O
coletivo de rapazes negros, formado em julho daquele ano, depois se denominou
Grupo Palmares e era composto por Oliveira Ferreira da Silveira, Ilmo
Silva, Vilmar Nunes e Antônio Carlos Cortes. Cortes, hoje experiente advogado
especializado em direito civil e criminal e a única pessoa viva daquela
formação original. Segundo ele, também pertenciam ao “grupo informal” Luiz
Paulo Axis Santos e Jorge Antônio dos Santos, que tiveram atuação mais
discreta.
Nós
éramos seis, mas quatro botaram a cara para bater e dois ficaram ocultos, como
estratégia nossa, porque se a ditadura nos eliminasse, esses outros dois dariam
sequência”, lembra Antônio Carlos Cortes em entrevista à Agência
Brasil. Ao longo do tempo, a composição do grupo mudou, inclusive com a
entrada de mulheres.
“O
grupinho de negros se reunia costumeiramente em alguns fins de tarde na Rua da
Praia (oficialmente, dos Andradas), quase esquina com Marechal Floriano, em
frente à Casa Masson”, descreveu o poeta Oliveira Silveira, já formado em
Letras na época, em artigo assinado em 17 de outubro de 2003 e publicado no
livro Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a
injustiça econômica.
Conforme
o texto, no grupo Jorge Antônio dos Santos era “o crítico mais veemente” ao 13
de maio, mas havia na roda unanimidade contra ter aquela data como referência
histórica de luta pela liberdade para os negros brasileiros.
“O
13 não satisfazia, não havia por que comemorá-lo. A abolição só havia
ocorrido no papel; a lei não determinara medidas concretas, práticas,
palpáveis em favor do negro. E sem o 13 era preciso buscar outras datas,
era preciso retomar a história do Brasil”, anotou Oliveira Silveira.
Referências
Segundo
ele, que também se tornou autor de teatro, o grupo conhecia a peça Arena
conta Zumbi, de Gianfrancesco Guarnieri e musicada por Edu Lobo
(1965). Zumbi dos Palmares também estava nas bancas de revista, no fascículo nº
6 da série Grandes Personagens da Nossa História, editado pela
Abril Cultural. Na publicação constava o dia 20 de novembro de 1695 como
data da morte de Zumbi.
Na
Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul, o então estudante Antônio
Carlos Cortes localiza o livro Quilombo de Palmares (1947), do
historiador Edison Carneiro. O livro corroborava a data de 20/11, assim outros
livros consultados posteriormente pelo grupo como As guerras nos
Palmares (1938), do historiador português Ernesto José Bizarro Ennes,
e Palmares – la guerrilla negra (1965), do historiador gaúcho
Décio Freitas e editado inicialmente no Uruguai.
Além
da data de Zumbi dos Palmares, o grupo previu realizar homenagens ao advogado
Luiz Gama em 24 de agosto, e ao jornalista José do Patrocínio em 9 de outubro,
datas de nascimento dos dois abolicionistas negros. “Estava delineada uma
precária, mas deliberada ação política no sentido de apresentar, à comunidade
negra e à sociedade em geral, alternativas de datas, fatos e nomes, em
contestação ao oficialismo do 13 de maio”, explicou em artigo Oliveira
Silveira.
Censura
prévia
A
primeira homenagem articulada pelo Grupo Palmares a Zumbi ocorreu no 20/11, um
sábado à noite, no Clube Náutico Marcílio Dias, com o evento Zumbi, a
homenagem dos negros do teatro. Antes da apresentação, no dia 18, o
grupo foi chamado à sede da Polícia Federal para detalhar a programação do ato
e obter liberação da censura.
“Todas
as nossas manifestações tinham que passar pela Polícia Federal, pela censura,
para que eles carimbassem autorizando aquele ato que a gente ia fazer em função
do 20 de novembro de Zumbi dos Palmares. Mais do que isso, eu e o Oliveira
chegamos a ser detidos”, lembra Antônio Carlos Cortes sobre depoimento forçado
que tiveram de prestar.
A
repressão política queria averiguar se o Grupo Palmares tinha ligações com a
organização Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), que atuava
na luta armada.
Liberados
para fazerem a homenagem, no dia do evento os componentes do Grupo Palmares e a
audiência no Clube Náutico Marcílio Dias formaram um círculo para conhecer e
discutir a história de Palmares e seus quilombos com base nos estudos feitos
pelos estudantes e militantes, defendendo a opção pelo 20 de novembro, em vez
do 13 de maio, como data histórica para os negros brasileiros.
A
partir de então, “Oliveira nunca deixou um ano de fazer alguma atividade no 20
de novembro”, recorda-se a atriz gaúcha Vera Lopes – desde jovem atuante no
movimento negro de Porto Alegre. Para ela, a data da morte de Zumbi dos
Palmares “é uma referência que remete para aquilo que a gente sempre, desde
sempre viveu, que é a luta por vida digna. Em nenhum momento da história, as
pessoas negras aceitaram ser escravizadas de bom grado. O tempo inteiro,
houve resistência.”
Conjunto
de quilombos
O
historiador e professor mineiro Marcos Antônio Cardoso, especialista em
movimento negro, avalia que Zumbi e o quilombo de Palmares carregam outros
atributos importantes. “Essa foi a primeira forma coletiva de organização de
africanos no Brasil contra o regime de escravização. Foi uma experiência
cultural, política e social.”
Palmares,
na verdade um conjunto de quilombos que existiu por cerca de um século na Serra
da Barriga na capitania de Pernambuco, hoje em União dos Palmares (AL), ia além
do cultivo predominante de apenas uma cultura agrícola, como acontecia nos
engenhos de cana de açúcar, e tinha formas mais horizontais de comando e de
liderança do que o modelo escravagista.
Zumbi,
nascido em Palmares, mas criado no Recife por um padre missionário,
retorna à região e posteriormente assume a liderança do quilombo sucedendo, por
volta de 1680, Ganga Zumba - que havia aceitado uma proposta de rendição e paz
da coroa portuguesa.
Quinze
anos após Zumbi ter assumido a liderança do Quilombo de Palmares, mantendo a
resistência, o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho invade e destrói em
1694 o principal assentamento do quilombo (Mocambo do Macaco). Zumbi sobrevive
por cerca de mais dois anos em outro reduto, até ser morto em 20 de novembro
pelo capitão Furtado de Mendonça. Com o corpo esquartejado, Zumbi teve sua
cabeça cortada exposta no Pátio do Carmo no Recife.
Utopia
da igualdade
Para
Marcos Antônio Cardoso, apesar da derrota e morte de Zumbi “o processo de
resistência, de guerrilha, de organização, é muito importante do ponto de vista
de pensar a história do Brasil a partir do olhar dos chamados vencidos. O
quilombo de Palmares é ressignificado na memória negra brasileira. Se
transforma na utopia de construção de uma sociedade baseada na igualdade.”
O
gesto do Grupo Palmares em Porto Alegre em defender a substituição das
comemorações do 13 de maio para o 20 de novembro, no auge da repressão, não
teve propósito imediato de mobilização política. Mas, em 1978, quando a
sociedade civil volta a se articular em meio à abertura “lenta, gradual e
segura” da ditadura cívico-militar, a bandeira de 1971 do pequeno coletivo
gaúcho será abraçada Movimento Negro Unificado (MNU),
“Graças
ao empenho do MNU, ampliando e aprofundando a proposta do Grupo Palmares, o
20 de novembro transformou-se num ato político de afirmação da história do
povo negro, justamente naquilo em que ele demonstrou sua capacidade de
organização e de proposta de uma sociedade alternativa”, descreveu a
intelectual e ativista Lélia Gonzalez no artigo O Movimento Negro
Unificado Contra a Discriminação Racial.
Na
sua opinião, “Palmares foi o autêntico berço da nacionalidade brasileira, ao se
constituir efetiva democracia racial, e Zumbi, o símbolo vivo da luta contra
todas as formas de exploração.”
Causas
propostas, articuladas e abraçadas pelo MNU, como o 20/11, pautaram a
redemocratização do Brasil e até se tornaram políticas públicas atuais, como o
ensino da história da África nas escolas brasileiras, reivindicado desde o
final dos anos 1970.
Em
2003, o 20 de novembro foi incluído por lei nos calendários escolares. Em 2011,
a data é instituída oficialmente. No ano passado, também por lei, torna-se
feriado nacional - após os estados de Alagoas, do Amazonas, Amapá, de Mato
Grosso e do Rio de Janeiro e cerca de 1.200 municípios já terem acolhido a
data como dia sem trabalho, mas com reflexão social.
“É
um feriado fundamental para que a gente sonhe um dia em ser um país de primeiro
mundo. Nós só seremos um país de primeiro mundo quando pusermos fim a essa
chaga do racismo, do preconceito e da discriminação”, afirma o senador
Paulo Paim (PT-RS), relator do projeto de lei que transformou o Dia de Zumbi e
da Consciência Negra em feriado cívico nacional.
Os
negros são a maioria dos brasileiros. Pretos e pardos representam 55,5% da
população – 112,7 milhões de pessoas em um universo 212,6 milhões. Conforme o
Censo 2022 (IBGE), 20,6 milhões (10,2%) se reconhecem como “pretos” e 92,1
milhões (45,3%) se identificam como “pardos”.
De
acordo com Paulo Paim, “toda pessoa negra tem que entender que é
descendente de quilombola, e o princípio dos quilombos é esse: uma nação para
todos.”
(Ag.
Brasil)



Nenhum comentário:
Postar um comentário