sexta-feira, 11 de outubro de 2019

LITERATURA CEARENSE: O Seminário de Sobral em minha vida (Assis Rocha*)


Sem ter muita certeza do título a ser colocado neste “depoimento”, atendo, com muita alegria, ao apelo da coordenação geral dessa iniciativa de juntar amigos, colegas e verdadeiros irmãos de convivência no passado, para falar de nossa “nova família” no Seminário São José de Sobral. “Nova Família” sim, porque deixávamos nossas famílias de origem, mesmo numerosa como era a minha, para vir conviver com outros “irmãos”, de diferentes origens geográficas, raciais, culturais durante 6, 7 anos seguidos, 9 meses a cada ano, com uma aproximação mútua, muito maior e mais profunda, do que aquela que tínhamos em casa, com nossos “irmãos de sangue”.

No Seminário, tínhamos, verdadeiramente, uma “Escola de Tempo Integral”, como os políticos tanto prometem para hoje em dia – como a descoberta da pólvora - e nós já vivenciamos há muitos anos. Ficaram marcas profundas em nós e, por isso mesmo, depois de tanto tempo, guardamos tantas recordações, alimentamos tantas saudades e agora estamos querendo recontar, relembrar, reviver: de cabeça prateada, com a vista ofuscada pelo tempo, coadjuvada pelo uso de lentes ou com a vida reativada à custa de remédios para ainda nos sentirmos vivos, felizes, capazes de “amar tanto” e ainda dar um “depoimento” como este.

Para quem não me conheceu ou não se lembra de mim, sou o Assis Rocha, proveniente da Fazenda Santa Maria, à época, distrito de Bela Cruz, Município de Acaraú, no início da década de 1950. Quando saí de casa, éramos já dez filhos. Chegamos aos 21. Saímos da fazenda para Bela Cruz, em 1947, a fim de estudarmos. Meu pai permanecia no vai e vem entre a fazenda e Bela Cruz, sempre a cavalo, para garantir a nossa manutenção na vila. Minha mãe se mantinha conosco, administrando a casa, os recursos e a nossa vida escolar e religiosa.

Em Bela Cruz comecei a ser alfabetizado na Escola Paroquial, fundada pelo Pe. Odécio Loyola Sampaio, desativada, recentemente, por quem desconhece seu valor histórico. Tornei-me coroinha da Paróquia, e isso foi um trampolim para sair de casa e vir estudar em Sobral. Foi quando deixei “meus irmãos de sangue” para me unir a esse “outro grupo de irmãos” para conviver com ele, bem mais tempo do que com os lá de casa e isso mantenho até hoje. Quando nos encontramos é uma festa. É o que queremos fazer agora: vamo-nos encontrar no escrito que permanece. Até agora nós nos encontramos com palavras, discursos, com músicas e muita alegria. Tudo voou. Tudo se foi, apesar de tão bom. Agora vamos colocar num papel. Vamos torná-lo permanente. Vamos levá-lo para casa, mostrar à nossa família. Vamos dizer a ela por que a gente gosta tanto de se encontrar. São poucos os grupos, os familiares, os profissionais de idades diferentes, de funções variadas que gostam tanto de estarem próximos, de se curtirem, de contemplarem os cabelos brancos, as carecas, os óculos, as rugas que nós encontramos e admiramos, as lágrimas que nos vêm aos olhos, as taquicardias mútuas que se tornam tão sensíveis a nós nesses momentos.

É que nós não tínhamos segundas intenções ao construir nossas amizades; nós não tínhamos vergonha de dizer e provar que nós nos amávamos, recebíamos uma formação sólida, dada pelo primeiro Bispo de Sobral e pela equipe mais competente e séria de formadores, nomeada por ele, ao longo dos tempos, que nos preparava intelectual, espiritual, humana e moralmente para a vida. D. José colocava princípios, orientações em nossa cabeça com bases sólidas inesquecíveis, por exemplo: “uma mente sã num corpo são”. Tínhamos que aprender e saber bem tudo o que estudássemos. Éramos averiguados ou sabatinados por ele para avaliar a nossa aprendizagem. Ele nos cobrava os mínimos detalhes de nossa educação, postura, linguagem ou qualquer outra modalidade de conhecimento necessário para o exercício de nossa missão futura.

Nossa vida comunitária alternava-se entre horários para estudo, oração, recreação, descanso, dormida e repouso para produzir tudo, cada vez mais e melhor no horário seguinte. Entre as muitas matérias que estudávamos e tínhamos que dar conta delas, publicamente, nas leituras de notas, mensalmente, para toda a comunidade, ainda nos eram cobradas avaliações comportamentais de regulamento, aplicação, urbanidade, asseio e capela. Nós nos lembramos de tudo isso com alegria; não com recalque ou mal satisfeitos. Tudo fazia parte da formação integral que nos era dada e que a gente conserva e recorda com alegria, prazerosamente, até hoje.

Como esquecer a sanfona dedilhada pelo Benes ou pelo Aragão? E a gaita tocada pelo Seu Jairo, o Saraiva ou o Gonçalo Pinho? Será que algum de nós esquece a Semana da Pátria na Meruoca, as patrulhas escotistas, os espirros do Zezão, o caldo de cana, as rapaduras, as batidas e alfenins do nosso engenho de cana de açúcar, em setembro com D. José, na Meruoca?

Vocês se lembram dos “Sermões do Encontro”, e dos seus conteúdos, e das surpresas ao aparecerem os oradores como os padres: Osvaldo Chaves, Francisco Austregésilo, Gerardo Ferreira Gomes, Marconi Montezuma, Palhano de Saboia que nos deliciavam com sua retórica, jogo de palavras, criatividade e muita, muita sabedoria? E do solo do “Benedictus” no vozeirão de encher a Catedral, do Pe. Marconi? Será que apareceu “fenômeno” maior do que o Vitorino jogando futebol? Só os que os narradores esportivos inventam e endeusam, sem conhecer nosso passado. E a Irmã Hermenhilde? Só perdia para o carinho, a dedicação e o desvelo de nossa mãe. Ela era demais! Será que Castro Alves interpretava com tanta arte e beleza, qualquer dos seus poemas (Negreiros), como fazia José Feliciano? E os dois toques rápidos na (sineta), dados por Dom José, anunciando que era feriado, nos momentos de maior silêncio, para ser quebrado pela nossa algazarra! Dá para esquecer? Não tenho vergonha de dizer: derramei algumas lágrimas, recordando tudo isso.

Concluídos em Sobral os ensinos fundamental e médio, íamos para o Seminário Maior, em qualquer lugar, sobretudo em Fortaleza, para pormos em prática aquilo que havíamos armazenado na primeira etapa no Seminário São José. Começávamos a entender a importância da base sólida que nos era dada aqui.

Em qualquer lugar, formávamos a “Colônia Sobralense” e repassávamos, como num filme, a nossa história e nos cobrávamos, mutuamente, a prática de tudo. Gostávamos de saber até como iam aqueles colegas que já se tinham afastado do nosso meio. A fraternidade permanecia.  Vocês sabem: eu não fui um aluno brilhante. Nunca fui astro, estrela ou “ás do saber”. Mas a iluminação de vocês, os belos exemplos e solidariedade me ensinaram muito. Por isso agradeço sinceramente a oportunidade que me dão de externar tanta alegria. Agradeço também a D. Francisco Austregésilo por me ter acolhido com tanto carinho na Diocese dele em Pernambuco e por me ter ajudado a manter a minha vocação de pé e poder voltar a Sobral e recontar minha história.


 

(*) Francisco de Assis Magalhães Rocha, Betanista, padre, de Bela Cruz, Mestre e Doutor em Comunicação Social. O texto foi extraído do livro SEMINÁRIO DA BETÂNIA – AD VITAM – 65 DECLARAÇÕES DE AMOR, de Leunam Gomes e Aguiar Moura.

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