A concessão do último Prêmio Nobel
da Paz ao primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, frustou quem esperava a
vitória do cacique kayapó Raoni Metuktire — torcida impulsionada pelo embate
que o líder indígena brasileiro travou nas últimas semanas com o presidente
Jair Bolsonaro.
Em entrevista à BBC News Brasil,
Raoni diz que não ficou abalado com o resultado da premiação e nem com as
críticas de Bolsonaro. "A visão de um líder indígena não representa a de
todos os índios brasileiros. Muitas vezes alguns desses líderes, como o cacique
Raoni, são usados como peça de manobra por governos estrangeiros na sua guerra
informacional para avançar seus interesses na Amazônia", disse o
presidente na Assembleia Geral da ONU, em setembro.
"Bolsonaro pode falar mal de mim ou não, vou continuar lutando para
que haja floresta e para que haja natureza para a geração por vir",
rebateu o líder kayapó.
O cacique falou à BBC News Brasil
na sexta-feira (11/10) de Peixoto de Azevedo (MT), cidade mais próxima à sua
aldeia, na Terra Indígena Capoto/Jarina. Ele respondeu as perguntas em seu
idioma, o kayapó, e um assessor lhe serviu de intérprete.
Embora a conversa fosse por
telefone, o cacique parecia discursar a uma multidão: falava alto e se valia de
técnicas da oratória kayapó, como pausas e mudanças bruscas no tom da voz. Na
entrevista, criticou índios que têm se aproximado do presidente, tratou de
comunidades nativas favoráveis ao garimpo e disse que sua relação com o governo
federal começou a se deteriorar nos anos Lula e Dilma, com a construção da
hidrelétrica de Belo Monte.
"Todos os presidentes anteriores nos apoiaram. A partir de Lula,
todos geraram divisão entre o índio e o governo", afirmou (leia mais
abaixo).
À dir., Raoni Metuktire guia os irmãos Villas-Bôas em expedição
para demarcar o centro geográfico do Brasil
Infância e juventude - Segundo um site mantido pela ONG
francesa Planète Amazone, parceira de longa data de Raoni, ele nasceu por volta
de 1932 na aldeia Krajmopyjakare, no nordeste do Mato Grosso. Na época, o povo
kayapó (autodenominado mebêngôkre) era nômade e não tinha contato regular com o
mundo exterior.
Naqueles anos, os irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Bôas
percorriam a região a serviço do governo federal, identificando áreas onde
autoridades pretendiam realizar obras e instalar núcleos habitacionais. Numa
dessas andanças, em 1954, os irmãos Villas-Bôas conheceram Raoni. Foi com eles
que o líder kayapó ampliou suas noções sobre a língua portuguesa e sobre o
mundo dos brancos.
Em 1958, o indígena o acompanhou o trio numa expedição para demarcar o
centro geográfico do Brasil, às margens do rio Xingu, em cuja bacia os kayapós
vivem até hoje. O país era então presidido por Juscelino Kubitschek, que já
estivera o próprio com Raoni em 1950.
Em 1964, o cacique encontrou o rei Leopoldo 3º da Bélgica, que visitou o
Brasil 13 anos após deixar o trono. Foi o primeiro de vários líderes
estrangeiros com que ele teve contato, lista que inclui dois papas — João Paulo
2º e Francisco — e três presidentes da França — Fraçois Mitterrand (1981-1995),
Jacques Chirac (1995-2007) e o atual mandatário, Emmanuel Macron.
'Quem furou a barriga dele não fui
eu' - No mesmo pronunciamento em que
criticou os laços de Raoni com autoridades estrangeiras, Bolsonaro elogiou a
youtuber indígena Ysani Kalapalo, que o acompanhou na viagem à ONU, em Nova
York. O presidente citou uma carta em que uma organização de indígenas
favoráveis ao agronegócio apoiava a presença da jovem na comitiva presidencial.
"Acabou o monopólio do senhor Raoni", afirmou.
Após a fala, as principais organizações indígenas brasileiras saíram em
defesa de Raoni e disseram que Ysani não tem representatividade no movimento.
Questionado pela BBC News Brasil sobre o discurso do presidente, Raoni
diz que não deu bola para as críticas e que nunca pretendeu ser um porta-voz de
todos os indígenas. "Quando Bolsonaro tenta apagar minha imagem ou
criticar minha pessoa, isso não tem a menor importância para mim."
"Nunca falei que sou uma liderança de todo mundo. Apenas estou
defendendo a natureza e o meu povo. Não só meu povo, mas também o homem branco.
A natureza é nosso pulmão. Se acabar com a natureza, não conseguiremos mais
sobreviver, não vamos ter mais ar para respirar."
Ele disse que não conhece Ysani Kalapalo. "Não sei a origem dela,
não sei onde cresceu. Ela de repente apareceu e está junto do Bolsonaro falando
mal da minha pessoa."
Indagado sobre outra fala de
Bolsonaro a seu respeito, o cacique abandonou o tom ameno. Dias depois do
discurso na ONU, quando já havia voltado ao Brasil, o presidente disse que
Raoni "vive tomando champagne em outros países por aí".
"É tudo conversa fiada do
Bolsonaro, é mentira dele. Bolsonaro tem a cabeça de um drogado. Nunca tomei
cerveja ou bebida alcoólica", afirmou o cacique, aos berros.
Raoni diz que não esperava os ataques repetidos do presidente. "Foi
uma surpresa, porque eu não fiz nada contra o Bolsonaro, nunca fiz mal à
família dele. Nunca quis esse conflito. Quem furou a barriga dele não fui
eu."
Fama internacional - A fama internacional de Raoni foi catapultada por um encontro com o
cineasta belga Jean-Pierre Dutilleux. Os dois se conheceram em 1973 e, anos
depois, o cineasta gravou um documentário sobre o indígena e seu povo.
Aclamado pela crítica, o filme "Raoni" teve sua versão em
inglês narrada pelo ator americano Marlon Brando. Foi indicado ao Oscar e
exibido no Festival de Cannes. No Brasil, ganhou o prêmio de melhor filme em
Gramado.
Nos anos 1980, Dutilleux apresentou
Raoni ao cantor britânico Sting. Vários anos antes da popularização das marchas
pelo clima e das conferências globais sobre meio ambiente, a dupla rodou o
mundo pedindo apoio à preservação das florestas e aos direitos dos povos
indígenas.
Eram tempos em que o agronegócio e
a mineração se expandiam velozmente pela Amazônia, favorecidos por grandes
obras e políticas da ditadura militar (1964-1985). No norte do Mato Grosso, só
não virariam fazendas as áreas de floresta demarcadas como terras indígenas ou
reservas ambientais.
Naqueles anos, garimpeiros começaram a chegar em maior número às terras
dos kayapós — e, desde então, jamais saíram completamente. Hoje eles têm o
respaldo de alguns líderes do grupo, que recebem dinheiro dos garimpeiros em
troca da permissão para atuar no território.
Garimpo no rio Fresco, na Terra Indígena Kayapó, em foto de julho de 2019;
atividade se intensificou desde o início do governo Jair Bolsonaro
A atividade é ilegal. - A situação é mais grave na Terra Indígena Kayapó, onde os rios Fresco e
Branco foram contaminados por mercúrio e desfigurados por retroescavadeiras. O
governo Bolsonaro pretende enviar ao Congresso um Projeto de Lei para legalizar
o garimpo em terras indígenas e afirma que a mineração beneficiará as
comunidades.
Já a maioria das comunidades
kayapós — que hoje somam cerca de 11 mil integrantes — é contra a atividade,
assim como as principais organizações indígenas brasileiras.
Para Raoni, caso o projeto seja
aprovado, cada grupo será livre para decidir sobre a atividade.
"Se outros
indígenas quiserem garimpar nas suas terras, a autonomia vai ser deles. Mas
eles vão ter problemas. Se o garimpo entrar, vai acabar a floresta e não vai
ter mais animais para eles caçarem, não vai ter mais rio para pescarem e
poderem sobreviver. A natureza é o mercado do indígena. Todos os que fizerem isso
vão acabar destruindo a própria casa. Os que estão junto do Bolsonaro vão
destruir tudo."
Ele afirmou que uma eventual legalização do garimpo não impactaria sua
terra. "Nunca vou aceitar que madeireiro entre na minha terra. Nunca vou
aceitar que garimpeiro garimpe na minha terra. Nunca vou autorizar um pescador
a entrar no meu rio Xingu."
Constituição de 1988 - Enquanto se projetava no exterior ao lado de Sting, Raoni também se
tornava cada vez mais conhecido no Brasil. Na Assembleia Constituinte, o líder
levou dezenas de guerreiros kayapós a Brasília para pressionar os congressistas
a aprovar uma Constituição favorável às comunidades nativas. O movimento, do
qual participaram vários outros povos nativos, teve sucesso e abriu o caminho
para a demarcação de grandes terras indígenas no país.
Desde aquela época, Raoni e os
kayapós viraram presença frequente em mobilizações indígenas na capital. No
Acampamento Terra Livre, hoje o principal evento do tipo, os kayapós costumam
atrair a atenção de cinegrafistas quando apresentam suas danças e cantos
típicos, adornados com penas e pinturas corporais.
Nesses eventos, Raoni é tratado com
deferência e tietado por outros indígenas — feito notável para alguém cujo
povo, até meio século atrás, vivia em guerra com quase todas as etnias
vizinhas.
No início da década, Raoni e os kayapós participaram de uma série de
atos contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte no rio Xingu — causa que
mobiliza o grupo desde que a obra foi planejada, no governo militar. A usina só
começou a sair do papel no governo Luiz Inácio Lula da Silva e foi inaugurada
por sua sucessora, Dilma Rousseff.
Raoni diz que os anos Lula e Dilma marcaram uma inflexão na sua relação
com o governo federal. Ele afirma que foi recebido por todos os presidentes que
governaram entre a redemocratização e a posse de Lula: José Sarney, Fernando
Collor, Itamar Franco e FHC. Todos eles, diz Raoni, "me apoiaram muito
para que eu pudesse ajudar meu povo".
Com Lula, porém, a relação se deteriorou. "Ele começou a planejar
essa ideia de levantar Belo Monte. Nós conseguimos parar a obra, só que ela
recomeçou com o governo Dilma. E Dilma autorizou Belo Monte."
Crítico ao empreendimento, Raoni deixou de ser recebido no Palácio do
Planalto. "Nossa luta contra Bolsonaro é a mesma que fizemos contra Lula e
Dilma. Todos eles — Lula, Dilma, Bolsonaro — geraram essa divisão entre o índio
e o governo. Por isso que eu venho lutando para que não haja essa
divisão."
Aldeia onde nasceu - Hoje próximo dos 90 anos, Raoni
continua a viajar o mundo e a divulgar suas bandeiras. Uma de suas prioridades
é a conclusão da demarcação da Terra Indígena Kapôt Nhinore, onde ele nasceu. É
a única dentre as dez terras indígenas habitadas pela etnia que ainda não foi
formalizada. Bolsonaro afirmou, no entanto, que não demarcará "nem um
centímetro" de terra indígena em seu governo.
Raoni diz que, caso vença o Nobel da Paz no futuro, usará a premiação em
dinheiro para avançar a demarcação da Kapôt Nhinore e promover melhorias na
Terra Indígena Capoto/Jarina, onde ele vive hoje. Em 2019, o vencedor do prêmio
recebeu 9 milhões de coroas suecas, o equivalente a R$ 3,8 milhões.
"Neste ano não saiu meu nome, mas vou esperar o ano que vem",
afirma.
"Estou firme."
(Fonte: BBC)
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