sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Explosões e sumiço dos bichos: Eneva ignora indígenas e afeta territórios ao explorar gás natural

Primeiro, veio um clarão ao longe, no fundo da mata. Depois, alguns animais desapareceram e, por fim, chegaram as onças famintas para perto da aldeira. Foi assim que a Eneva S.A., a maior empresa de exploração de combustíveis fósseis na região amazônica, anunciou-se para os indígenas que habitam o território indígena Gavião Real, no município de Silves, na região leste do Amazonas.

“A gente via quando subia um clarão. A gente se admirava, não sabia o que era”, conta Ivanilde dos Santos, indígena Mura, moradora da aldeia Santo Antonio, uma das comunidades indígenas na área afetada pelas operações da empresa. “Olha, está saindo fogo, estão tocando fogo em roçado. A gente achava isso”, lembra.

 Tempos depois, circulou pela aldeia Santo Antônio a informação de que os clarões eram resultado de explosões causadas no processo de perfuração de poços de retirada de gás. Mas a confirmação, mesmo, os indígenas nunca tiveram.

Como se ali fosse terra inabitada, a Eneva chegou sem conversar com os moradores que vivem espalhados por sete aldeias no entorno dos campos de exploração de gás e petróleo do chamado Complexo do Azulão. A instalação da empresa na região envolveu órgãos públicos em várias instâncias. Nenhum deles lembrou de avisar os indígenas. Eles não foram consultados, nem chamados para qualquer audiência pública.

A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) realizou o leilão dos blocos destinados à pesquisa e exploração. O Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) fez o licenciamento ambiental do empreendimento. A Prefeitura Municipal de Silves acolheu a empresa naquelas terras.

Os Mura, como Ivanilde, são maioria, mas vivem também, no território, indígenas Munduruku e Sateré-Mawê. Eles caçam, pescam, colhem frutos e transitam na área que já foi homologada, mas ainda não demarcada.

“Um termo de conversa assim com a gente, a empresa nunca quis ter”, conta o cacique Jonas Mura, que lidera o movimento indígena pelo reconhecimento do território. “Em primeiro lugar, ela nunca quis ter. E, depois, quando eles vieram, assim, tentar um assunto com a gente, já estava em processo”, diz, sobre as operações da Eneva na área.

A exclusão dos Mura, Munduruku e Sateré-Mawê dos debates sobre os impactos em seus territórios fere a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), um tratado internacional de garantia de direitos para os povos indígenas.

O documento determina que os governos devem realizar consulta prévia, livre e informada aos povos afetados por empreendimentos em seus territórios. No Brasil, essa convenção foi aprovada pelo Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho de 2002, e passa a vigorar a partir de 25 de julho de 2003.

“Ela [a convenção] dá o direito e ordena o próprio Estado sobre como é que ele deve atuar junto aos povos indígenas na questão desses interesses para dentro dos territórios”, ressalta Mariazinha Baré, coordenadora geral da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam). “A partir do momento que viola os nossos direitos, viola nossos territórios, viola nossos modos de vida, viola a questão ambiental, viola a questão cultural, enfim, é uma série de violações que que inicia justamente pelo próprio Estado não cumprir com uma prerrogativa da qual ela é signatária”, diz.

Gente e bicho sem caça

Para instalar os dutos por onde passa o gás, a empresa abriu uma clareira na mata fechada. Saíram as árvores, entraram as máquinas, com seus barulhos e homens transitando pela floresta.

“As mulheres começaram a perder a sua privacidade, por exemplo, de estar lavando roupa na beira, de estar indo colher uma lenha sozinha”, conta o cacique.

O trânsito de homens e ruído das máquinas e veículos afugentou também os pequenos animais, como pacas e porcos do mato. “Até as cotias, que eram mais fáceis [de ver], agora quase a gente não vê mais”, lamenta Ivanilde.

“Ali onde a gente conseguia pegar uma caça, a gente já não consegue mais”, diz Jonas. Essas espécies fazem parte da dieta dos indígenas. A caça é uma prática antiga, voltada à subsistência, e não chega a afetar o equilíbrio da biodiversidade. Se os pequenos animais fazem falta na dieta dos Mura, também interferem na rotina alimentar das onças, que passaram a ir mais longe para buscar as suas presas.

O cacique Jonas Mura, na produção de farinha em sua aldeia – Arquivo pessoal

“Ela veio aqui”, conta Ivanilde dos Santos, indígena Mura, que testemunhou, numa noite de 2023, uma onça levar um dos seus cachorros de estimação. “E agora a gente fala para as crianças não irem mais brincar, como eles brincavam”, diz.

Apresentado em 2023, o Relatório de Impacto Ambiental (Rima) elaborado pela Eneva para licenciamento da instalação e operação da Usina de Petróleo e Gás Natural e da operação da Termelétrica, sequer menciona os indígenas daquela área. O documento apresenta as características ambientais, menciona a presença de ribeirinhos e lista os impactos na área de operação da empresa, como a perda de cobertura vegetal e a interferência na fauna.

‘Bandeirante do petróleo’

Publicado em 1 de outubro, o relatório The Money Trail Behind Fossil Fuel Expansion in Latin America and the Caribbean, ou O rastro do dinheiro por trás da expansão dos combustíveis fósseis na América Latina e no Caribe, em tradução livre, aponta a Eneva como uma “bandeirante do Petróleo”, em referência ao movimento dos exploradores e colonos dos séculos passados. A empresa, segundo o relatório, é responsável por 72% da área de exploração fóssil no bioma amazônico, consolidando-se como principal operadora de campos de gás na região.

“A Eneva desponta como a maior empresa privada brasileira na expansão fóssil amazônica. Entre 2022 e 2024, captou US$ 2,72 bilhões em financiamentos, sendo 75% desse montante fornecido por bancos nacionais — com destaque para Itaú, BTG, Bradesco e Grupo XP”, aponta a publicação, lançada pelo Instituto Internacional Arayara, do Brasil, e pela organização alemã Urgewald, em parceria com Conexiones Climáticas (México), FARN (Argentina) e Amazon Watch (Peru).

Na avaliação do engenheiro ambiental e gerente de transição energética da Arayara, John Wurdig, a consulta aos povos indígenas deveria vir antes mesmo do leilão dos blocos de exploração, para que essas comunidades pudessem ser inseridas desde o início na tomada de decisão sobre suas terras.

“Infelizmente, a ANP não faz o que nós gostaríamos muito, que era uma consulta prévia, livre e informada às comunidades tradicionais antes do leilão”, afirma Wurdig.

Presença indígena e demarcação

O território indígena Gavião Real, fica quase totalmente sobreposto aos dos blocos de exploração de petróleo e gás adquiridos pela Eneva S.A. em um leilão realizado pela ANP. Antes, a área pertencia à Petrobrás.

De acordo com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), a área está em fase de qualificação inicial do processo demarcatório.

“Com relação às licenças ambientais dos empreendimentos da empresa Eneva na região, como a atividade de exploração de gás denominada Campo Azulão, cabe esclarecer que não foi solicitada da autarquia indigenista manifestação prévia à liberação da licença por parte do órgão ambiental responsável, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam)”, informa a Funai.

“Somente na área do território Gavião Real há ocorrência de 8 áreas de terra preta, onde numa dessas áreas está localizado um antigo cemitério indígena e também é um dos Sítios Arqueológicos da região”, informa um relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT). As áreas de terra preta são regiões de presença indígena.

Segundo relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), publicado em 2025 sobre as violências de 2024, “o governo do Amazonas e a empresa Eneva insistem em desconsiderar a existência dos povos indígenas na região, mas, segundo os dados do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] de 2022, há 1.066 indígenas vivendo em Silves”. Jonas Mura, no entanto, estima que a população indígena ultrapasse 2 mil pessoas, já que na área existem isolados e comunidades em locais de difícil acesso.

O que dizem os órgãos públicos

O relatório de impacto informa que, ao longo dos estudos, foram realizadas 18 (dezoito) entrevistas com representantes do poder público local. O Brasil de Fato entrou em contato com a prefeitura de Silves, mas não teve resposta até a publicação deste texto.

A ANP informa que “atende a todas as determinações dos órgãos ambientais, inclusive com relação à exclusão de áreas sobrepostas a unidades de conservação e/ou a áreas indígenas e quilombolas”.

“Com relação especificamente à consulta livre, prévia e informada (CLPI), nos termos da Convenção 169 da OIT, o entendimento da ANP é de que, para que ela ocorra, são necessárias informações que só estarão disponíveis depois que o contrato é assinado e a área é avaliada. Ou seja, não é possível realizá-la, pela ANP, na etapa prévia à licitação”, informa a nota da agência enviada à reportagem.

Tanto a Eneva S.A. quanto o Ipaam não responderam às questões enviadas até a publicação deste texto. O espaço segue aberto.

(Brasil de Fato)

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