Depois de muito se discutir a questão do armamento
da população no Brasil, o novo decreto do presidente Jair Bolsonaro (PSL) que
facilita o porte de armas pode acabar sendo derrubado não por questões ligadas
à segurança ou violência, mas por uma situação jurídica.
O
decreto, assinado pelo presidente no dia 7 de março, amplia em muito as atuais
condições que autorizam o porte de armas. As medidas incluídas no texto
facilitam que certos profissionais - como advogados, caminhoneiros e políticos
eleitos, por exemplo - portem armas de fogo carregadas.
O
texto também aumenta o número de munições que podem ser compradas por cidadãos
que tenham autorização.
Mas,
menos de uma semana depois, um parecer da Câmara dos Deputados disse que o
decreto contém ilegalidades e o Supremo Tribunal Federal (STF) analisa uma ação
que questiona sua constitucionalidade.
Nesta
sexta-feira (10), a ministra Rosa Weber, do STF, resolveu dar oportunidade para
o presidente explicar o decreto antes de decidir sobre a ação que pede a
anulação do documento, pedida pela Rede Sustentabilidade. Ela também vai ouvir
o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, e a Advocacia-Geral da
União (AGU).
Ou
seja, o decreto está sob questionamento em duas frentes: ele pode acabar sendo
suspenso total ou parcialmente pelo STF, ou pode ser derrubado pelo Congresso
Nacional, que também tem instrumentos legais para fazê-lo.
Argumentos
técnicos - Mas
afinal, quais seriam os motivos para isso?
A
ação da Rede diz que o decreto é inconstitucional porque o presidente
extrapolou seus poderes ao tentar contrariar as leis já existentes. Essa é
também a conclusão do parecer da Câmara, que destaca diversas ilegalidades no
decreto. Especialistas em direito constitucional ouvidos pela BBC News Brasil
concordam com essas avaliações.
"Não
há dúvida nenhuma de que o decreto é escancaradamente ilegal. E por ser ilegal
ele é inconstitucional", diz Marcos Perez, professor da Faculdade de
Direito da USP (Universidade de São Paulo).
Ele
explica: o Brasil já possui uma lei sobre armamento e
o presidente tem o poder de fazer um decreto para regulamentá-la, ou seja,
especificar detalhes que são tratados de maneira ampla na lei e terminar como
ela será aplicada. Mas seu decreto não pode contradizer essa lei, porque a
Constituição determina uma hierarquia de normas: um decreto (criado pelo
presidente) está abaixo de uma lei, (criada pelo Congresso).
Ou
seja, ao ter ilegalidades, o decreto é automaticamente inconstitucional.
"Ao
tentar contrariar as leis com um decreto, o presidente não está apenas
regulamentando, ele está extrapolando", afirma Luis Guilherme Arcaro
Ponci, professor de Direito Constitucional da PUC-SP (Pontifícia Universidade
Católica). Segundo ele, essa atitude fere a separação de poderes. "Mudar
uma lei é algo que não pode ser feito por decreto"
A
ilegalidade mais evidente, apontam os constitucionalistas, é o trecho que
facilita porte para certas profissões (advogados, caminhoneiros, políticos
eleitos, entre outros).
"O
Estatuto do Desarmamento, que é a lei vigente, estabelece a possibilidade de
porte para profissionais que comprovarem efetiva necessidade", explica
Ponci. "Ao facilitar o porte para toda uma categoria, você elimina a
exigência de comprovar necessidade, o que é ilegal."
"Isso
cria uma presunção de necessidade, está avançando o sinal", afirma Marcos
Soares, da Comissão de Segurança Pública da OAB-SP. "Independentemente de
ser a favor ou contra [o porte de armas], é preciso respeitar a questão da
hierarquia da lei a separação dos Poderes."
Segundo
ele, criar uma nova política em relação às armas contrária a lei existente é
algo que necessariamente precisaria ser feito pelo Legislativo. Ou seja, o
governo deveria propor um projeto ao Congresso e articular para aprová-lo.
"Um
decreto não pode contrariar a própria lei que pretende regulamentar", diz
Ponci.
"Se
você tem uma lei federal cujo objetivo é restringir o acesso, você não pode
ampliá-lo por decreto. Isso precisaria ser discutido pelo Legislativo, a lei
teria que ser revogada. Hoje você tem muitos projetos de lei que pretendem
alterar o Estatuto do Desarmamento", diz ele.
Principais
pontos - A
liberação de porte para várias categorias profissionais pode ser o ponto mais
claramente ilegal, mas não é o único, segundos os juristas.
Ponci
cita, por exemplo, a facilitação de porte para "moradores de áreas
rurais".
"No
interior de SP, há áreas consideradas rurais em que há condomínios de luxo. Ter
uma chácara a 10 km da cidade é muito diferente de ser um produtor rural em uma
área afastada. Não pode haver presunção (de necessidade de armas) em situações
tão distintas", diz Ponci.
O
parecer da Câmara dos deputados também aponta outros trechos do decreto que
contrariam a lei vigente.
O
decreto não estabelece validade para o porte, nem área de vigência – e a
determinação desses dois fatores é exigida pela legislação. O documento da
Câmara também aponta que o decreto amplia o porte para todos os praças das
Forças Armadas, um assunto que deve ser regulado pela própria Marinha, Exército
e Aeronáutica, e não pelo presidente da república.
O
Senado também elaborou uma nota técnica apontando diversos problemas no
decreto. Nela, a Casa destaca que não está questionando "o mérito e a
razão" das medidas mas o "extravasamento" de poder que o decreto
representa – ou seja, o que está em discussão não é a questão do armamento, mas
o possível abuso de poder do presidente ao tentar forçar uma decisão contrária
à lei sem passar pelo poder Legislativo.
O
que acontece agora? - Tanto
o Congresso quanto o STF podem derrubar o decreto do presidente.
A
ação da Rede no STF é uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) - tipo de ação de inconstitucionalidade - que pede uma decisão liminar
(em caráter de urgência) parar suspender o decreto. A ministra Rosa Weber deve
decidir sobre o pedido depois de ouvir o presidente Jair Bolsonaro – ele tem
cinco dias para explicar o decreto a partir da data em receber a notificação da
Corte, o que ainda não ocorreu.
Em
um evento na tarde de sexta (10), Bolsonaro disse que se o decreto "é
inconstitucional, tem que deixar de existir. Quem vai dar a palavra final vai
ser o Plenário da Câmara. Ou a Justiça".
Há
alguns caminhos que podem ser seguidos pela ministra Rosa Weber em sua decisão.
Ela pode:
Suspender
o decreto total ou parcialmente em decisão liminar e encaminhar a ADPF para
avaliação pelo plenário do STF
Negar
a liminar e encaminhar a ADPF para o plenário - Encaminhar
a liminar para avaliação do plenário (o que os analistas dizem ser improvável).
Não
acatar a ADPF, caso em que a ação nem chegaria a ser avaliada pelo colegiado de
ministros
Independentemente
da decisão do Supremo, o Congresso também tem mecanismos para suspender o
decreto. Como explica Marcos Perez, da USP, seria preciso um decreto legislativo
para revogar o ato do presidente.
"É
algo relativamente fácil, seria necessário ter maioria simples na Câmara e no
Senado", explica Luis Ponci, da PUC.
Os
constitucionalistas afirmam que o Executivo extravasar seu poder em um assunto
como essa não é uma questão marginal. "São questões fundamentais para o
Estado de Direto, a separação do Poder, a hierarquia das leis".
Marcos
Soares, da Comissão de Segurança Pública da OAB-SP, acredita que o STF deve
barrar o decreto, ao menos nas partes que contrariam a legislação. "Editar
um decreto que não será efetivo gera uma insegurança, uma confusão na
população", diz.
Para
Marcos Perez, da USP, a questão exige um debate longo e editar um decreto
"que provavelmente será derrubado" é um "desserviço".
"Claro
que pode ser um factóide (por parte da Presidência), para dizer 'eu tentei
fazer, mas o Congresso e o Supremo não deixaram", diz Perez. "Se as
instituições estiverem funcionando, ele será suspenso ao menos em parte."
(BBC)
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