Tratada pelo governo Bolsonaro como bode
expiatório da má qualidade do ensino público brasileiro, a obra do educador
Paulo Freire (1921-1997) pode ser controversa. Mas o trabalho do pedagogo e
filósofo, nomeado em 2012 patrono da educação brasileira e autor de um método
de alfabetização que completou 50 anos em 2013, não deixa de ser bastante
relevante nas discussões mundiais sobre pedagogia.
Freire é estudado em universidades americanas,
homenageado com escultura na Suécia, nome de centro de estudos na Finlândia e
inspiração para cientistas em Kosovo. De acordo com levantamento do pesquisador
Elliott Green, professor da Escola de Economia e Ciência Política de Londres,
na Inglaterra, o livro fundamental da obra do educador, 'Pedagogia do
Oprimido', escrito em 1968, é o terceiro mais citado em trabalhos acadêmicos na
área de humanidades em todo o mundo.
Para especialistas em educação ouvidos pela BBC News
Brasil, entretanto, a raiz da controvérsia em torno da pedagogia de Paulo
Freire não é sua aplicação em si - mas o uso político-partidário que foi feito
dela, historicamente e, mais do que nunca, nos dias atuais. "Li a maior
parte dos livros dele. Minha tese de doutorado foi amplamente baseada em seus
ensinamentos. Tenho aplicado seu método de várias maneiras em minha carreira
profissional, na prática e na pesquisa", afirmou a pedagoga Eeva Anttila,
professora da Universidade de Artes de Helsinque, na Finlândia.
"A
maior vantagem de sua metodologia é a abordagem anti-opressiva e não
autoritária, a pedagogia dialógica e respeitosa que ele promoveu. O problema é
que suas ideias têm sido usadas para fins políticos - o que, em meu
entendimento, nunca foi seu propósito inicial", disse a finlandesa.
Freire
tornou-se conhecido a partir do início dos anos 1960. Ele desenvolveu um método
de alfabetização de adultos baseado nos contextos e saberes de cada comunidade,
respeitando as experiências de vida próprias do indivíduo. Aplicou o modelo
pela primeira vez em um grupo de 300 trabalhadores de canaviais em Angicos, no
Rio Grande do Norte. De acordo com os registros da época, a alfabetização
ocorreu em tempo recorde: 45 dias.
Homenagens pelo mundo - Referência mundial em qualidade
do ensino, a Finlândia conta, desde 2007, com um espaço dedicado a discutir a
obra do educador brasileiro. O Centro Paulo Freire Finlândia fica na cidade de
Tampere. "É um hub para os interessados em Paulo Freire e em seu legado
para tornar o mundo mais igualitário e justo", de acordo com a definição
da própria instituição. Eles publicaram, online, três livros com artigos - em
finlandês - analisando a obra do brasileiro. O material teve 17 mil downloads.
Há centros de estudos semelhantes, todos batizados com o
nome do brasileiro, na África do Sul, na Áustria, na Alemanha, na Holanda, em
Portugal, na Inglaterra, nos Estados Unidos e no Canadá. Na Suécia, Freire é
lembrado em um monumento público. Localizada no subúrbio de Estocolmo, 'Depois
do Banho' é uma obra em pedra-sabão esculpida entre 1971 e 1976 pela artista
Pye Engström. Sentadas lado a lado, estão retratadas sete personalidades com
apelo político, como o poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973), a escritora
sueca Sara Lidman (1923-2004) e a sexóloga norueguesa Elise Ottesen-Jensen
(1886-1973).
Mas a obra do educador brasileiro está longe de ser
unanimidade entre os países que costumam liderar o ranking Pisa (sigla em
inglês para Programa Internacional de Avaliação de Estudantes). Em Cingapura,
que apareceu na primeira colocação na edição 2018 da avaliação trienal
realizada pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico)
com escolas conhecidas por adotar um método linha-dura, a BBC News Brasil
procurou a mais importante instituição de ensino superior do país para saber se
algum pesquisador comentaria a obra do brasileiro Paulo Freire.
Professor
destacado pela assessoria de comunicação da Universidade Nacional de Cingapura
para atender à reportagem, Kelvin Seah disse que "não era a melhor pessoa
para comentar sobre Paulo Freire". "Eu não sou familiarizado com seu
método", afirmou.
Convidado a comentar sobre qual seria o método mais
adequado ao contexto brasileiro, o especialista recomendou que os gestores
analisassem caso a caso. "O método mais apropriado para os alunos em uma
escola depende do perfil dos alunos da escola, do treinamento prévio recebido
pelos professores, bem como dos recursos de instrução e financeiros disponíveis
para a escola."
Pedagogia do diálogo nos Estados Unidos - Em artigo
acadêmico analisando o legado de Paulo Freire pelo mundo, o professor de
filosofia da educação da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, Ronald
David Glass aponta que o mérito de Paulo Freire está no método que valoriza a
"consciência crítica, transformadora e diferencial, que emerge da educação
como uma prática de liberdade".
"Paulo
Freire viveu sua vida no espaço desta consciência; é por isso que inspirou e
energizou pessoas no mundo inteiro, e é por isso que seu legado se prolongará
muito além de qualquer horizonte que possamos enxergar agora", escreveu o
professor. "Freire sempre estava buscando se tornar mais humano, tornar
possível que outros fossem mais humanos e, se acolhermos esta busca com tanto
amor e determinação quanto ele, então uma maior medida de justiça e democracia
estará ao alcance."
Professor
da Faculdade de Educação da Universidade Cristã do Texas, Douglas J. Simpson
causou certa polêmica no meio acadêmico ao publicar, anos atrás, um artigo
intitulado 'É Hora de Engavetar Paulo Freire?'. "Na verdade, não acho que
suas ideias devam ser arquivadas", esclareceu ele à BBC News Brasil.
"Meu texto foi pensado para atrair a atenção daqueles que acham que sempre
estamos recorrendo a Freire. Pessoalmente, acho importante descobrir de novo ou
pela primeira vez por que precisamos combinar uma forte paixão reflexiva
'freireana', de respeito e amor, a pessoas carentes de justiça pessoal."
Simpson afirma que a pedagogia baseada no diálogo é
fundamental "para que a educação e a democracia prosperem, ou pelo menos
sobrevivam". Ele culpa justamente a falta de diálogo pelo fato de as
sociedades - e as escolas - estarem fortemente polarizadas politicamente.
"Não temos sido efetivamente ensinados a praticar o diálogo nas escolas,
muito menos nos governos." Para o professor, Paulo Freire ensinou, acima
de tudo, que precisamos aprender "a ouvir, a entender e a respeitar uns
aos outros" e a "trabalhar juntos nos problemas".
Considerando o contexto brasileiro, Simpson acredita que
não deveria haver uma padronização - ou seja, que as escolas não deveriam
seguir todas o mesmo método pedagógico. "As escolas precisam de culturas e
responsabilidades que se baseiem em uma ética profissional, políticas e
práticas meritórias", disse. Para ele, os métodos são necessários,
"mas devem ser vistos como revisáveis, porque as escolas, sociedades,
trabalhos e aprendizados são dinâmicos". "A padronização nas escolas
muitas vezes leva a uma inércia indevida, de mesmice, de regulamentação
estéril", complementou.
Nos anos
1970, o pedagogo John L. Elias, então professor da Universidade de Nova Jersey,
escreveu muito a respeito de Paulo Freire. O educador brasileiro foi tema de
sua tese de doutorado. Em texto de 1975, Elias apontou "sérios problemas
no método" do brasileiro.
"A
teoria da aprendizagem de Freire está subordinada a propósitos políticos e
sociais. Tal teoria se abre para acusações de doutrinação e manipulação",
afirmou ele. "A teoria de Freire da aprendizagem é doutrinária e
manipuladora?", provocou.
Elias apontou que o educador brasileiro via "os
sistemas educacionais do Terceiro Mundo como o principal meio que as elites
opressoras usam para dominar as massas".
"Conhecimento e aprendizado
são políticos para Freire, porque eles são o poder para aqueles que os geram,
como são para aqueles que os usam", argumentou.
Professora de Educação Internacional e Comparada na
Faculdade dos Professores da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, Regina
Cortina já abordou a metodologia de Paulo Freire em diversos estudos sobre
educação na América Latina, mas disse à BBC News Brasil que não se sentia
"confortável" em comentar o tema no momento "por causa das
mudanças administrativas no Brasil". Cortina afirmou, por meio da
assessoria de imprensa da universidade, que não é possível vislumbrar com
clareza "como as coisas vão seguir nas escolas brasileiras".
Quais as ideias de Freire? - Para Freire, o ensino ocorre a partir do diálogo entre
professor e aluno, desenvolvendo assim capacidade crítica e preparando os
estudantes para sua emancipação social. No jargão do meio, o método Freire é o
oposto ao conceito "bancário" de educação - aquele no qual o
professor "deposita" o conhecimento nas mentes dos alunos. Para
Freire, a educação é construída em conjunto.
O método
Paulo Freire chegou a ser adotado pelo governo de João Goulart (1919-1976) em
esforços para alfabetização de adultos. Com a ditadura militar, entretanto, o
educador passou a ser perseguido, chegou a ser preso por 70 dias e viveu no
exílio na Bolívia e no Chile. Após a publicação da 'Pedagogia do Oprimido', em
1968, Freire foi convidado para ser professor visitante na Universidade
Harvard, nos Estados Unidos.
Reconhecido
desde 2012 como o Patrono da Educação Brasileira, Paulo Freire é considerado o
brasileiro mais vezes laureado com títulos de doutor honoris causa pelo mundo.
No total, ele recebeu homenagens em pelo menos 35 universidades, entre
brasileiras e estrangeiras, como a Universidade de Genebra, a Universidade de
Bolonha, a Universidade de Estocolmo, a Universidade de Massachusetts, a
Universidade de Illinois e a Universidade de Lisboa. Em 1986, Freire recebeu o
Prêmio Educação para a Paz, concedido pela Unesco, a Organização das Nações
Unidas para a Educação, Ciências e Cultura.
Há instituições de ensino que seguem o método Paulo
Freire em diversos países. É o caso da Revere High School, escola em
Massachusetts que em 2014 foi avaliada como a melhor instituição pública de
Ensino Médio nos Estados Unidos. Em Kosovo, um grupo de jovens acadêmicos criou
um projeto de ciência cidadã inspirado na pedagogia crítica do brasileiro. Os
participantes recebem um kit para monitorar as condições ambientais e, assim,
juntos, pressionar o governo por melhorias na área.
"Acredito que seria ótimo que a pedagogia em
qualquer escola de qualquer país partisse do pensamento de Freire",
comentou a pedagoga finlandesa Anttila. "Especialmente no Brasil, dada a
atual situação política e a história do país." Ela diz que um método de
ensino, para funcionar bem, precisa levar em conta as situações de vida dos
alunos. "Não acredito em pedagogia autoritária. As aulas não precisam ser
autoritárias. É preciso diálogo, discussão, negociação, exploração. Construir
conhecimento para que haja capacidade de expressar ideias e ouvir os outros.
Eis a chave para a democracia. E a educação democrática é a única maneira de
salvaguardar uma sociedade democrática", declarou. (BBC)
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