quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

COLUNA WILSON BELCHIOR: Maria Alves das Pedras de Fogo dá filhas em “casamento verde”

No começo do século XIX, por uma vereda que levava à casa de Antônio Fernandes Batista, na Sesmaria do Jagarassuhí, Granja-CE, sob sol escaldante no meio do carrascal, com trechos ensombreados por pereiros, oiticicas e juazeiros, entre nuvens de poeira e o revoar das nambus que faziam ninhos no meio da seca mata arbustiva, surgiu um comboio de burros vindo montada no da frente a mais poderosa mulher da região, Maria Alves Passos de Jesus, conhecida como Maria Alves das Pedras de Fogo, por ser Pedras de Fogo o nome da fazenda onde morava. (Foto apenas ilustrativa)

No burro atrás ao dela vinha Jacinto Alves Passos, seu marido, que a acompanhava e era seguido por outros, que traziam três de suas filhas e por outros mais, nos quais vinham escravos, pertences pessoais e bagagens. As três filhas vinham em burros sem selas, acomodadas sobre coxins, com as pernas viradas para o mesmo lado, cumprindo recomendação da mãe, que não queria expô-las ao risco de perderem sua pureza.

Maria Alves, era u’a mulher extremamente religiosa e, como muitas delas, radical e possessiva. Falam e escrevem até os dias de hoje, seus descendentes e admiradores:

Que quando um escravo vinha lhe avisar que uma onça comera uma de suas rezes, ela respondia:

- Deixe meu gatinho comer. Não será pelos dentes de uma oncinha que Maria Alves irá ficar pobre.

- Quando na vizinhança de sua casa fugia u’a moça pra se casar, fato comum na época, ela prendia num quarto de sua casa suas filhas, por um mês, insinuando-as o castigo que sofreriam se causassem à mãe, tamanha ofensa...

A primeira a chegar ao destino foi Maria Alves, que, sem ainda descer do burro, gritou:

- Oi de casa! Trago a paz e benção de Nosso Senhor Jesus Cristo, disse Maria Alves e logo vieram a receber Antônio Fernandes Batista e sua mulher Florência de Jesus, momento em que Antônio falou:

- Que bom! Bem-vinda, Maria Alves. O que vos traz aqui?

- Espere só um pouquinho, amigo Antônio, vamos descer e descarregar os animais, depois teremos uma boa conversa.

Maria Alves, Jacinto, as filhas e os escravos desceram e esses últimos receberam dela ordens para banhar os animais, os deixar descansar e dar-lhes pra comer o milho que trouxeram.

Dento da casa, os pais sentaram-se à mesa, filhos e filhas de pé ao redor e separados, com atenção no que Maria Alves iria falar.

- Amigo Antônio, da última vez que vocês passaram por minha casa minhas filhas assanharam seus filhos, Francisca ao Luís, Inácia ao Francisco e Joaquina ao Belchior.
Não gostei desse comportamento, achei-o despudorado e vim oferecê-las em casamento. Será que seus meninos as querem?

- Devem querer, respondeu o paciente Antônio. Quem não quer se casar com as filhas da Maria Alves e do Jacinto?  Se eles quiserem não haverá da minha parte impedimento. E quanto a você, Florência, indagou Antônio à sua mulher?

- Se eles quiserem concordarei.

- Filhos, vocês querem casar com essas moças, indagou a mãe?

- Queremos, sim, responderam os três de forma uníssona.

E você, Jacinto, não irá se opôr? Florência a ele perguntou.

- Na nossa casa a Maria Alves é que decide, quando se trata de casamento, respondeu Jacinto.

- Então, estamos acertados, disse Maria Alves.

- Que padre celebrará o casamento? perguntou Antônio.

- Amigo Antônio, quando há aceitação dos noivos e concordância dos pais, quem casa é Deus. Farei eu mesmo um “Casamento Verde”, já trouxe meu inseparável rosário e crucifixo, como também dois canecos de madeira cheios de aluar, um cabaça com licor de jenipapo, para as comemorações. Florência, mande torrar algumas galinhas, que comerei um pouco com arroz e farofa acebolada e beberei do aluá que trouxemos.

Maria Alves chamou seus escravos e os mandou limpar em baixo de uma oiticica que se via da casa.

- Ao terminarem a limpeza, levem essa mesa de cedro, para nela eu colocar o crucifixo e a enfeite com flores de pereiro.

Todos sob a oiticica, os nubentes frente ao improvisado altar, tendo os pais a seu lado e os escravos na fila atrás, Maria Alves iniciou a cerimônia, convidando a todos pra rezar o Santo Rosário. Segundo ela, pra limpar as almas.
Terminado de rezar, Maria Alves com a mão esquerda levanta o crucifixo e declara:

- Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo! Na presença dos pais dos nubentes, declaro-os casados para sempre: Luis Fernandes Batista com Francisca Maria de Jesus; Francisco Fernandes Batista com Inácia Maria de Jesus; Belchior Fernandes Batista com Joaquina Maria de Jesus. Os casados podem abraçar suas esposas...

A felicidade fez-se presente na cerimônia, e quem dela participou comeu galinha com arroz e farofa acebolada, beberam aluá e tomaram licor de jenipapo. Com esse “Casamento Verde”, assim chamado por se realizar da forma descrita, e embaixo de uma oiticica, em pleno sertões de Granja, a imensa gleba da Sesmaria do Jagarassuhi, triste e despovoada passou a ter vida e alegria.

Terminada a cerimônia, à noite podia-se ver o céu sem nuvens, farto de estrelas; o Cruzeiro do Sul marcando sua presença no firmamento e a Lua Cheia diminuindo a escuridão.

Maria Alves resolveu voltar para sua casa na mesma noite. Mandou os escravos, colocar os arreios nos animais, chamou suas filhas e disse-lhes que ficassem como lembrança com os três burros nos quais vieram, para irem a visitar. Disse-lhes, ainda:

1 - Sejam fieis a seus maridos;

2 - Crescei e multiplicai, como manda Jesus Cristo;

3 - Criem seus filhos como Filhos de Deus e a Ele tementes;

4 - O que os maridos não resolverem, sua mãe resolverá;

5 - Deem esmolas aos cegos e aleijados, aos necessitados;

6 - Não chorem pelo leite derramado. Façam o seu melhor e os resultados entreguem a Deus.

Agradeceu, e se colocou à disposição dos pais dos noivos. Despediu-se de todos, abraçou as filhas, momento em que lágrimas rolaram por seu rosto, e anunciou a sua partida. E, montando no mesmo animal em que viera, saiu pela mesma vereda que chegara, indo o comboio desaparecer na curva que aparecera dessa vez iluminada pela luz da lua e pelos reflexos dos olhos dos gatos maracajás, raposas e guaxinins, que na propriedade eram fartos.   

O casal BELCHIOR FERNANDES BATISTA e JOAQUINA MARIA DE JESUS, deu origem aos Belchior dos Môrros.

Alguns dos seus descendentes, preferiram permanecer no aconchego dos seus lares; outros, migraram para a Cidade da Palma e arredores, para a Serra da Ibiapaba, Sobral, Fortaleza, para o Piauí, Rio de Janeiro, São Paulo, donde se espalharam por países distantes, principalmente Portugal e Estados Unidos...

Eu descendo dessa mulher e, se o milagre da repetição genética trouxe dela alguma herança para mim, não tenho dúvida de que foi parte de sua coragem, determinação e resiliência, o que já é o bastante para, mesmo não tendo eu a conhecido, respeitar, agradecer e querer bem a essa extraordinária mulher do sertão.







(*) Wilson Belchior é engenheiro civil, articulista, poeta e memorialista.  





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