
de lei sobre Vítimas e Prisioneiros. Isso significa que um sistema de indenização
definitivo deve ser estabelecido no prazo de três meses após a legislação
entrar em vigor.
O que aconteceu em
outros países afetados pelo sangue infectado?
Muitos outros
países foram afetados pelo mesmo escândalo, embora alguns —incluindo a
Finlândia — tenham usado tratamentos mais antigos até muito mais tarde, em vez
de trocar para o Fator VIII, que minimizou as infecções por HIV.
Nos EUA, as
empresas que forneceram hemoderivados infectados pagaram milhões em acordos
extrajudiciais.
Políticos e companhias farmacêuticas foram condenados por negligência em países como França e Japão.
(Fonte: BBC)
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