Nos últimos anos, especialmente
nos Estados Unidos, o rito tridentino se transformou em motivo de divisão entre
católicos, aprofundada depois que o papa Francisco (2013-2025), morto em
abril deste ano, impôs restrições a esse tipo de cerimônia.
O país abriga uma pequena mas
influente ala conservadora da Igreja Católica, que foi um dos principais focos
de resistência e oposição a Francisco durante seus 12 anos de
pontificado e do qual Burke, ex-arcebispo de St. Louis, é um dos principais
expoentes.
Agora, esses setores tradicionalistas, que defendem os antigos ensinamentos, rituais e costumes, de antes do Concílio Vaticano 2º, vêm pressionando o sucessor de Francisco, Leão 14, a reverter essas restrições e permitir o uso mais amplo da Missa Tridentina.
Após audiência privada com Burke em agosto, Leão 14 autorizou a celebração da missa deste sábado, o que foi interpretado por alguns como sinal de maior tolerância à liturgia tradicional. Mas o papa não fez promessas nem deu indícios de que pretenda reverter as restrições impostas por Francisco.
Em um momento em que
tradicionalistas e progressistas ainda buscam mais clareza sobre as posições do
novo papa em vários temas, o tema ganha relevância.
Nascido em Chicago, Robert
Francis Prevost foi eleito em maio como papa Leão 14 e é o primeiro americano a
comandar a Igreja Católica. Enquanto setores progressistas da Igreja esperam
que ele dê continuidade à visão reformista de seu antecessor, tradicionalistas
têm esperança de que adote uma linha mais conservadora.
"Podemos dizer que (a
questão da Missa Tradicional em Latim) é um tipo de teste para o papa Leão
14", diz à BBC News Brasil o especialista em teologia histórica Massimo
Faggioli, professor de Eclesiologia na universidade Trinity College, em Dublin,
na Irlanda.
"No início de seu
pontificado, muitos conservadores tentaram se convencer de que Leão 14 seria a
vingança contra o papa Francisco. Acho que agora estão percebendo que ele não é
o anti-Francisco (que esperavam)", observa Faggioli.
"Por isso, agora estão
esperando para ver o que fará a esse respeito (da Missa Tridentina)."
'Teologia
polarizada'
Além do uso do latim, o rito
tridentino tem várias outras características específicas da liturgia como era
celebrada antes do Concílio Vaticano 2º, entre elas os cantos gregorianos, o
padre voltado para o altar e de costas para os fiéis e a Comunhão recebida de
joelhos.
A cerimônia comandada por Burke
neste sábado é uma Missa Pontifical Solene, que é celebrada por um bispo e
representa a forma mais elaborada da Missa Tradicional em Latim, com rituais e
ornamentos especiais.
A missa faz parte da programação
do Summorum Pontificum, uma peregrinação anual a Roma realizada desde 2012 e
que reúne fiéis, sacerdotes e religiosos católicos do mundo inteiro devotos da
missa em latim e da liturgia tradicional, anterior à reforma do Concílio
Vaticano 2º.
No entanto, nos últimos dois
anos, os participantes não obtiveram autorização para celebrar a missa, em meio
às restrições ao rito romano tradicional impostas pelo papa Francisco.
Em 2021, Francisco publicou o "motu proprio" (documento papal) "Traditionis custodes", que impôs uma série de limitações à Missa Tridentina, entre elas a exigência de autorização explícita de um bispo, após consulta com o Vaticano.
Durante séculos, o latim foi a
língua oficial das missas católicas ao redor do mundo. No entanto, nos anos
1960, o Concílio Vaticano 2º, que tinha entre os objetivos aproximar os fiéis
da liturgia, trouxe uma série de mudanças, incluindo a permissão do uso de
línguas locais na celebração da missa.
A partir de então, a missa em
latim quase desapareceu. Na década de 1980, uma ordem do papa João Paulo 2º
(1978-2005) permitiu algumas exceções, mas foi Bento 16 (2005-2013) que, em uma
carta apostólica de 2007, relaxou as restrições, ampliando as situações em que
a Missa Tridentina poderia ser celebrada.
A decisão de Francisco de
endurecer novamente as restrições ao rito romano tradicional foi recebida como
um golpe por setores conservadores na Igreja.
É nesse cenário que seu sucessor
enfrenta uma campanha de tradicionalistas e cardeais conservadores, não apenas
dos Estados Unidos, mas também de outros países, para relaxar as limitações,
como já havia feito Bento 16.
Quando anunciou sua decisão, o
papa Francisco disse que a Missa Tradicional em Latim estava sendo usada de
maneira "ideológica" e explorada por aqueles que se opunham às
reformas mais amplas na Igreja. Francisco descreveu a resistência à sua decisão
como retrocesso.
Muitos dos defensores do rito
tridentino também rejeitam outras mudanças do Concílio Vaticano 2º, que
envolveram não apenas a liturgia, mas também aspectos como o papel da Igreja na
sociedade e as relações com outras religiões.
"Especialmente nos Estados
Unidos e no Reino Unido, ou seja, no mundo anglo-americano, a teologia católica
se tornou muito polarizada", observa Faggioli.
"Não apenas entre diferentes
visões da Igreja, mas também entre diferentes visões sobre qual poderia ser o
papel da Igreja na sociedade, na política, na cultura e assim por diante."
Motivação
ideológica x Experiência espiritual
Nem todos os adeptos da missa
tradicional têm motivação ideológica. É comum que ressaltem a beleza e
solenidade da cerimônia, que tem entre seus seguidores muitos jovens
conservadores.
"Acho que, para muitas
pessoas, na verdade isso não é politizado. Suspeito que seja uma questão
política para uma minoria", diz à BBC News Brasil o pesquisador de estudos
católicos Michael Sean Winters, colunista do jornal National Catholic Reporter.
Winters lembra que muitos dos que
frequentam essas celebrações são atraídos pela música e pela experiência
estética e espiritual.
No entanto, o analista ressalta
que outros veem na Missa Tridentina um ato político.
"Nos Estados Unidos, o
problema é que (o rito tridentino) foi sequestrado por pessoas com uma agenda
política. E essa agenda é uma resistência mais ampla ao Vaticano 2º. não apenas
à nova missa", afirma Winters.
Segundo Winters, isso também se
tornou um catalisador para a oposição ao papa Francisco.
Os Estados Unidos se tornaram o
principal foco de rejeição às tentativas de reforma de Francisco e à sua visão
liberal de uma Igreja mais inclusiva e em sintonia com atitudes modernas.
Essa visão pregava maior
tolerância em relação a católicos divorciados, LGBTQ e outros grupos que se
afastaram da doutrina. Também dava destaque para questões sociais, como a
compaixão com imigrantes, refugiados e marginalizados e o combate à pobreza e
às mudanças climáticas.
Críticos acusavam Francisco de
"semear confusão" nas doutrinas fundamentais da Igreja, em temas como
homossexualidade, aborto e indissolubilidade do matrimônio, e temiam que a
abertura ao engajamento secular pudesse enfraquecer a religião.
"Especialmente nos Estados
Unidos, nestes últimos anos, vimos um número significativo de católicos eleitos
no Partido Republicano, que fazem parte do governo de Donald Trump",
salienta Faggioli.
Segundo Faggioli, nesses círculos
há "uma certa visão da Igreja, que não é a do Vaticano 2º, que não é
adaptável à modernidade".
Entre os católicos no governo está o vice-presidente americano, J.D. Vance, que se converteu ao catolicismo em 2019 e é admirado pelos tradicionalistas americanos.
"O tradicionalismo litúrgico
está conectado a agendas políticas", diz Faggioli. "Nos Estados
Unidos, este é um problema para a Igreja e para a política nacional ao mesmo
tempo."
Estilo x
Visão
Leão 14 iniciou seu pontificado
ressaltando a importância de construir pontes e de esforços para promover a
unidade da Igreja.
Seus meses iniciais foram
discretos. Assim, sem grandes declarações ou atos concretos, qualquer gesto era
interpretado como um sinal dos rumos que poderia tomar.
Conservadores ficaram satisfeitos
quando o novo papa, que pertence à Ordem Agostiniana, optou por vestimentas
mais tradicionais do que as usadas por seu antecessor, que era Jesuíta.
Leão 14 também se mudou para o
Palácio Apostólico, retomando uma tradição quebrada por Francisco, que escolheu
morar na Casa de Hóspedes Santa Marta.
O papa é considerado mais
reservado do que seu antecessor e, nesse período inicial, tem evitado
provocações e feito gestos conciliatórios com críticos de Francisco, como
Burke.
No entanto, manifestações
recentes têm sugerido que as diferenças entre os dois papas são mais de estilo
do que de visão.
Nas últimas semanas, em
diferentes declarações, Leão 14 fez críticas ao tratamento "desumano"
de imigrantes nos Estados Unidos, à desigualdade e ao uso da fome como arma de
guerra. Também ressaltou a defesa dos pobres e o foco nos riscos das mudanças
climáticas.
Faggioli salienta que ainda é
cedo para saber o que a permissão concedida ao cardeal Burke para a missa deste
sábado significa.
"Não sabemos se este é o
início de uma revisão da política do papa Francisco sobre o tema",
ressalta Faggioli.
"Por enquanto, acho que
significa que o papa Leão 14 quer tentar lidar com eles (os setores
conservadores) de maneira mais diplomática do que o papa Francisco",
observa.
Winters observa que,
especialmente à medida que ficou mais velho, o papa Francisco ficou menos
tolerante com aqueles que resistiam a ele.
Para o analista, Leão 14 pode
tentar trazer "todos de volta a bordo", estendendo a mão aos críticos
de seu antecessor em um gesto de reconciliação.
"Mas eles (os críticos)
terão de embarcar em um barco que está sendo guiado pelo novo papa, que foi
eleito precisamente como alguém que continuaria as reformas iniciadas por
Francisco", afirma.
"Acredito que, sobre a
questão geral da Missa Tradicional em Latim, não é inconcebível que Leão 14
pense que Francisco puxou o Band-Aid muito rápido, e talvez relaxe algumas das
restrições", diz Winters.
"Não ficaria surpreso com
isso, mas também não ficaria surpreso se ele não mudar nada."
(Fonte: BBC)



Nenhum comentário:
Postar um comentário