
No
burro atrás ao dela vinha Jacinto Alves Passos, seu marido, que a acompanhava e
era seguido por outros, que traziam três de suas filhas e por outros mais, nos
quais vinham escravos, pertences pessoais e bagagens. As três filhas vinham em
burros sem selas, acomodadas sobre coxins, com as pernas viradas para o mesmo
lado, cumprindo recomendação da mãe, que não queria expô-las ao risco de
perderem sua pureza.
Maria
Alves, era u’a mulher extremamente religiosa e, como muitas delas, radical e
possessiva. Falam e escrevem até os dias de hoje, seus descendentes e
admiradores:
Que
quando um escravo vinha lhe avisar que uma onça comera uma de suas rezes, ela
respondia:
-
Deixe meu gatinho comer. Não será pelos dentes de uma oncinha que Maria Alves
irá ficar pobre.
-
Quando na vizinhança de sua casa fugia u’a moça pra se casar, fato comum na
época, ela prendia num quarto de sua casa suas filhas, por um mês,
insinuando-as o castigo que sofreriam se causassem à mãe, tamanha ofensa...
A
primeira a chegar ao destino foi Maria Alves, que, sem ainda descer do burro,
gritou:
- Oi de casa! Trago a paz e benção de Nosso Senhor Jesus Cristo, disse Maria Alves e logo vieram a receber Antônio Fernandes Batista e sua mulher Florência de Jesus, momento em que Antônio falou:
-
Que bom! Bem-vinda, Maria Alves. O que vos traz aqui?
- Espere só um pouquinho, amigo Antônio, vamos descer e descarregar os animais, depois teremos uma boa conversa.
Maria Alves, Jacinto, as filhas e os escravos desceram e esses últimos receberam dela ordens para banhar os animais, os deixar descansar e dar-lhes pra comer o milho que trouxeram.
Dento
da casa, os pais sentaram-se à mesa, filhos e filhas de pé ao redor e
separados, com atenção no que Maria Alves iria falar.
-
Amigo Antônio, da última vez que vocês passaram por minha casa minhas filhas
assanharam seus filhos, Francisca ao Luís, Inácia ao Francisco e Joaquina ao
Belchior.
Não
gostei desse comportamento, achei-o despudorado e vim oferecê-las em casamento.
Será que seus meninos as querem?
-
Devem querer, respondeu o paciente Antônio. Quem não quer se casar com as
filhas da Maria Alves e do Jacinto? Se eles quiserem não haverá da minha
parte impedimento. E quanto a você, Florência, indagou Antônio à sua mulher?
- Se
eles quiserem concordarei.
- Filhos,
vocês querem casar com essas moças, indagou a mãe?
-
Queremos, sim, responderam os três de forma uníssona.
E
você, Jacinto, não irá se opôr? Florência a ele perguntou.
- Na
nossa casa a Maria Alves é que decide, quando se trata de casamento, respondeu
Jacinto.
-
Então, estamos acertados, disse Maria Alves.
-
Que padre celebrará o casamento? perguntou Antônio.
-
Amigo Antônio, quando há aceitação dos noivos e concordância dos pais, quem
casa é Deus. Farei eu mesmo um “Casamento Verde”, já trouxe meu inseparável
rosário e crucifixo, como também dois canecos de madeira cheios de aluar, um
cabaça com licor de jenipapo, para as comemorações. Florência, mande torrar
algumas galinhas, que comerei um pouco com arroz e farofa acebolada e beberei
do aluá que trouxemos.
Maria
Alves chamou seus escravos e os mandou limpar em baixo de uma oiticica que se
via da casa.
- Ao terminarem a limpeza, levem essa mesa de cedro, para nela eu colocar o crucifixo e a enfeite com flores de pereiro.
Todos
sob a oiticica, os nubentes frente ao improvisado altar, tendo os pais a seu
lado e os escravos na fila atrás, Maria Alves iniciou a cerimônia, convidando a
todos pra rezar o Santo Rosário. Segundo ela, pra limpar as almas.
- Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo! Na presença dos pais dos nubentes, declaro-os casados para sempre: Luis Fernandes Batista com Francisca Maria de Jesus; Francisco Fernandes Batista com Inácia Maria de Jesus; Belchior Fernandes Batista com Joaquina Maria de Jesus. Os casados podem abraçar suas esposas...
A
felicidade fez-se presente na cerimônia, e quem dela participou comeu galinha
com arroz e farofa acebolada, beberam aluá e tomaram licor de jenipapo. Com
esse “Casamento Verde”, assim chamado por se realizar da forma descrita, e
embaixo de uma oiticica, em pleno sertões de Granja, a imensa gleba da Sesmaria
do Jagarassuhi, triste e despovoada passou a ter vida e alegria.
Terminada a cerimônia, à noite podia-se ver o céu sem nuvens, farto de estrelas; o Cruzeiro do Sul marcando sua presença no firmamento e a Lua Cheia diminuindo a escuridão.
Maria
Alves resolveu voltar para sua casa na mesma noite. Mandou os escravos, colocar
os arreios nos animais, chamou suas filhas e disse-lhes que ficassem como
lembrança com os três burros nos quais vieram, para irem a visitar. Disse-lhes,
ainda:
1 - Sejam fieis a seus maridos;
2 - Crescei e multiplicai, como manda Jesus Cristo;
3 - Criem seus filhos como Filhos de Deus e a Ele tementes;
4 - O que os maridos não resolverem, sua mãe resolverá;
5 - Deem esmolas aos cegos e aleijados, aos necessitados;
6 - Não chorem pelo leite derramado. Façam o seu melhor
e os resultados entreguem a Deus.
Agradeceu,
e se colocou à disposição dos pais dos noivos. Despediu-se de todos, abraçou as
filhas, momento em que lágrimas rolaram por seu rosto, e anunciou a sua partida.
E, montando no mesmo animal em que viera, saiu pela mesma vereda que chegara,
indo o comboio desaparecer na curva que aparecera dessa vez iluminada pela luz
da lua e pelos reflexos dos olhos dos gatos maracajás, raposas e guaxinins, que
na propriedade eram fartos.
O
casal BELCHIOR FERNANDES BATISTA e JOAQUINA MARIA DE JESUS, deu origem aos
Belchior dos Môrros.
Alguns
dos seus descendentes, preferiram permanecer no aconchego dos seus lares;
outros, migraram para a Cidade da Palma e arredores, para a Serra da Ibiapaba,
Sobral, Fortaleza, para o Piauí, Rio de Janeiro, São Paulo, donde se espalharam
por países distantes, principalmente Portugal e Estados Unidos...
Eu
descendo dessa mulher e, se o milagre da repetição genética trouxe dela alguma
herança para mim, não tenho dúvida de que foi parte de sua coragem,
determinação e resiliência, o que já é o bastante para, mesmo não tendo eu a
conhecido, respeitar, agradecer e querer bem a essa extraordinária mulher do
sertão.
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