Esse resultado é considerado insuficiente frente à demanda do país,
especialmente em períodos críticos como o verão, as férias e o Carnaval. Mesmo
que tenha serviços de hemoterapia desde a década de 1940, o Brasil ainda não
conseguiu transformar
a doação em cultura. A explicação para essa realidade está fortemente conectada à história.
Da venda de sangue por entidades privadas à emergência da Aids –
passando por um comércio que tinha como alvo principal a população pobre e
precarizada – a prática foi marcada por abordagens distintas das adotadas em
países desenvolvidos e por um longo caminho até a consolidação da doação
voluntária.
Em entrevista ao podcast Repórter SUS, o diretor do Hemorio Luiz
Amorim traz elementos dessa história e afirma que o nível atual de
sangue doado não é suficiente para a demanda, mesmo dentro dos índices sugeridos
pela Organização Mundial da Saúde. “A OMS diz que qualquer país tem que ter no
mínimo 1% da população doando sangue. Isso é o mínimo, mas ela não diz qual é o
máximo.”
Na conversa ele explica que esses índices precisam ser determinados pela
realidade de cada nação. Países com maior envelhecimento populacional ou que
têm altos números de acidentes de trânsito, por exemplo, necessitam de mais
sangue. Nessa lista de aspectos que influenciam estão também os níveis de
violência e a complexidade dos serviços de saúde.
“Nós não sabemos exatamente qual é a demanda brasileira, mas, na minha
opinião, certamente não é 1,7% e nem 2%. Precisamos de mais. Talvez não 4%,
como na Europa, que tem uma população mais idosa que a nossa e uma complexidade
médica bem maior. Mas precisamos de pelo menos 2,5% ou 3%. Acho que essa seria
a nossa meta. Mas ninguém consegue sair de 1,7 para 3% em um ano ou dois.”
Um pouco da história
A doação
de sangue como conhecemos hoje começou a se consolidar globalmente na década
de 1940, impulsionada pela Segunda Guerra Mundial. Especialmente na Europa,
campanhas incentivavam a doação como um ato patriótico para salvar soldados e
civis. No Brasil, no entanto, a participação periférica no conflito moldou uma
abordagem diferente, que acabou se inclinando para a venda de sangue humano.
Em 1942, o país inaugurou seu primeiro hemocentro, mas mesmo antes
disso, a prática da doação remunerada já era uma realidade. O artigo História
da Hemoterapia no Brasil, publicado em 2005, resgatou um texto científico de
1937, em que médicos falavam sobre aspectos relacionados às práticas de
transfusão. O documento cita o pagamento de doadores e a não aceitação de
doações voluntárias.
Nas décadas seguintes o sistema de comercialização de sangue se
consolidou em território nacional. Até o fim dos anos 1970, a maior parte dos
hemocentros privados tinham foco nos interesses comerciais e no lucro. Havia um
forte estímulo para obtenção de matéria-prima entre a população das camadas
mais vulneráveis da sociedade. Além disso, o controle de qualidade era mínimo,
o que ampliava a propagação de doenças e questões sanitárias.
“Sempre foi uma tragédia ética”, ressalta Luiz Amorim. Ele conta,
inclusive, que a maioria dos locais privados de doação se estabelecia nas
periferias, uma forma de atrair a população mais pobre para a venda do
próprio sangue. A Baixada Fluminense, região periférica do Rio de Janeiro, era um dos
locais em que as redes privadas de coleta de sangue se proliferavam.
“Há um bicheiro muito famoso no Rio, chamado Natal da Portela, que tinha
uma rede de bancos de sangue com o nome dele. Ele fornecia sangue para os
hospitais públicos de todo o Rio de Janeiro. Quando eu comecei na residência
médica, o sangue chegava no hospital em que eu trabalhava com uma nova fiscal
do Banco de Sangue Natal da Portela”, relata Amorim.
A extinção da venda de sangue no Brasil começou a ser
desenhada em 1980, quando a Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia
(SBHH) liderou uma campanha contra a prática. Estudos indicam que, na época,
cerca de 80% da matéria-prima era adquirida de forma remunerada. A chegada da
epidemia de Aids em território nacional, na mesma época, também impulsionou a
urgência de maior controle do sangue doado.
Ainda em 1980, foi criado o Programa Nacional de Sangue e Hemoderivados
(Pró-Sangue). A política estabeleceu uma nova ordenação para o setor, com
diretrizes focadas na doação voluntária não remunerada e medidas para a segurança
tanto para quem doa quanto para quem recebe. Em 1988, a proibição da venda foi
colocada de maneira expressa na Constituição.
Mesmo com essas políticas, o país não conseguiu superar a
insuficiência de sangue até hoje. Parte do cenário, segundo Luiz Amorim,
tem explicação na estratégia da doação de reposição. No lugar de incentivar uma
cultura de doação, o Brasil tende a atender às urgências apenas quando elas
aparecem e, muitas vezes, quem fica responsável pelos apelos por sangue é a
rede de apoio dos pacientes e não o poder público.
“Não é uma opinião unânime, mas eu acredito firmemente que não vamos
conseguir ter um estoque de 3% se nos basearmos na solicitação de doadores por
aquelas pessoas que são internadas. Essa é uma obrigação da sociedade como todo,
que precisa ser mostrada como uma política pública”, enfatiza Luiz Amorim.
Para superar os desafios e aumentar os estoques, ele ressalta a
importância de campanhas contínuas de conscientização e a necessidade de
incentivo à doação
voluntária e altruísta. A missão também inclui facilitação do acesso e descentralização dos
locais de doação. O Brasil conta com estruturas bem equipadas nos grandes
centros, mas é preciso levar a possibilidade também aos municípios menores e
áreas não urbanas.
“A população brasileira é muito generosa. Aqui no Rio de Janeiro temos
mais de 2 milhões de pessoas que já doaram sangue só no Hemorio ao longo dos
anos. Tem muita gente que doa sangue. O que precisamos é facilitar a vida
dessas pessoas e ir onde elas estão”, aponta o especialista.
Quem pode doar?
Para doar é preciso cumprir alguns requisitos básicos. Estar em boas
condições de saúde, ter entre 16 e 69 anos e pesar no mínimo 50kg. No dia
anterior, é necessário descanso e boa alimentação. Além disso, a frequência das
doações também é controlada, para homens é estabelecido um intervalo de 60 dias
entre uma doação e outra; para mulheres o prazo é de 90 dias.
Resfriados também criam os chamados impeditivos temporários. A
recomendação é de que se espere sete dias após o fim dos sintomas para doar
sangue. Mulheres que acabaram de ter filhos estão liberadas para a doação 90
dias após o parto normal e 180 dias em caso de cirurgia cesariana. Quem está
amamentando deve esperar 12 meses.
Doadores e doadoras que tenham feito tatuagens ou pigmentações
definitivas devem aguardar um ano. Algumas vacinas também inabilitam a doação
por determinado período. A vacina da gripe deve ter intervalo de 48 horas antes
da coleta de sangue, por exemplo. Confira aqui a lista com prazo para todos os imunizantes.
O Brasil possui hoje mais de 2 mil serviços de hemoterapia, entre
centros de coleta, hemocentros, hemonúcleos, unidades de coleta e transfusão e
agências transfusionais. Acesse informações sobre os principais endereços
da rede.
(Brasil de Fato)
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