Dois meses depois de o Supremo Tribunal Federal
(STF) decidir não autorizar a prática do ensino domiciliar no
Brasil por falta de regulamentação específica sobre o tema, famílias adeptas do
método decidiram que vão manter os filhos fora da escola. A ideia é lutar para
que o tema seja oficialmente regulamentado pelo Congresso Nacional.
Hoje,
existem dois projetos de lei em andamento na Câmara dos Deputados, sendo o PL
3179/12 o de tramitação mais avançada. Segundo a
Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned), o Brasil hoje possui pelo
menos 7,5 mil famílias oficialmente cadastradas como adeptas do ensino em casa
- são cerca de 15 mil estudantes.
As
famílias adeptas da prática estão espalhadas por todos os Estados, mas são mais
presentes em São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Paraná e Rio Grande do Sul. Há
oito anos, eram 360 famílias, representando um aumento de 20 vezes na busca
pela prática.
"Houve
um crescimento exponencial de quase 2.000% da modalidade e não podemos
simplesmente fingir que isso não está acontecendo no país", declarou Rick
Dias, presidente da entidade.
A
educação domiciliar é uma modalidade de ensino praticada em pelo menos 65
países, sendo os Estados Unidos o mais antigo deles, com cerca de três milhões
de alunos sendo ensinados em casa. Por questões pessoais, religiosas ou
insatisfação com a qualidade do ensino, pais deixam de matricular seus filhos
na escola regulamentar e assumem essa responsabilidade dentro de casa, criando
métodos de ensino que privilegiam as áreas de conhecimento nas quais as
crianças têm mais afinidade.
Segundo
dados da Aned, nas Américas países como Paraguai, Chile, Colômbia e Equador
permitem o ensino domiciliar, e Argentina e México buscam a regulamentação. Entre os
europeus, Portugal, França, Inglaterra, Escócia, Irlanda, Itália, Suíça,
Bélgica, Holanda e Finlândia - esse último reconhecido como o país que
proporciona a melhor educação do mundo -, são exemplos de quem permite a
educação domiciliar. Por outro lado, Espanha, Alemanha e Suécia proíbem a
prática.
Ainda
segundo a associação, Austrália, Nova Zelândia, Japão e África do Sul também
permitem o ensino em casa. "O
ensino domiciliar é uma modalidade regulamentada nos cinco continentes, cada um
à sua maneira, com suas regras. Todos esses países ficam com notas acima do
Brasil nas avaliações internacionais de qualidade de ensino", afirmou
Dias.
Cuidado
ou negligência? - Muitas das
famílias adeptas ao ensino em casa se sentiram motivadas a aderir ao movimento
depois da repercussão do caso do empresário mineiro Cleber Nunes, que tirou os
três filhos da escola em 2006. Alvo de
diversas críticas à época, ele manteve a decisão e foi denunciado à Justiça
pelo Conselho Tutelar. Acabou sendo processado formalmente nas áreas cível e
criminal.
Mesmo
provando à Justiça por meio de exames solicitados judicialmente que os filhos
não estavam negligenciados, Nunes foi condenado por "abandono
intelectual" das crianças e multado em R$ 12 mil por descumprimento do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que exige a matrícula dos filhos na
rede regular de ensino.
Não pagou
a multa nem rematriculou os filhos na escola, insistindo que o Estado não tem
jurisdição sobre como uma família deve cumprir seu dever de educar seus filhos. Os anos
passaram, os filhos de Nunes cresceram e hoje são independentes, têm emprego e
renda própria. Davi, o mais velho, trabalha numa empresa americana de e-commerce,
mas fica remoto no Brasil. Jonatas administra a empresa da família. Nunes
mudou-se para os Estados Unidos com a esposa, Bernadeth, e a filha mais nova,
Ana.
O
técnico de materiais Hugleslei Vagner Mendonça Silva, de 41 anos, é um dos que
tirou as filhas da escola motivado pelo "caso Cleber Nunes". Silva
conta que estava insatisfeito com a qualidade de ensino da escola dos filhos
quando conheceu a história de Nunes.
No
começo, não teve coragem de tomar a mesma atitude com as duas filhas, mas
decidiu se informar melhor e procurar outras famílias adeptas do chamado "homeschooling". "Nos
parecia que o ensino estava defasado para o que elas conseguiam aprender."
A família
dele avalia que o ensino individualizado e de acordo com as necessidades de
cada aluno traz mais benefícios de aprendizagem em relação ao ensino coletivo,
onde alguns avançam e outros não.
Mais
confiante na técnica, Hugleslei tirou Emily e Camila da escola em 2011, quando
tinham 11 e 7 anos, respectivamente. Sua esposa, Fabrícia, foi quem assumiu as
aulas das meninas, que acontecem todas as manhãs, geralmente entre 7h30 e
11h30. "Nós optamos por seguir a grade curricular tradicional do Ministério
da Educação e fomos nos adequando às necessidades delas", conta. Para
explicar as disciplinas mais difíceis, diz Silva, Fabrícia procurava vídeos com
aulas na internet e com amigas professoras e pedagogas.
As irmãs Emily e Camila deixaram a escola em 2011
"A
internet ajuda e facilita muito." - A
socialização - um dos aspectos mais criticados do modelo domiciliar - das
meninas acontece por meio do esporte praticado no clube da cidade. Elas jogam
vôlei e competem formalmente. "Elas viajam muito para competir, então têm
muitas amigas e uma vida social super saudável", afirma o pai.
Para
ele, a decisão do STF de não
permitir por enquanto o ensino domiciliar não é totalmente negativa."É
claro que esperávamos outra decisão, queríamos que a causa fosse defendida e
não ficamos satisfeitos com o não. Mas, por outro lado, 8 dos 11 ministros não
consideraram o ensino domiciliar inconstitucional e isso nos dá uma certa
tranquilidade para continuar a lutar."
O que
mudou com a decisão do STF - O STF não
proibiu exatamente o ensino domiciliar. Afirmou que é preciso ter uma lei sobre
o assunto, jogando a bola para o Congresso. Segundo o presidente da Aned, cerca
de 40 famílias respondem hoje a processos por causa da educação domiciliar. Sem
regulamentação, quem mantém os filhos fora da escola corre o risco de ser
denunciado ao conselho tutelar e eventualmente ser alvo de ação judicial.
O
comerciante George Freedman da Silva, de 49 anos, já passou por essa situação.
Ele diz ter conhecido o método na década de 1990 por meio de uma amiga, mas só
se aprofundou no assunto em meados de 2005 - mas mesmo assim ainda não teve
coragem de tirar os filhos Juliana, Klaus e Karen da escola.
Somente
anos depois, em 2011, ele tomou definitivamente a decisão. "Fui
vendo o declínio da escola pública e não tinha condições de pagar pelo ensino
particular. Estava muito insatisfeito. Procurei a Aned e fui conhecer outras
famílias que ensinavam os filhos em casa. Me arrependi de não ter feito isso
antes", afirma o comerciante, que chegou a receber visitas do conselho
tutelar em casa, mas nunca foi denunciado à Justiça.
Após
concluírem o ensino em casa, Juliana, a filha mais velha de Silva, e Klaus se
inscreveram no exame do Centro Estadual de Educação Continuada (Cesec),
conquistaram o diploma de ensino médio e hoje seguem suas profissões: Juliana
se formou em nutrição e Klaus faz faculdade à distância. Apenas Karen, a mais
nova, continua sendo educada em casa.
George
admite que a decisão do STF causou um certo incômodo nas famílias, mas garante
que não deixará de praticar o ensino domiciliar. "Vamos continuar unidos
nessa luta. Eu quero isso para os meus filhos e eles querem isso para os filhos
deles. O STF não considerou inconstitucional, então vamos continuar praticando
até se tornar lei", afirmou.
Como
foi o julgamento no STF - No início
de setembro, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) julgaram um mandado de
segurança impetrado pelos pais de uma menina de 11 anos, moradora de Canela
(RS), que pretendiam educá-la em casa. A Secretaria Municipal de Educação negou
o pedido, e os pais foram à Justiça. A
expectativa em torno do caso era a de que o STF tomasse uma decisão favorável,
o que valeria como referência para juízes de primeira instância.
No
julgamento, os ministros da corte seguiram três linhas de raciocínio: apenas o
relator do processo, ministro Luís Roberto Barroso, votou pela legalidade do
ensino domiciliar, desde que submetido a condições que seriam fixadas até que o
Congresso legislasse sobre o tema. Entre elas estava a notificação das
secretarias municipais de Educação e a submissão das crianças a avaliações
periódicas. Em caso de não aproveitamento, seria determinada a matrícula
oficial da criança.
Os
ministros Luiz Fux e Ricardo Lewandowski votaram de maneira totalmente oposta -
para eles, a prática do "homeschooling" é inconstitucional e, mesmo que
fosse aprovada uma lei, ela seria ilegal. Mas a
maioria dos ministros considera que, para a educação domiciliar ser considera
válida, será necessária uma regulamentação no Congresso Nacional.
Problemas
básicos - A
professora doutora Maria Celi Chaves Vasconcelos, do Departamento de Políticas,
Avaliação e Gestão da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Uerj), é estudiosa do tema e defende que a educação domiciliar seja
regulamentada, mas apenas depois de o país resolver seus problemas básicos de
educação.
"Nós
ainda não conseguimos universalizar a escolaridade, ainda temos criança fora da
escola, não temos escola em tempo integral. O Brasil ainda tem muitas demandas
a serem alcançadas", avalia Maria Celi.
De acordo
com ela, a educação domiciliar é uma questão muito atual, que surgiu como parte
da revolução tecnológica e dos avanços da sociedade, mas não pode ser vista
como solução para uma suposta educação de má qualidade.
"A
nossa Constituição foi escrita nos anos 1980 e creio que, quase 40 anos depois,
a Constituição precisa ser atualizada. E se o problema for a qualidade da
educação, é ali que temos que mexer e não desescolarizar as crianças", diz
a professora.
Maria Celi
diz que, pessoalmente, não tiraria um filho da escola a fim de educá-lo em
casa. "Mas isso não significa que eu não entenda que é preciso
regulamentar o tema para dar suporte aos pais que têm essa disponibilidade de
trabalhar com a educação dentro de casa. A busca pela criação de uma lei a
respeito é legítima", afirma.
As
famílias brasileiras adeptas da educação em casa reclamam que são perseguidas
em um país no qual o índice de evasão escolar é altíssimo. "De
fato, os números são desastrosos. Segundo o censo escolar, 25% dos estudantes
que iniciam o ensino fundamental não chegam ao final do ciclo (9º ano). Além
disso, quase 3 milhões de jovens brasileiros nem estudam nem trabalham",
afirmou Ivan Cláudio Pereira Siqueira, presidente da Câmara de Educação Básica
do Conselho Nacional de Educação (CNE).
Ao fazer
uma análise pessoal do tema, Siqueira diz que o objetivo central da discussão é
a criança. "Não acho que essa seja a melhor solução, mas entendo que é
pior não regulamentar e deixar como está", afirma ele.
Ao criar
uma legislação, o país criaria parâmetros de monitoramento e acompanhamento
dessas crianças, para saber se o método está funcionando. Procurado pela BBC
News Brasil, o Ministério da Educação (MEC) informou que não se manifesta sobre
o assunto porque o Brasil não tem uma lei a respeito. (BBC)


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