
A partir da consolidação dessa urbanidade, a literatura brasileira veio
gozar da airosa simpatia dos mais amplos setores intelectuais, sedentos por
mudanças. O formalismo sede lugar a uma obra literária rebelde comprometida
mais com o significado do que com o conceitualismo; ela rasga a temática,
bucólica e puritana da estética parnasiana. Para misturar-se com o espaço
urbano.
Precisava-se, na época, de uma literatura que alavancasse o povo
brasileiro do estado de espirito conformista e lhe desse uma razão de
autoestima. Enfim, o lirismo "bem comportado" é substituído pela
miscigenação literária em que a forma subtrai o sentido da apresentação, empenhada
em descrever a estrutura dos mitos. Ou seja, os mitos constituindo uma
realidade social.
Portanto, o movimento modernista literário brasileiro, descortinou novas
possibilidades de representações literárias, deixando muitos escritores e
poetas diante do desafio de construir novos rumos para a comunicação com o
mundo.
Como lembrava o mestre Wilson Martins, o movimento modernista foi
inscrito num largo processo social e histórico, fonte de resultado de
transformações que extravasam largamente os seus limites estéticos, escritores
e artistas tomaram consciência muito cedo, do que os progressos técnicos e
científicos, de alcance da vida.
Portanto, essa realidade social é evidenciada, no sentido do homem
urbano moderno, como é o caso, dos mitos em que se valem os escritores
brasileiros nas suas obras de relatos místicos. Para ilustrar o que se diz a
rapsódia de Macunaíma, um herói sem nenhum caráter, uma narrativa de Mário de
Andrade. Compõe as vozes que revelam as raças, culturas e a política social do
povo brasileiro.
É na a “Carta pras Icamiadas,” que a paródia incorpora o mito da formosa
carta de Pero Vaz de Caminha que dá as primeiras notícias do Brasil, obviamente
do ponto de vista do navegar europeu. Marcado por tom irônico e crítico ao
invés de uma boa nova, a carta transmite às súditas, a Amazonas, mulheres
guerreiras da mitologia grega cujo nome indígena é “Icamiadas”, uma má noticia:
solicitando mais dinheiro. Isso, sem dúvida, constitui o político brasileiro
astuto, sagaz e dissimulado. Uma autêntica narrativa da realidade nacional.
A carta, também, representa a vida urbana do Brasil e a civilização de
São Paulo, produto da colonização europeia, pela ótica alcançada do índio,
negro e mestiços. São elementos marginais não contemplados pela cultura
oficial.
A realidade brasileira é, portanto, pensada pelo seu avesso de dois
brasis. Olhando-se criticamente. E deles, que Macunaíma, é um herói
incaracterístico, que o escritor consegue associar, na mesma narrativa, a
paixão pelo tropicalismo, que é lembrado nas canções de Caetano Veloso e
Gilberto Gil. Como bem observou Lévi-Strauss: “Assim como os ritos, os mitos
são intermináveis na literatura latino-americana”.
Cabe aqui, outro exemplo, como os mitos se apresentam nas obras
literárias. Os escritores digerem proporcionalmente seus deuses e heróis. Num
novo filão da narrativa moderna, para ficar um pouco livre das armadilhas do
capitalismo, o poeta Cunha Santos Filho, clama: “Dizei-me, Ovídio! Quem trouxe
os lobos das crianças? Por que Júpiter castigou, os que repeliram e os
pedintes! E quantos de nós pedimos silêncio! Por isso, nos obrigam a pisar nas
cores?
Como centro do seu mundo interior, o poeta incorpora nos versos os
deuses perversos, que embaralham a existência dos nascidos vivos e os coloca no
fogo das injustiças sociais, como se os deuses fossem indivíduos de uma
sociedade pitada com as cores do seu país.
Vê-se outro exemplo, como o poeta incorpora a mitologia grega nos seus
versos. Neles, o poeta exercita com fina ironia, destrói as máscaras da
hipocrisia e da discriminação imposta pelo poder político, e faz o retrato de
uma sociedade perversa, com base na realidade social e psicológica das crianças
que morrem à míngua nas periferias. Veja como ele retrata: “Porque ris, Brasil,
enquanto Cronos janta teus filhos”. “Ou Ri, mas a água de Júpiter haverá de
sobrevoar o mundo e carregar para o olimpo todas as crianças deste país”!
Os mitos gregos e brasileiros, apresentados na literatura, 90 anos
depois do movimento modernista, percebe-se o quanto é atual. Sem dúvida, foi um
grito de alerta e uma denúncia para os quais os poderes públicos não deram
ouvidos, optando pela miséria, e, sobretudo, imprevisível neste atual governo,
que ideologicamente com suas asneiras, ignora as manifestações de estudantes,
que clamam democraticamente por uma educação mais justa.
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