Luciana* tinha dez anos quando começou a
trabalhar. Ela saiu da casa da avó e foi morar com os empregadores — a
empresária e o marido. Durante o dia, a menina cuidava do bebê do casal e, à
noite, fazia biscoitos na fábrica dos patrões, uma pequena empresa familiar.
Outras tarefas domésticas, como cozinhar, faxinar e lavar roupas, faziam parte
da rotina.
Pelos serviços, a criança recebia R$ 30 por mês, valor entregue à avó que,
segundo informações do processo, acreditava que a menina teria uma vida melhor
morando com aquela família. Ainda criança, Luciana dormia numa rede, num quarto
sem janelas, dividido com outra jovem, na residência dos exploradores.
“Eu trabalhava de seis da manhã até dez
horas da noite”, conta, sobre os serviços realizado na casa da família. A
conversa com o Brasil de Fato foi realizada por telefone. A
reportagem chegou até ela após acessar o processo judicial. “Quando ele [o
bebê] ia dormir, eu ia para a fábrica ajudar as meninas”, lembra. Junto das
funcionárias da fábrica de biscoitos, Luciana trabalhava até o início da
madrugada.
Os abusos começaram em 1997, mas o caso
só chegou à Justiça em 2024, quando a vítima, com 37 anos, procurou auxílio
jurídico para receber o salário de um mês. Ela não morava mais na casa dos
patrões, mas ainda trabalhava para eles, agora por um valor abaixo do salário
mínimo.
Os empregadores se recusaram a realizar
pagamento porque, naquele mês, Luciana havia faltado por três dias para cuidar
do filho doente, que tinha apenas um ano. Descontadas as faltas, ela recebeu
apenas R$ 101 como pagamento. Por sugestão do marido, ela procurou a advogada
Livia Nascimento, mestre em direitos humanos pela Universidade Federal da
Paraíba (UFPB).
“Ela desabafou chorando muito, relembrando tudo que tinha passado e nós explicamos
que o caso dela não era uma simples demanda trabalhista, mas, sim, um caso de
exploração infantil em condição análoga à escravidão”, conta a advogada.
Na
sentença, a juíza Giselle Bringel de Oliveira Lima David estabeleceu
o valor de R$ 70 mil em indenização pelos danos morais do trabalho infantil
análogo a escravidão e R$ 5 mil de danos pela falta de proteção à maternidade,
já que a vítima não teve nenhuma garantia quando se afastou do trabalho após o
nascimento dos filhos.
No processo, Nascimento pede o valor total de R$ 336.955,08, incluindo a
correção dos salários defasados. A empresária ainda pode recorrer.
“Nunca
um salário completo”
Luciana chegou na casa onde foi
explorada para cuidar do primeiro filho da família. Quando a patroa teve o
segundo bebê, a jovem continuou fazendo o serviço de babá, somado às outras
tarefas, tudo em troca de um valor irrisório. As três refeições que ela fazia
na casa da família eram descontadas do pagamento.
“Na época, começou a me pagar R$ 30, aí
depois R$ 600, aí depois subiu para 1.000, mas nunca um salário completo”, diz.
Aos 18 anos, a jovem casou-se e foi viver com o marido, mas continuou
trabalhando na empresa de biscoitos e recebendo um salário abaixo do valor de
mercado. As provas juntadas ao processo indicam que, em 2023, Luciana recebia
R$ 1,1 mil e, em 2024, 1,2 mil.
“Não obstante, o salário mínimo nacional
em 2023 era de R$ 1.302,00 (até 30/04/2023) e R$ 1.320,00 (a partir de
01/05/2023), e em 2024 era de R$ 1.412,00. Desse modo, o salário recebido pela
Reclamante foi, de fato, inferior ao salário mínimo legal”, alerta a juíza, no
texto da sentença.
A jornada de trabalho se estendia de
segunda a sexta-feira, das 6 às 18h, com pausa de cinco minutos para almoço,
segundo o processo. Aos sábados, Luciana trabalhava por meio período, sem
intervalo. Durante todos os anos de prestação de serviço, a vítima não teve
nenhum direito trabalhista assegurado, como férias, 13° salário, contribuições
previdenciárias e recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
(FGTS).
“Como
se fosse da família”
A história de Luciana reúne todos os
elementos da escravidão contemporânea:
jornadas exaustivas, quartinho “da empregada”, negligência e a alegação, por
parte dos patrões, de que a vítima era “como se fosse da família”.
Para a Justiça, essa justificativa está
muito distante da realidade à qual Luciana foi submetida nos anos em que viveu
naquela residência. Na sentença, a juíza destaca que, enquanto os filhos da
família tinham acesso aos estudos, Luciana só foi matriculada em uma escola aos
15 anos.
“A discrepância de tratamento em relação
às crianças ‘de sangue’ da família é um forte indicativo de que a reclamante
era vista e tratada como mão de obra barata e disponível, e não como um membro
da família em igualdade de condições”, ressalta a magistrada.
A humilhação também fazia parte da
rotina. Ela diz não esquecer de certa noite, quando encontrou a família reunida
no quintal e o patrão lhe ofereceu um prato de comida. “Quando eu coloquei na
boca, começa todo mundo a rir. Aí eu disse: ‘oxe, por que é que vocês estão
rindo?’. Ele tinha cozinhado arroz com ração de cachorro para mim comer”.
As lembranças da vítima se somaram às
outras provas no processo contra a família. “Tinha muita prova, tinha foto, eu
com eles”, diz. “E tinha meu corpo queimado lá dos fornos”, completa. Por falta
de equipamentos adequados para a tarefa na fábrica, ela sofreu queimaduras nos
braços. Outras mulheres que prestaram serviços para a família confirmaram, em
depoimento à justiça, que Luciana, quando vivia na casa, “não tinha hora
determinada de trabalho, estando sempre à disposição”.
“Trata-se, portanto, de vínculo de emprego doméstico e comercial
que extrapola as condições mais basilares e aceitáveis de tratamento humano,
atrelado a um cenário de degradação de vida e dependência de toda uma
existência em prol de uma família, que afronta a dignidade da trabalhadora e
seus direitos fundamentais desde a mais tenra idade”, declara a juíza, no texto
da sentença.
A advogada Livia Nascimento, que tem
mais de 10 anos de militância na área do Direito Antidiscriminatório, remonta
às raízes das relações trabalhistas no Brasil e celebra a relevância histórica
desta decisão. “As consequências de um país ter fincado suas bases em relações
de poder entre pessoas brancas e negras e indígenas repercute na precarização
da vida dessa população ainda hoje”, diz.
Uma pesquisa do Departamento
Intersindical de Estudos e Estatísticas (Dieese), divulgada em 2022, revela que
as mulheres representam 92% das pessoas ocupadas no trabalho
doméstico no Brasil. Dessas, 65% são mulheres negras, como Luciana.
Muitas saíram de casa cedo para cuidar dos filhos de outras pessoas.
“Por isso, justifica-se a relevância de
uma sentença condenatória que reconhece essas relações de exploração e violação
sistemática de direitos e pune os responsáveis”, afirma a advogada.
Para o advogado Carlos Augusto Matos,
que também atuou no processo, “embora nenhuma indenização consiga reparar todos
os danos mentais e físicos, para além de seus direitos trabalhistas, é uma
grande conquista a ser celebrada”.
Empresa
nega acusações e vai recorrer na justiça
Em resposta ao Brasil de Fato,
a empresa R&R Coisas do Forno nega as acusações. Abaixo, a resposta:
Em resposta às recentes
notícias sobre o processo trabalhista em face da empresa R&R COISAS DO
FORNO e sua proprietária, ambas vêm a público esclarecer os fatos e refutar,
com veemência, as acusações de trabalho infantil análogo à escravidão.
Desde o início, a relação com a Reclamante foi
marcada por acolhimento e afeto. De fato, a Reclamante residiu por um período
na casa da família, entre o período de 1997 e 1999, há quase 30 anos atrás,
onde foi tratada com dignidade, carinho e auxílio mútuo. A relação nunca foi de
escravidão ou violência, mas de amizade e cumplicidade, que se estendeu ao
longo dos anos, com a Reclamante retornando à convivência e ao trabalho em
diferentes momentos, já na vida adulta.
É fundamental reiterar que:
- A Reclamante sempre teve liberdade de ir e vir.
- Seu acesso aos estudos jamais foi impedido.
- Todo o serviço prestado foi devidamente remunerado.
A história da nossa família é construída com
trabalho, honestidade e superação. Começamos do zero, de forma humilde, e hoje
somos uma pequena empresa familiar que luta para crescer de maneira justa e
transparente, prezando pela ética em todas as relações.
No processo, infelizmente, não foi possível
apresentar toda a documentação necessária para o esclarecimento integral dos
fatos, em decorrência do transcurso de quase 30 anos. Por fim, destaca-se que a
sentença não é definitiva e ainda será submetida à recurso, oportunidade à qual
seguiremos confiantes em sua reforma.
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