O Papa Francisco não chega a comover. Elas não vão à
missa aos domingos, defendem o Estado laico, a contracepção, o casamento gay e,
há quase 25 anos, o aborto.
O mais
antigo movimento no Brasil de católicas que pregam os direitos sexuais e
reprodutivos das mulheres nasceu entre um grupo de jovens que se inquietavam
com questões que não ecoavam na Igreja, ainda no início dos anos 90.
"Nós
falávamos dos pobres, mas não olhávamos para as mulheres", diz Regina
Soares Jurkewicz, coordenadora do Católicas pelo Direito de Decidir (CDD),
referindo-se à Teologia da Libertação, corrente progressista que norteava a
atuação das pastorais sociais das quais ela, a professora da PUC-SP Maria José
Rosado-Nunes e a teóloga Luiza Tomita, também fundadoras, faziam parte nos anos
80.
Em
1993, elas conheceram a médica uruguaia Cristina Grela - hoje parte da equipe
do Ministério da Saúde do Uruguai, único país da América do Sul onde o aborto
foi totalmente legalizado, em 2012, até a 12ª semana de gestação - em alguns
casos, esse limite é maior.
Naquela
época a ativista era integrante do grupo americano Catholics For Choice - que
completa 45 anos em 2018 - e fazia um périplo pelo continente na tentativa de
organizar um movimento semelhante na região. Além do Brasil, há "Católicas
por el Derecho a Decidir" em outros dez países latinoamericanos.
Depois de
um evento na Igreja do Carmo, em São Paulo, o movimento foi lançado no dia 8 de
março daquele ano. Está presente hoje em 14 Estados e atua em duas frentes - a
educativa, com a produção de material didático para o ensino da religião e a
realização de seminários para formação de multiplicadoras, e política,
organizando debates, marchas e idas a Brasília.
Em uma de suas campanhas mais recentes, o CDD foi às ruas em novembro para protestar contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 181, que pode criminalizar o aborto mesmo nos casos em que ele hoje é permitido, como em gestações resultantes de estupro.
Entre
seus membros, leigos e religiosos, está a freira feminista Ivone Gebara, punida
pelo Vaticano em 1995 por defender publicamente em uma entrevista a
descriminalização e a legalização do aborto.
Na
época à frente da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Joseph Ratzinger
- que anos depois se tornaria o papa Bento 16 - determinou que ela voltasse à
Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, onde obteve seu doutorado, para
passar dois anos reclusa, em "reeducação teológica".
Por não
estar ligado à estrutura da Igreja, contudo, o movimento em si está fora dos
limites de repreensão da hierarquia católica. As perseguições também não são
frequentes, diz Jurkewicz.
O que há
são questões pontuais como a de Gebara e a que ela mesmo enfrentou quando
publicou seu doutorado. Logo após a apresentação do trabalho, que reunia 21
casos de abuso sexual de mulheres por padres, a assistente social foi demitida
da universidade em que lecionava, ligada à diocese de Santo André.
O
antagonismo mais organizado vem de setores conservadores da religião, de
instituições como Arautos do Evangelho e Opus Dei.
As
"ameaças", dizem, chegam geralmente por e-mail ou pelas redes sociais.
"São mensagens dizendo que a gente vai para o inferno, essas coisas. Nada
grave."
O
aborto sempre foi considerado pecado? - Para
defender o aborto dentro da lógica religiosa, as ativistas argumentam que o
início da vida sempre foi um ponto de divergência dentro da fé católica.
Nos
primeiros séculos do cristianismo, exemplifica Jurkewicz, houve Santo Agostinho,
que condenava o controle de natalidade e o aborto por romperem a conexão entre
ato conjugal e procriação, mas que afirmava que ele não era um ato de
homicídio.
Seus
escritos a respeito do Êxodo diziam, sobre o feto, que "não existe alma
viva em um corpo que carece de sensações". Ele nunca chegou a uma
conclusão sobre o momento em que a vida começava.
Já o
teólogo Tertuliano defendia em 160 que a concepção era o início de tudo e, por
isso, condenava a prática. "Não
é um dogma de fé, é uma questão disciplinar", diz ela, acrescentando que
nos cadernos penitenciais da Igreja na Idade Média o aborto era colocado entre
outros pecados sexuais.
Os Cânones
Irlandeses de 675, por exemplo, previam 14 anos a pão e água para aquele que
tivesse relação sexual com a vizinha e três anos e meio para quem destruísse um
embrião no ventre. O tema
passou a ser oficialmente condenado pela Igreja apenas em 1869, a partir de um
boletim do papa Pio 9.
A
posição da Igreja hoje e o papa Francisco - A
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em sua nota "Pela vida,
contra o aborto", de abril deste ano, afirma que "a tradição
judaico-cristã defende incondicionalmente a vida humana".
O texto
defende a "integralidade, inviolabilidade e a dignidade da vida humana
desde a sua concepção até a morte natural" e condena "todas e
quaisquer iniciativas que pretendam legalizar o aborto no Brasil".
"A
posição sempre foi a mesma: defender e cuidar da vida humana desde a sua
concepção. A vida humana é preciosa demais para ser eliminada ou
descartada", diz o bispo auxiliar de Brasília e secretário-geral da CNBB,
dom Leonardo Steiner, em nota enviada à BBC Brasil.
O papa
Francisco manteve o entendimento que herdou dos antecessores, apesar de ter
autorizado, em novembro do ano passado, que padres pudessem perdoar o aborto -
prerrogativa que antes era restrita a bispos ou confidentes especiais da
Igreja.
"A
ideia (por trás da iniciativa do Papa Francisco) é mais de compaixão, de
perdão. A Igreja não trabalha com direitos (para as mulheres)", diferencia
Jurkewicz.
As
ativistas do CDD são críticas em relação ao papel do feminino na Igreja
Católica, que limitaria "os espaços de poder e saber" aos homens. "A
posição oficial guarda a tradição da mulher como mãe, está carregada de
atributos de gênero. Mesmo as freiras são vistas como 'mães espirituais'",
ressalta.
São
Tomás de Aquino - O
princípio do "recurso à consciência" é outro argumento usado pelas
ativistas para defender suas bandeiras e o primeiro destacado pelo movimento do
qual se originou o CDD, o americano Catholics for Choice (CFC).
A ideia é
que cada católico tome decisões guiadas pelo pensamento individual, ponderando
o efeito de suas ações sobre si e sobre o próximo, e que respeite o arbítrio do
outro. "São
Tomás de Aquino afirmava que nossa consciência não é um atributo das
instituições", diz Amanda Ussak, diretora do programa internacional do
CFC.
A
organização surgiu nos Estados Unidos em 1973, ano em o aborto foi legalizado
no país após decisão da Suprema Corte no emblemático caso Roe v. Wade.
Prevendo
uma onda de reações contrárias de instituições religiosas, um grupo de
católicas decidiu se reunir e se contrapor às pressões por recuos. Uma década
depois, o movimento deu início à sua expansão internacional.
A
iniciativa, afirma Ussak, veio da percepção de que criminalização do aborto
prejudicava especialmente as mulheres pobres, grupo que ainda hoje registra o
maior número de mortes por complicações em procedimentos feitos em clínicas
clandestinas.
Hoje a
organização atua também na Europa e na África, dando treinamento às
organizações para comunicar as campanhas e apoio às iniciativas para mudar as
leis locais. Um
exemplo recente de atuação nesse sentido aconteceu no Chile, onde o Congresso
aprovou, em agosto, a descriminalização em caso de risco de vida da mulher,
inviabilidade fetal e estupro. Até então, qualquer tipo de aborto era proibido.
Na
Argentina, o Católicas por el Derecho a Decidir (CDD) participou das discussões
que culminaram, em 2006, na Lei de Educação Sexual Integral - semelhante à
educação de gênero hoje debatida no Brasil -, na Lei para Prevenir e Erradicar
a Violência contra a Mulher, de 2009, e a Lei de Identidade de Gênero, de 2012,
que permitiu que travestis e transexuais escolhessem o sexo no registro civil. "Nos
falta ainda a legalização do aborto", afirma Victoria Tesoriero, uma das
coordenadoras do movimento argentino.
As
evangélicas - Hoje há
iniciativas semelhantes às ONGs católicas entre mulheres pentecostais e
neopentecostais. O Evangélicas pela Igualdade de Gênero (EIG), por exemplo,
nasceu em 2015 voltado especialmente para a questão da violência contra a
mulher.
"Eu
nasci nas Assembleias de Deus, no movimento pentecostal, e durante muito tempo
testemunhei todo tipo de violência, institucional, simbólica, assédio",
conta Valéria Vilhena, uma das fundadoras da rede, que hoje soma 3 mil
mulheres.
Em sua
tese de mestrado, feita na Universidade Metodista, onde dá aulas hoje, ela
mergulhou no cotidiano de uma casa de acolhimento para vítimas de violência
doméstica em São Paulo e verificou que 40% das atendidas eram evangélicas.
O aborto,
para ela, entra na problemática da negação de direitos às mulheres e da
violência. A posição pública a favor, contudo, veio apenas neste ano, em reação
à PEC 181. "Não
estamos trabalhando a questão da legalização a partir da Bíblia porque nós
queremos desvinculá-la da questão religiosa. É uma questão de saúde
pública", destaca. "A questão é essa: mulheres morrem", emenda.
(BBC)
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