Sem ter muita certeza do título a ser colocado neste “depoimento”,
atendo, com muita alegria, ao apelo da coordenação geral dessa iniciativa de
juntar amigos, colegas e verdadeiros irmãos de convivência no passado, para
falar de nossa “nova família” no Seminário São José de Sobral. “Nova Família”
sim, porque deixávamos nossas famílias de origem, mesmo numerosa como era a
minha, para vir conviver com outros “irmãos”, de diferentes origens
geográficas, raciais, culturais durante 6, 7 anos seguidos, 9 meses a cada ano,
com uma aproximação mútua, muito maior e mais profunda, do que aquela que
tínhamos em casa, com nossos “irmãos de sangue”.
No Seminário, tínhamos,
verdadeiramente, uma “Escola de Tempo Integral”, como os políticos tanto
prometem para hoje em dia – como a descoberta da pólvora - e
nós já vivenciamos há muitos anos. Ficaram marcas profundas em nós e, por isso
mesmo, depois de tanto tempo, guardamos tantas recordações, alimentamos tantas
saudades e agora estamos querendo recontar, relembrar, reviver: de cabeça
prateada, com a vista ofuscada pelo tempo, coadjuvada pelo uso de lentes ou com
a vida reativada à custa de remédios para ainda nos sentirmos vivos, felizes,
capazes de “amar tanto” e ainda dar um “depoimento” como este.
Para quem não me conheceu ou não se
lembra de mim, sou o Assis Rocha, proveniente da Fazenda Santa Maria, à época,
distrito de Bela Cruz, Município de Acaraú, no início da década de 1950. Quando
saí de casa, éramos já dez filhos. Chegamos aos 21. Saímos da fazenda para Bela
Cruz, em 1947, a fim de estudarmos. Meu pai permanecia no vai e vem entre a
fazenda e Bela Cruz, sempre a cavalo, para garantir a nossa manutenção na vila.
Minha mãe se mantinha conosco, administrando a casa, os recursos e a nossa vida
escolar e religiosa.
Em Bela Cruz comecei a ser alfabetizado
na Escola Paroquial, fundada pelo Pe. Odécio Loyola Sampaio, desativada,
recentemente, por quem desconhece seu valor histórico. Tornei-me coroinha da
Paróquia, e isso foi um trampolim para sair de casa e vir estudar em Sobral.
Foi quando deixei “meus irmãos de sangue” para me unir a esse “outro grupo de
irmãos” para conviver com ele, bem mais tempo do que com os lá de casa e isso
mantenho até hoje. Quando nos encontramos é uma festa. É o que queremos fazer
agora: vamo-nos encontrar no escrito que permanece. Até agora nós nos
encontramos com palavras, discursos, com músicas e muita alegria. Tudo voou. Tudo
se foi, apesar de tão bom. Agora vamos colocar num papel. Vamos torná-lo
permanente. Vamos levá-lo para casa, mostrar à nossa família. Vamos dizer a ela
por que a gente gosta tanto de se encontrar. São poucos os grupos, os
familiares, os profissionais de idades diferentes, de funções variadas que
gostam tanto de estarem próximos, de se curtirem, de contemplarem os cabelos
brancos, as carecas, os óculos, as rugas que nós encontramos e admiramos, as
lágrimas que nos vêm aos olhos, as taquicardias mútuas que se tornam tão
sensíveis a nós nesses momentos.
É que nós não tínhamos segundas
intenções ao construir nossas amizades; nós não tínhamos vergonha de dizer e
provar que nós nos amávamos, recebíamos uma formação sólida, dada pelo primeiro
Bispo de Sobral e pela equipe mais competente e séria de formadores, nomeada
por ele, ao longo dos tempos, que nos preparava intelectual, espiritual, humana
e moralmente para a vida. D. José colocava princípios, orientações em nossa
cabeça com bases sólidas inesquecíveis, por exemplo: “uma mente sã num corpo
são”. Tínhamos que aprender e saber bem tudo o que estudássemos. Éramos
averiguados ou sabatinados por ele para avaliar a nossa aprendizagem. Ele nos
cobrava os mínimos detalhes de nossa educação, postura, linguagem ou qualquer
outra modalidade de conhecimento necessário para o exercício de nossa missão
futura.
Nossa vida comunitária alternava-se entre horários para estudo, oração,
recreação, descanso, dormida e repouso para produzir tudo, cada vez mais e
melhor no horário seguinte. Entre as muitas matérias que estudávamos e tínhamos
que dar conta delas, publicamente, nas leituras de notas, mensalmente, para
toda a comunidade, ainda nos eram cobradas avaliações comportamentais de
regulamento, aplicação, urbanidade, asseio e capela. Nós nos lembramos de tudo
isso com alegria; não com recalque ou mal satisfeitos. Tudo fazia parte da
formação integral que nos era dada e que a gente conserva e recorda com
alegria, prazerosamente, até hoje.
Como esquecer a sanfona dedilhada pelo Benes ou pelo Aragão? E a gaita
tocada pelo Seu Jairo, o Saraiva ou o Gonçalo Pinho? Será que algum de nós
esquece a Semana da Pátria na Meruoca, as patrulhas escotistas, os espirros do
Zezão, o caldo de cana, as rapaduras, as batidas e alfenins do nosso engenho de
cana de açúcar, em setembro com D. José, na Meruoca?
Vocês se lembram dos “Sermões do Encontro”, e dos seus conteúdos, e das
surpresas ao aparecerem os oradores como os padres: Osvaldo Chaves, Francisco
Austregésilo, Gerardo Ferreira Gomes, Marconi Montezuma, Palhano de Saboia que
nos deliciavam com sua retórica, jogo de palavras, criatividade e muita, muita
sabedoria? E do solo do “Benedictus” no vozeirão de encher a Catedral, do Pe.
Marconi? Será que apareceu “fenômeno” maior do que o Vitorino jogando futebol?
Só os que os narradores esportivos inventam e endeusam, sem conhecer nosso
passado. E a Irmã Hermenhilde? Só perdia para o carinho, a dedicação e o
desvelo de nossa mãe. Ela era demais! Será que Castro Alves interpretava com
tanta arte e beleza, qualquer dos seus poemas (Negreiros), como fazia José
Feliciano? E os dois toques rápidos na (sineta), dados por Dom José, anunciando
que era feriado, nos momentos de maior silêncio, para ser quebrado pela nossa
algazarra! Dá para esquecer? Não tenho vergonha de dizer: derramei
algumas lágrimas, recordando tudo isso.
Concluídos em Sobral os ensinos fundamental e médio, íamos para o
Seminário Maior, em qualquer lugar, sobretudo em Fortaleza, para pormos em
prática aquilo que havíamos armazenado na primeira etapa no Seminário São José.
Começávamos a entender a importância da base sólida que nos era dada aqui.
Em qualquer lugar, formávamos a
“Colônia Sobralense” e repassávamos, como num filme, a nossa história e nos
cobrávamos, mutuamente, a prática de tudo. Gostávamos de saber até como iam
aqueles colegas que já se tinham afastado do nosso meio. A fraternidade
permanecia. Vocês sabem: eu não fui um aluno brilhante. Nunca fui
astro, estrela ou “ás do saber”. Mas a iluminação de vocês, os
belos exemplos e solidariedade me ensinaram muito. Por isso agradeço
sinceramente a oportunidade que me dão de externar tanta alegria. Agradeço
também a D. Francisco Austregésilo por me ter acolhido com tanto carinho na
Diocese dele em Pernambuco e por me ter ajudado a manter a minha vocação de pé
e poder voltar a Sobral e recontar minha história.
(*) Francisco de Assis Magalhães Rocha,
Betanista, padre, de Bela Cruz, Mestre e Doutor em Comunicação Social. O texto
foi extraído do livro SEMINÁRIO DA BETÂNIA – AD VITAM – 65 DECLARAÇÕES DE AMOR,
de Leunam Gomes e Aguiar Moura.
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