Quando veem girar
automaticamente o colorido robô-carrossel, engenhoca que foi idealizada,
montada e apresentada na escola pela estudante Julia, 14 anos, os olhos da
atendente de telemarketing Marli Monteiro Casemiro, 48, se enchem de lágrimas.
"Depois que o professor Edson entrou nessa
escola, minha filha melhorou bastante. Ela se sentiu querida, e isso faz muito
bem para o aluno. Saber que você está sendo vista, que alguém está te
reconhecendo", diz, emocionada, na sala de recursos multifuncionais da
Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Brigadeiro Haroldo Veloso, no
bairro de Itaquera, na zona leste da capital paulista.
Julia
tem epilepsia e dificuldades na aprendizagem, especialmente na escrita. Marli
afirma já ter sofrido muitas vezes a dor da filha que, cursando o oitavo ano do
ensino fundamental em uma sala regular com adolescentes da mesma idade que ela,
muitas vezes se sentiu deixada de lado em atividades das quais gostaria de
participar.
"Ela tem 14 anos, já percebe a exclusão. Entende
que em muitas coisas ela não está no meio. É triste para mim que sou mãe",
lamenta.
"O projeto do professor Edson mostra que eles têm
capacidade. Se ensinar, ela aprende", diz a mãe, emocionada. "Mas o
que motiva ela é essa sala aqui. Nossa, ela aprendeu muita coisa. A coordenação
dela melhorou demais, a interação, aprendeu a se comunicar mais", diz a
mãe.
A
realidade é diferente quando Julia está na sala de recursos, espaço dedicado a
crianças com necessidades especiais, que ela frequenta duas vezes por semana,
em horário de contraturno.
A
sala, comandada pelo professor de matemática Edson Luiz Plateiro, 53 anos, é
equipada com equipamentos, mobiliários e materiais didáticos e pedagógicos para
alunos com deficiência, transtornos do desenvolvimento ou superdotação
matriculados no ensino regular da rede pública municipal.
"As atividades na sala de recursos são pensadas
para atender a deficiência específica de cada pessoa. Normalmente trabalhamos
com jogos, quebra-cabeça, oficinas de slime", exemplifica o professor.
Andando pela sala enquanto fala, Edson desvia de um
robô de cerca de 30 cm de altura, que desliza pelo chão e mexe os bracinhos
comandado pelo controle remoto de Guilherme, 11 anos. "Deixem o Wall-e
passar", pede o aluno, animado.
"Ficou
bonitinho com as florzinhas, não ficou? Pesquisa lá o filme pra você
assistir", sugere à reportagem o aluno, que tem autismo e cursa o quinto
ano do ensino fundamental, para explicar quem é o Wall-e, robô que ele escolheu
fazer.
Montado
a partir de um carrinho quebrado de controle remoto e um tutorial na internet
que ele mesmo pesquisou, o robô remete ao personagem homônimo da animação da
Disney e da Pixar, que vive em um futuro em que o planeta está desabitado e
tornou-se um grande depósito de lixo.
[
O personagem principal do filme, Wall-e (Waste
Allocation Load Lifters - Earth, ou Levantador de Carga para Alocação de Lixo -
Classe 'Terra', em tradução livre), trabalha duro para organizar todo esse
entulho.
Guilherme e seu Wall-e, personagem que tenta salvar as flores em um mundo cheio de lixo; na versão de papelão, ele carrega flores emprestadas pela diretora
O boneco, na versão montada por Gui, tem um coração de
papelão pintado de vermelho que se ilumina, além de carregar nas mãos dois
arranjos de flores de plástico rosa, emprestadas da sala da diretora da escola.
As funções e movimentos do robô são definidas por linguagem de programação C++,
de uso geral.
"Quer saber o porquê? Por que no filme o Wall-e
acha muitas flores que viviam no planeta e estavam podres. Daí ele não queria
que essa flor morresse, então ele fica carregando."
Robótica e
programação acessíveis - "Foi o Gui teve a ideia, ele pegou o tutorial na
internet. Ajudei com os objetos cortantes, ele não sabia usar régua, tive que
ensinar", comemora o orgulhoso professor Edson. "Ele fica super
motivado."
Edson dá aulas de matemática na rede pública de ensino
há mais de 15 anos, mas diz que foi quando assumiu a gestão da sala de
recursos, há três, que encontrou sua realização profissional.
O interesse de Edson pela robótica surgiu em 2017,
quando ele descobriu que sua escola receberia da Secretaria Municipal de
Educação um kit de iniciação para aulas de programação, o Arduíno, dispositivo
mais acessível para estudantes por ser barato, funcional e fácil de programar.
Logo a professora da sala de informática sugeriu um
projeto conjunto dos alunos do professor Edson com os estudantes de outras
salas.
"Eu me interessava por programação, mas não
sabia. Comecei a fuçar, estudar o kit, e descobri que ele era usado como
ferramenta para tratar o autismo e quis me aprofundar no assunto, fazendo uma
extensão universitária na Universidade Federal do ABC. Lá, tive contato com um
software para estudar algoritmo de programação (Robomind) e estudamos formas de
usar a robótica no contexto educacional", diz o professor.
Graças aos projetos de robótica e programação, o
professor Edison se viu motivado a expandir as barreiras da sala de recursos.
Quando a escola recebeu o kit, assumiu também o compromisso de participar do
JAM de robótica, encontro que reuniu cerca de 1 mil alunos de diversas escolas
para estudar os manuais, reproduzir as experiências e pensar protótipos.
"O momento mais interessante do projeto foi um
dia que estávamos todos na sala de recursos, os alunos que têm deficiência e os
que não têm deficiência, explorando os kits. Aí chegou uma pessoa pra mim e
perguntou, na sala: 'eu não sabia que você atendia tantos alunos na sala de
recursos'. Eu falei 'não, meus aqui só tem três'. E ele disse: 'mas quem são?'
E eu falei: 'procura!'", lembra Edson, rindo.
"Estavam todos no mesmo processo de construção e
conhecimento, cada um no seu projeto. E quem olhava via cada aluno fazendo seu
percurso de aprendizagem, mas todos juntos."
Evolução
e motivação - Outro
ponto positivo é que, como os próprios alunos sugerem os projetos em que
desejam trabalhar, a motivação no trabalho em sala é evidente.
André, que tem autismo e sonha ser veterinário, quis
criar um robô escorpião para alertar as crianças pequenas, que são alvos fáceis
e principais vítimas das picadas, sobre os perigos de interagir com a espécie.
"Um dia encontramos um panfleto da prefeitura
sobre escorpiões. Pensamos que vai voltar o calor, e a cidade estava com esse
problema de escorpiões. Lendo o panfleto, vimos que as principais vítimas dos
escorpiões são as crianças muito pequenas, porque não são atingida pelas
campanhas, e não têm noção de perigo desenvolvida. Pensamos em fazer algo para
resolver esse problema", relembra o professor.
Para fazer o escorpião robô, André e Edson estudaram a
anatomia do animal por meio de um software da prefeitura. "A criança tem
que arrastar o nome daquela parte do corpo do escorpião para o lugar certo, é
bem acessível", ensina.
Depois de ampliar uma imagem do bicho na máquina de
xerox, eles usaram cartolina e cola quente para construir a carapaça gigante,
que incluiu até um rabo que se move e simula uma picada.
"Eu o ajudei em partes de risco, como usar a
tesoura. Ele até levou partes para casa, fez as patas, e fomos colando com cola
quente", conta o professor.
Carliene Cunha e Silva Ferreira, 44 anos e mãe de
André, conta que a experiência levou o filho a superar a timidez. Ele
apresentou o trabalho na mostra cultural da escola para todos os alunos,
respondendo a perguntas e tirando dúvidas sobre o projeto, como havia ensaiado
também em casa com os pais.
"Isso de ele fazer com os demais colegas fez
diferença para ele, os professores têm elogiado bastante. Aqui na escola todo
mundo conhece ele depois da mostra cultural."
Para
o professor Edson, a flexibilidade maior da sala de recursos foi um ativo
poderoso na tarefa de incluir os alunos.
Atividades envolveram colagem, motricidade e foco: "O Guilherme adora usar cola quente,
acha que dá para resolver tudo com ela", diz professor
Nas
salas de aulas tradicionais, que são realidade para a maioria dos professores,
é mais difícil para o professor se adaptar à necessidade de muitos alunos,
opina Edson, que vê o risco de que muitos alunos percam a conexão com o
aprendizado — e não só os que têm necessidades especiais.
"Na sala de aula tradicional, é mais difícil se
desprender do currículo para ter uma visão singular. Eu me realizei como
professor porque aqui eu tenho uma estrutura voltada para isso, mas na sala é o
grande desafio", diz. "O professor se apega muito que tem que dar
determinada matéria em determinado período. Colocar a matéria na lousa e o
aluno não entender nada, você só está enganando a si mesmo."
"A proposta é recuperar essa conexão do aluno com
a sala de aula. Se o aluno tem qualquer tipo de defasagem, vamos tirar essa
defasagem, vamos criar uma comunidade de aprendizagem", opina.
Outro diferencial, pondera o professor, foi a formação
que ele procurou nos últimos anos, buscando cursos oferecidos na rede pública
que o ajudaram a pensar novos caminhos para lidar com desafios antigos de
aprendizagem nas escolas, como a inclusão e retenção de alunos.
Nos últimos anos, com o avanço também da legislação,
Edson diz que os professores têm se mostrado menos intimidados diante de alunos
com deficiência ou algum tipo de necessidade especial, como ele diz que era
comum ocorrer há alguns anos.
"Nas universidades os cursos de graduação têm que
incluir disciplina inclusiva no seu currículo, e isso está criando uma
consciência. Não chega mais ninguém falando aqui na escola falando 'ah, eu não
estou preparado, não estudei para dar aula para esses alunos'."
Para professor, qualquer aluno com dificuldade de
acompanhar a turma precisa estar no radar do professor para não se perder pelo
caminho e desistir da escola, como fazem milhares de jovens todos os anos.
Em 2017, em razão da falta de engajamento juvenil nas
atividades escolares, 1,3 milhão dos jovens de 15 a 17 anos não estavam na
escola, o que representa uma perda para o Brasil de cerca de R$ 124 bilhões,
segundo estudo do Insper.
"É preciso tirar essa cruz dos ombros, ter o
rigor metodológico, mas respeitar a condição da criança. Numa sala de aula você
tem muitas pessoas com características diferentes, e você tem que entender
essas diferentes características. O professor não pode deixar ninguém para
trás", afirma Edson.
(Fonte:
BBC)
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