Steven
Levitsky, professor de Ciência Política da Universidade Harvard, dedicou
praticamente toda a vida acadêmica a entender o que dá suporte e quais são as
ameaças à democracia.
Especialista em América Latina, ele lançou recentemente o livro Como as Democracias Morrem (Zahar),
escrito em parceria com o colega de instituição Daniel Ziblatt.
Alçada rapidamente à categoria de best
seller, a obra trata da ascensão de Donald Trump, mas também analisa fenômenos
como o nazismo e o fascismo nos anos 30, os governos militares na América
Latina, durante a década de 1970 e, mais atualmente, o avanço da extrema
direita na Europa.
A tese central defendida pelos autores é
que golpes de Estado clássicos, com uso de armas e fechamento do Congresso, já
não são mais aplicados. As democracias, diz ele, morrem por
ataques sutis e sistemáticos contra as instituições. Agora, as atenções de
Levitsky se voltaram ao Brasil, onde Jair Bolsonaro (PSL)
pode chegar à Presidência da República.
Para o professor de Harvard, trata-se de
uma ameaça real à jovem democracia brasileira - ainda que considere um exagero
as interpretações de que o capitão reformado seja fascista -, como ele explica
na entrevista concedida por telefone à BBC News Brasil.
BBC News Brasil - Por que
eleitores, em diversos países do mundo, estão votando em candidatos radicais?
Steven Levitsky - Isso não acontece muito frequentemente. Ocorreu nos
Estados Unidos porque os americanos acham que a democracia estará sempre
assegurada. Não importa se formos descuidados, não importa quem elejamos,
ninguém conseguirá ferir nossa democracia. É um evento assombroso os americanos
terem eleito alguém que não demonstra respeito pela Constituição.
Na maioria das vezes, o povo não gosta de
autoritarismo e não vota em populistas. Mas, às vezes, isso acontece porque os
eleitores estão bravos com o status quo, com os partidos políticos e com a
classe política em geral. Um populista é alguém que basicamente promete colocar
tudo isso em um saco para jogá-lo no rio. Quando eleito, ele passa a atacar as
instituições democráticas. Há muitos exemplos no mundo, e o Brasil é um deles.
BBC News Brasil - De que
maneira a onda conservadora que se vê nos Estados Unidos e parte da Europa está
impactando o Brasil?
Levitsky - Eu ainda não tenho certeza como podemos conectar o
fenômeno Bolsonaro com outros populistas de direita, como (Donald) Trump (nos
EUA), (Viktor) Orban (na Hungria), ou outros da Europa. A causa principal do
avanço da direita nos países ricos é a diversidade. É uma reação à imigração
por parte dos (cidadãos) brancos, de direita não-liberal. Há um pouco disso no Brasil, mas é muito
diferente.
Eu não colocaria Bolsonaro no mesmo grupo.
Mas, ainda que não seja a mesma coisa, ele se identifica com isso, e você percebe
um apoio transnacional à sua candidatura. São ideias e práticas que 15, 20 anos atrás
seriam rejeitadas pelo establishment e que agora estão se tornando aceitáveis.
Meu maior medo é que violações de direitos humanos que tinham sido eliminadas
na América do Sul possam se tornar aceitáveis de novo.
BBC News Brasil - Quais as principais diferenças entre o que se vê
no Brasil e em outros países?
Levitsky - O
Brasil passa por uma crise muito pior do que Suécia, França, Hungria ou Estados
Unidos. Nos Estados Unidos, você tem uma parcela
muito grande da população que resiste ao fato de que a sociedade vai se tornar
mais diversa etnicamente.
Mas o Brasil está sofrendo uma crise de,
pelo menos, duas dimensões: a pior recessão na história do país e o maior escândalo
de corrupção entre todos os países democráticos. Eu acho que o avanço da direita no Brasil
se deu porque o governo era de esquerda e é visto com o responsável pela crise.
BBC News Brasil - O senhor usa o termo "jogo duro
constitucional" para definir a disputa política em contextos
radicalizados. O que é exatamente isso?
Levitsky - "Jogo
duro constitucional" é usar as instituições como arma política contra o
seu oponente. Usar a letra da lei de maneira a diminuir o
espírito da lei. É fruto da polarização: quando os dois lados começam a temer e
desprezar o outro, eles passam a lançar mão de qualquer meio necessário para
impedir que o outro vença.
Hoje, toda nomeação para a Suprema Corte
americana envolve jogo duro constitucional e o mesmo se viu no Brasil, durante
o impeachemnt (de Dilma Rousseff), em 2016, e a exclusão da candidatura de
Lula, em 2018.
Olhando para outros casos de colapso da
democracia (Brasil nos anos 60, Chile nos anos 70, Espanha nos anos 30,
Alemanha no começo dos anos 30), se percebe que, quando isso começa, tende a se
intensificar e é muito difícil de ser parado.
BBC News Brasil - Há uma
percepção do eleitorado brasileiro de que Fernando Haddad, do PT, e Jair
Bolsonaro, do PSL, são lados opostos de uma mesma radicalização e que ambos
representariam ameaças à democracia. O senhor concorda com essa visão?
Levitsky - Absolutamente não. Não há dúvidas de que integrantes
do PT radicalizaram o discurso desde a crise de 2016. Eu acho que o impeachment
foi um erro terrível por parte da centro-direita. O impeachment e a exclusão da
candidatura de Lula, definitivamente, contribuíram para isso.
Mas o PT é um partido institucionalizado,
estabelecido e democrático. Nasceu em 1979 e, por quase 40 anos, jogou dentro
das regras democráticas. O PT governou o Brasil por 14 anos e, se
você olhar para qualquer medida de democracia, o Brasil se mantém igualmente
democrático, se não mais democrático do que antes.
O PT respeita a independência da Justiça e
da imprensa. As eleições sempre foram livres. Se você olhar para o registro do
PT no poder, verá que há muito erros, como a política fiscal e os casos de
corrupção. Mas (daí a) chamar o PT de chavista, ou de autoritário...
BBC News Brasil - Por outro lado, o PT diz que Bolsonaro é
fascista...
Levitsky - Eu
acho que isso é um exagero. Penso que ele é claramente autoritário (e não
fascista).
BBC News Brasil - Os eleitores dos dois lados estão acusando os
adversários de serem fascistas ou comunistas. O senhor acha que o voto está
sendo decidido dessa maneira?
Levitsky - Não.
Há dois tipos de voto no PT: seus apoiadores, muitos dos quais beneficiários
dos governos do partido, principalmente no Nordeste, e muita gente que não
gosta do PT, mas que está assustado com o Bolsonaro.
No caso do capitão reformado, algumas
pessoas estão votando nele porque ele encarna um modelo de homem forte, porque
ele é populista e porque acredita em Deus. Agora, no segundo turno, muita gente está
votando nele porque ele é anti-PT. São poucos os comunistas e os fascistas
brasileiros.
BBC News Brasil - O senhor falou anteriormente em chavismo. A
situação política e econômica da Venezuela tem sido usada como um exemplo
negativo pelos eleitores do Bolsonaro, já que o PT apoia o regime de Nicolás
Maduro. Qual dos dois candidatos o senhor acha que tem mais proximidade com o
chavismo?
Levitsky - Sem
nenhuma dúvida, Bolsonaro. Populistas podem ser de direita, de esquerda, ou de
centro. Hugo Chávez era de esquerda e Bolsonaro não
é. Ele não vai implementar a mesma política econômica, mas é uma ameaça
populista para a democracia. Muito frequentemente, quando um
populista chega ao poder, você vê rapidamente uma crise institucional entre um
presidente e o Congresso, o Judiciário, a imprensa.
E isso leva ao colapso da democracia. É
o caso de Hugo Chávez, de Alberto Fujimori (ex-presidente do Peru), (Juan
Domingo) Perón (ex-presidente da Argentina), Rafael Correa (ex-presidente do
Equador), Evo Morales (presidente da Bolívia) e é claramente o caso de
Bolsonaro. Haddad está longe do populismo. Você pode
discordar das suas políticas econômicas, mas ele não representa um projeto
populista.
BBC News Brasil - Os partidos políticos tradicionais contribuíram
para o quadro atual?
Levitsky - Quase
sempre o autoritarismo chega ao poder em regimes democráticos, quando alguém do
establishment abre a porta para ele, quando ele recebe ajuda, cooperação de um
partido estabelecido. Mussolini recebeu o apoio dos liberais italianos; Hitler
recebeu apoio dos conservadores alemães; Trump, do Partido Republicano; Hugo
Chávez, de Rafael Caldera (ex-presidente da Venezuela), que o libertou da
prisão.
Então, sempre tem pelo menos uma mão do
establishment. Eu acho que os políticos brasileiros
fizeram um excelente trabalho em tentar isolar o Bolsonaro no primeiro turno,
mas estão fazendo um trabalho muito pior agora, com algumas forças políticas
apoiando o candidato do PSL, e isso pode ser um erro terrível. O discurso de que Haddad e Bolsonaro
representam um mesmo perigo é um mito e pode matar uma democracia que o Brasil
lutou tanto para conquistar.
BBC News Brasil - Uma aliança pela democracia formada por partidos
que sempre estiveram em lados opostos da política influenciaria o resultado da
eleição?
Levitsky - Não
está claro se isso seria suficiente, mas é a única possibilidade. A única chance que os brasileiros têm de
parar o Bolsonaro é realizar uma aliança ampla genuína, autêntica e
entusiástica entre o PT e os partidos políticos de centro-direita.
Isso implica em PSDB e MDB pararem com esse
discurso de que o PT é chavista. Já o PT terá de fazer enormes e dolorosas
concessões à centro-direita: não indultar Lula, reconhecer que há figuras
respeitáveis que não são do PT e que poderiam ser indicadas para o Supremo
Tribunal Federal, além de garantir à centro-direita que esse não será um
governo do PT, mas um governo que representa uma ampla aliança democrática.
BBC News Brasil - Os eleitores brasileiros parecem mais
preocupados com problemas do dia a dia, do que com a ideia abstrata de uma
ameaça à democracia. De que maneira um ataque às instituições poderia afetar a
vida da população?
Levitsky - Não
iria afetar muito a vida dos homens de negócio ricos de São Paulo, pelo menos
não inicialmente, mas iria afetar imediatamente a vida de milhões e milhões de
brasileiros que podem ser considerados vulneráveis socialmente.
Uma das maiores conquistas dos últimos 30
anos foi diminuir a desigualdade. (Isso aconteceu) graças à ação dos políticos,
do Judiciário e dos movimentos sociais, que estenderam direitos às minorias -
negros, mulheres, pobres e, mais recentemente, os homossexuais.
Estamos falando de pessoas que
historicamente não têm os mesmo direitos das classes mais abastadas de São
Paulo e que viram uma proteção muito maior nos últimos anos: o direito de
viver, de serem tratados como cidadãos iguais perante a lei. Isso só aconteceu
por causa da democracia.
BBC News Brasil - Se as ameaças
de fato se concretizarem, de que maneira podemos esperar que a democracia
pereça?
Levitsky - Muito provavelmente de uma maneira diferente da de
1964. Não deve haver regime militar, cassação de partidos, ou censura. Mas pode-se esperar a eliminação de
direitos civis básicos, especialmente das minorias, dos pobres, dos
trabalhadores rurais.
No pior cenário, o aparelhamento do Estado
e do Judiciário para perseguir pessoas politicamente, seja por corrupção,
fraude fiscal ou por qualquer outro tipo de crime. Bolsonaro já disse que quer enquadrar o
Judiciário, aumentando o tamanho do STF e indicando seus aliados (para a
corte). Mas pode ser pior.
O Brasil tem um problema grande de
violência e de crime organizado, com facções como o PCC e o Comando Vermelho.
Se Bolsonaro lançar uma guerra contra essas organizações, o Brasil se tornará
muito violento rapidamente. Ele pode usar isso como desculpa para acabar com a
democracia e suspender a Constituição. É muito improvável que ele faça isso no
dia seguinte a sua posse, mas as chances aumentam se ele estiver enfrentando
uma crise.
BBC News Brasil - Como as democracias poderiam criar mecanismos
para se protegerem?
Levitsky - É
muito difícil. Democracias são sempre vulneráveis e podem seguir o mesmo
caminho que o Brasil está prestes a tomar: permitir a eleição de alguém que não
é comprometido com ela própria.
Alguns países europeus, como Alemanha,
permitem ao Estado banir partidos políticos e outros movimentos que ameaçam a
democracia publicamente. Outros países, como os Estados Unidos, que têm uma
cultura muito diferente, jamais fariam isso.
Mas o ponto é que, quando a democracia está
indo minimamente bem, o crescimento está bem, não há muitos escândalos, as
pessoas não querem eleger alguém perigoso como Bolsonaro. Somente em períodos de crises extremas,
como o do Brasil hoje, as democracias se tornam vulneráveis. Em períodos assim,
os cidadãos precisam se levantar para defendê-la. (BBC)
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