“De fato, a categoria ‘pardo’ nunca esteve resolvida.
Por mais que tenhamos um acúmulo histórico, teórico, político sobre as questões
raciais, a categoria parda sempre permaneceu como um dilema”, afirma Bacelar,
em entrevista ao BdF Entrevista,
da Rádio Brasil de Fato. Esse dilema, segundo ela, foi
levado para a política através do sistema de ações afirmativas, como as cotas raciais, que tem tentado enfrentar as dificuldades em
definir quem se encaixa nessa classificação.
A pesquisadora ressalta que o processo de formação
das comissões de heteroidentificação provoca uma reflexão
sobre as próprias identidades dos membros que participam da avaliação. “Muitos
revisitaram a sua autodeclaração, se repensaram; chegaram com uma
autodeclaração e saíram com outra, ou chegaram com autodeclaração e
permaneceram, mas complexificaram um pouco mais essa elaboração de si”, relata,
a partir do acompanhamento que fez dessas bancas na Universidade Federal da
Bahia (UFBA).
No entanto, Bacelar alerta para os problemas no
processo. “Não existe política de risco zero. Existem falhas nesse processo,
sim. Mas existem mecanismos a partir dos quais elas podem e devem ser
corrigidas: através do recurso em última instância, do sistema judiciário”,
explica.
Mas o sistema judicial, pontua, pode estar
desalinhado com os interesses da comunidade negra, para a qual foram desenhadas
as políticas afirmativas. “Existe uma porcentagem muito alta de pessoas que vão
acessar a justiça e que vão ter o seu pleito deferido, mas essa proporção tão
alta reflete de fato uma correção de injustiças ou reflete uma falta de
alinhamento desse sistema judiciário com a perspectiva das comissões e do
mundo?”, questiona.
Ela destaca que as comissões, embora recentes,
precisam ser aprimoradas a partir de maior fiscalização e qualificação. “Em
primeiro lugar, precisa haver uma maior fiscalização sobre o funcionamento dessas comissões. Existem parâmetros que vão
dizer, por exemplo, que uma pessoa para compor a comissão precisa ter
experiência anterior relacionada a uma das questões étnico-raciais, seja por
meio de uma disciplina de curso ou pesquisa que realizou”, explica.
“Se essa pessoa não tem essa experiência, que a
instituição forneça essa formação. Existe um parâmetro razoável e ele precisa
ser respeitado. Acho que alinhar uma boa fiscalização com uma boa formação já é
meio caminho andado.”
Bacelar reforça que o conteúdo da formação também
deve ser adequado e específico. “Não é qualquer curso do que se chama de
‘letramento racial’ que vai funcionar. Esses cursos são arbitrários,
ministrados por especialistas que decidem o que é importante. O curso de
letramento racial não dá conta da especificidade do trabalho das comissões, que
está muito centrado nos problemas relativos à categoria ‘pardo’, na diversidade
regional, e na diversidade dos candidatos.”
Para a antropóloga, os desafios da avaliação variam
conforme regiões e contextos, e essa diversidade deve ser parte central do
currículo das formações.
Colorismo é roupagem para racismo
O debate sobre colorismo tem
ganhado espaço no Brasil, especialmente nas redes sociais e entre coletivos
negros. Para Bacelar, é preciso cautela ao importar conceitos formulados em
outros contextos. Em sua dissertação de mestrado, ela propõe o termo
“anticolorismo” como um chamado político para o antirracismo no país.
“Precisamos nos comprometer com o antirracismo, o
combatendo em todas as suas formas de manifestação. Se uma dessas formas é essa
hierarquia interna na comunidade negra, isso também precisa ser combatido”,
afirma.
Para ela, muitos debates que hoje giram em torno do
colorismo substituem o termo racismo, ainda
considerado “assunto não grato”. “Se é uma forma de racismo, vamos tratar como
racismo”, defende.
Gabriela ressalta que a estrutura racial brasileira
é profundamente diferente da estadunidense, onde o conceito de colorismo ganhou
força. Enquanto nos EUA houve um regime formal de segregação e o surgimento de
uma elite negra de pele mais clara, no Brasil o modelo foi pautado pelo “mito da democracia racial” e uma extensa miscigenação entre
as classes populares. “Nunca se formou no Brasil uma elite preta, parda ou
mulata no poder econômico, político ou social. Então não faz sentido importar
essa categoria”, afirma.
Outro ponto de crítica levantado por ela é o uso do
colorismo para reforçar rivalidades entre pretos e pardos e deslegitimar o
pertencimento racial de pessoas de pele mais clara. “Essa lógica de que pardos
seriam ‘menos negros’ ou não mereceriam políticas afirmativas é falsa e
prejudicial. O ‘anticolorismo’ propõe deslocar esse discurso e focar nas
diferentes formas de racialização que atravessam gênero, orientação sexual,
classe e tonalidade da pele, sem hierarquizar essas vivências.”
Na visão da pesquisadora, pensar o colorismo como
oportunidade para refletir sobre a diversidade dentro da população negra é mais
produtivo do que usá-lo como régua de quem é “mais” ou “menos” negro. “No
Brasil, os indicadores [sociais] de pretos e pardos são semelhantes. As
diferenças existem, mas elas devem ser compreendidas como marcadores da
diferença, não como base para disputar lugar dentro da negritude.”
O polêmico movimento pardo
Movimentos que reivindicam uma identidade parda
afastada do movimento negro também têm ganhado força nas redes sociais. Apesar
de se apresentarem como novidade, essas construções têm raízes antigas,
associadas à ideia de um “limbo racial” no qual parte da população brasileira
não se sentiria nem negra, nem branca. Para Gabriela Bacelar, essa noção é,
antes de tudo, retórica, e reproduz confusões históricas que servem ao “mito da
democracia racial”.
“Temos uma estrutura de hierarquia racial muito bem
demarcada, a partir das experiências de racismo. É difícil compreender que um
grupo imenso de pessoas submetidas ao racismo ainda esteja em uma espécie de
‘não lugar’”, afirma.
Para ela, o sentimento de não pertencimento à
negritude está ligado a uma concepção restrita, muitas vezes limitada a traços
fenotípicos associados à população preta, que não comporta a complexidade do
que é ser negro no Brasil. “No Brasil, o negro é mestiço: com povos indígenas, fronteiriços,
europeus, asiáticos. Ao não compreender essa amplitude, a negrura é elaborada
como um espaço muito restrito, e aí, muita gente não cabe.”
Ela critica ainda a atuação de influenciadores
digitais que se colocam como “coaches da autodeclaração racial”, oferecendo
saídas simplificadas para um debate que deveria ser político, histórico e
coletivo. “Ninguém pode oferecer ser coach de autodeclaração racial. As pessoas
precisam chegar a isso por conta própria, compreendendo inclusive que pode
haver uma diferença entre sua elaboração subjetiva e a categoria do Estado”,
defende.
Gabriela defende que é possível reconhecer as
contradições da própria identidade sem deslegitimar as políticas públicas de
reparação. “Você pode se declarar como quiser — cabocla, negra, azul,
queimadinha de sol —, mas é preciso entender que as categorias do Estado têm
função específica, e se destinam a reparar a desigualdade racial histórica.
Isso não deveria ser difícil de compreender.”
Para ouvir e assistir
O BdF Entrevista vai ao ar de segunda a sexta-feira, sempre às 21h, na Rádio Brasil de Fato, 98.9 FM na Grande São Paulo, com transmissão simultânea pelo YouTube do Brasil de Fato.
(Brasil de Fato)
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