
A Ditadura Militar, instalada em 1964, tinha muitos
mecanismos de repressão e controle da sociedade, como o Serviço Nacional de
Informações (SNI). Mas foi em 1968, quatro anos após o golpe, que um
Ato Institucional decretado pelo general e então presidente Artur da Costa e
Silva possibilitou que o regime intensificasse ainda mais a repressão.
O Ato Institucional Número Cinco, conhecido
como AI-5, entrou em vigor no dia 13 de dezembro de 1968. O ato ficou conhecido
como "golpe dentro do golpe", porque endureceu o regime e foi uma
forma de os militares consolidarem seu poder.
Ele autorizou uma série de medidas de exceção,
permitindo o fechamento do Congresso, a cassação de mandatos parlamentares,
intervenções do governo federal nos Estados, prisões até então consideradas
ilegais e suspensão dos direitos políticos dos cidadãos sem necessidade de
justificativa.
Na época, o governo militar justificou as medidas
dizendo que elas eram necessárias para conter "atos subversivos" de
"setores que queriam derrubar o regime", que os militares chamavam de
revolução, e "manter a ordem e a segurança".
"Se torna imperiosa a adoção de medidas que
impeçam [que] sejam frustrados os ideais superiores da Revolução (...)
comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucionária", diz o
documento original do AI-5, hoje guardado no Arquivo Nacional em Brasília.
A versão oficial da ditadura, portanto, foi de que
o AI-5 era uma reação à esquerda, um movimento para conter o avanço do
comunismo no país em meio à Guerra Fria.
Membros do atual governo brasileiro e da família do
presidente Jair Bolsonaro, recentemente, repetiram essa ideia.
O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) disse em outubro que, caso a esquerda "se radicalize",
"vamos precisar ter uma resposta", que, segundo ele,
"pode ser via um novo AI-5".
Eduardo depois voltou atrás quanto à afirmação,
dada em entrevista ao canal da apresentadora Leda Nagle no YouTube. O ministro
da Economia, Paulo Guedes, também falou do AI-5. "Não
se assustem se alguém pedir o AI-5", ao falar sobre os
protestos de rua convocados pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Mas será que a justificativa oficial dos militares
era o verdadeiro motivo por trás do endurecimento do regime?
O presidente Costa e Silva assinou o AI-5 em 13 de dezembro de 1968
A sociedade civil
Os principais historiadores que estudam o assunto
dizem que a ideia de que o AI-5 foi uma resposta à esquerda é um mito, e que
outros motivos estavam por trás da decisão.
Os que os documentos e os depoimentos de envolvidos
nos mostram, dizem os estudiosos, é que o ato autoritário de 1968 foi uma forma
de a ditadura militar controlar não só a oposição de esquerda ou os comunistas
(que no Brasil não tinham números ou estrutura suficiente para ser uma ameaça
real ao regime).
A principal ameaça eram os setores da sociedade
civil que haviam apoiado o golpe de 1964 e que, quatro anos depois, estavam
ficando descontentes com o governo - como a Igreja Católica, a imprensa, o
Poder Judiciário e líderes políticos.
Ou seja, o AI-5 foi uma forma de "enquadrar os
dissidentes dentro das próprias hostes da ditadura", nas palavras do
historiador Rodrigo Patto Sá Motta, professor da UFMG (Universidade Federal de
Minas Gerais) e um dos principais estudiosos do tema no Brasil.
Em um artigo científico sobre o assunto publicado
no ano passado na Revista Brasileira de História, Motta explica que em 1968 a
ditadura possuía os meios suficientes para reprimir a resistência colocada pela
esquerda e pelos comunistas.
Em um documento diplomático americano do período há
relatos de militares que diziam justamente isso, como o almirante Levy Reis e o
general Golbery do Couto e Silva. Em conversa com os diplomatas dos EUA,
Golbery dava sua opinião de que o Estado já tinha instrumentos suficientes para
lidar com os "subversivos", se referindo à esquerda e aos comunistas.
O que o governo militar não tinha, escreve Motta,
"eram meios suficientes para enquadrar e disciplinar segmentos rebeldes da
própria elite situados em lugares estratégicos, como o Poder Legislativo, o
Poder Judiciário e a imprensa".
Em entrevista à BBC News Brasil, o pesquisador
explica que, quatro anos após o golpe civil-militar que instaurou a ditadura no
país, os militares estavam ficando isolados no poder e perdendo boa parte do
amplo apoio que tiveram em 1964.
"Muitos grupos e líderes que apoiaram o golpe
foram se afastando da ditadura com o tempo (igreja, imprensa, lideranças
políticas, intelectuais)", diz Motta à BBC News Brasil.
Mas por que apoiadores do golpe de 1964 estavam
ficando insatisfeitos com o governo militar?
Insatisfação crescente
Historiadores chamam o golpe de 1964 de
"civil-militar" porque ele aconteceu com apoio justamente desses
setores. Mas, em 1967, as coisas começaram a mudar.
A ditadura enfrentava oposição desde o início. Ela
vinha de setores como o movimento estudantil, alguns parlamentares, as greves
operárias e, partir de 1967, o início da luta armada promovida pela esquerda
radical - grupos que eram muito diferentes entre si.
Essa oposição esteva mais atuante a partir de 1967
e em 1968 e alguns acontecimentos marcaram a resistência. Em março de 1968,
durante uma manifestação estudantil, a polícia militar invadiu o restaurante
Calabouço, no Rio de Janeiro, onde alguns estudantes jantavam, e o jovem
estudante Edson Luís foi morto por policiais militiares.
Seu assassinato inflamou a revolta estudantil e ele
se tornou um símbolo da resistência.
Em junho, houve a famosa Passeata dos Cem Mil,
organizada pelo movimento estudantil no Rio de Janeiro; e em outubro aconteceu
a chamada Batalha da Maria Antônia, em que estudantes da USP (Universidade de
São Paulo) enfrentaram apoiadores do regime na Universidade Presbiteriana
Mackenzie. A batalha levou à morte do estudante José Carlos Guimarães, atingido
por um tiro vindo do lado dos apoiadores da ditadura.
O ano de 1968 foi marcado também por greves
operárias, como a grande greve de Osasco, em julho.
O clima tenso e a resposta autoritária do governo
foi deixando alguns setores que haviam apoiado o golpe de 1964 insatisfeitos
com o regime, explica o historiador Daniel Aarão Reis, professor e pesquisador
de História Contemporânea na UFF (Universidade Federal Fluminense).
"Muita gente tinha apoiado o golpe, imaginando
que seria uma coisa de curto prazo", diz Reis. "Mas aí os partidos
políticos foram dissolvidos, a eleição para presidente foi indireta, a grande
imprensa, que havia apoiado o golpe, começou a ser censurada... Você tinha um
quadro de insatisfação muito ampliado."
Em 1965, o Ato Institucional número 2 estabeleceu a
eleição indireta para presidente, o que foi confirmado pela Constituição de
1967.
"Havia também um descontentamento com a
política econômica, que atingia classes trabalhadoras, que tinha perdido
direitos importantes, e o arrocho salarial, com os salários sendo reajustados
abaixo da inflação."
E foi assim que a contestação ao governo, que antes
vinha primariamente de setores mais à esquerda, como os movimentos estudantil e
operário, começou a se ampliar. Juízes davam decisões desfavoráveis ao regime,
a imprensa publicava notícias desabonadoras e parlamentares se tornavam
insubordinados.
"Importantes líderes que tinham apoiado o
golpe começaram a criticar. Carlos Lacerda foi um exemplo, mas podemos citar
lideranças da Arena: Djalma Marinho, Daniel Krieger. Ulisses Guimarães, que foi
líder civil do golpe, já havia ido para o MDB", conta Reis.
Entre os políticos, diz ele, havia o temor de que
os militares começassem a governar sozinhos sem o seu apoio – desde figuras da
Arena como José Sarney e Luiz Vianna Filho até vereadores do interior.
Entre membros da igreja, do Judiciário, da imprensa
e entre certas lideranças políticas, a insatisfação era a mesma: "O
recrudescimento autoritário e a sensação de que o governo Costa e Silva era
incompetente politicamente", diz Motta.
Artigos críticos ao autoritarismo de figuras como o
ministro da Justiça Gama e Silva apareceram na imprensa, e também se ampliou o
descontentamento com a excessiva violência policial.
"Quando Costa e Silva começou a governar, no
início de 1967, prometendo diálogo e descompressão política, ele gerou
expectativas positivas entre tais grupos. Mas quando os primeiros protestos de
oposição apareceram ele respondeu com muita violência. A condução política do
governo foi considerada incapaz de lidar com a situação", explica o pesquisador.
"E o governo foi muito criticado por não
realizar a prometida reforma universitária, o que na visão de alguns poderia
acalmar os estudantes, ou ter evitado que eles se rebelassem."
Ele explica que esse novo desafio vinha de figuras
que aceitaram o golpe contra João Goulart e contra as instituições
democráticas, mas ao mesmo tempo não desejavam uma ditadura sem limites.
"Era uma espécie de liberalismo autoritário, a favor da repressão à
esquerda, mas que desejava garantias para a opinião política moderada",
diz o historiador.
Outro aliado em 1964 que não via com simpatia o
endurecimento do regime era o governo dos EUA. Motta cita um documento interno
do Departamento de Estado americano em que o secretário Dean Rusk se mostra
preocupado. Na opinião dele, o AI-5 era uma resposta exagerada dos militares –
e a opinião da maioria dos diplomatas americanos também ia nesse sentido.
Ministro da Fazenda na época, o economista Delfim Netto (de óculos) apoiou o AI-5,
assim como boa parte do setor empresarial
Mas e os grupos armados de esquerda?
O crescimento do autoritarismo levou também a uma
radicalização de setores da esquerda, e grupos de luta armada intensificaram
sua atuação entre 1967 e 1968.
Eles eram poucos, pequenos, não tinham apoio
popular e não apresentavam uma ameaça real ao regime, explica Daniel Aarão
Reis.
Além disso, a chance de setores de elite, da
esquerda, dos grupos armados, ou seja, da oposição em geral, se unir para
derrubar o regime era quase inexistente, pois eram muito distintos. "Eram
projetos políticos muito diferentes entre si", explica Reis.
Não havia nem unidade entre os grupos de esquerda
comunistas e o movimento estudantil. "O movimento estudantil era um
movimento democrático. Lutava por mais verba, pela democracia, não era um
movimento para derrubar o capitalismo", diz Reis.
Os documentos do período mostram que os grupos da
elite, como a Igreja Católica, a imprensa e as lideranças políticas que estavam
descontentes não queriam necessariamente a queda do regime, que afinal havia
sido instaurado em 1964 com seu apoio.
"[Eles queriam] apenas mudança de rumos, não
questionavam o regime de 1964 em si", diz Motta.
"Mas o fato de que a oposição à ditadura tenha
sido engrossada por figuras mais ao centro, deixando de ser povoada apenas pela
esquerda, significava um problema para o governo."
A atuação da esquerda armada gerava um temor real
nos militares, diz Motta, "mas seu poder real foi superdimensionado para
incrementar a sensação de perigo".
Tanto que parte das ações armadas foi praticada por
grupos clandestinos de direita, que tinham o objetivo de colocar a culpa nos
comunistas. Documentos que ficaram guardados no Superior Tribunal Militar
durante 50 anos e foram revelados no ano passado mostram exemplos da atuação
clandestina de direita antes do AI-5.
Entre abril e agosto de 1968, um grupo formado por
14 policiais seguidores de Aladino Félix, ligado ao general da reserva Paulo
Trajano da Silva, roubou armas da própria Força Pública (percursora da Polícia
Militar), fez pelo menos um assalto a banco e executou 14 atentados a bomba,
incluindo o atentado a bomba na Bovespa em maio de 1968, em São Paulo.
Essa tática de realizar atentados e culpar os
comunistas foi usada novamente anos depois, quando a ditadura já estava
chegando ao fim, por setores do Exército insatisfeitos com a abertura
democrática - o caso do atentado do Riocentro, em que uma bomba explodiu no
colo de um oficial que iria realizar o ataque, é um dos episódios mais famosos
da ditadura.
A manifestação histórica no Centro do Rio que ficou conhecida
como a Passeata dos Cem Mil, em junho de 1968
O caso Moreira Alves e a reunião sobre o AI-5
Alguns momentos marcaram o incômodo dos militares
com a postura desses setores e, segundo os historiadores, mostram que o desejo
de controlar essa elite insubordinada foi um dos motivos centrais para o AI-5.
"Os momentos mais importantes nesse aspecto
foram os protestos estudantis, a partir de
março de 1968, que os militares
entenderam terem sido estimulados por professores e pela imprensa, e não terem
sido devidamente punidos pelos dirigentes universitários e pelo Poder
Judiciário", afirma Motta.
Documentos diplomáticos americanos mostram
conversas dos diplomatas com autoridades brasileiras em que os militares
deixavam essa visões claras.
"Os militares entendiam que a imprensa
publicava visões simpáticas demais à oposição e críticas excessivas ao governo,
o que favoreceria a insubordinação", diz à BBC News Brasil o pesquisador
Rodrigo Motta, que analisou extensamente os documentos.
"Outro ponto-chave era a oposição no
Congresso, que fazia discursos agressivos e era reverberada pela imprensa."
O caso mais célebre - que acabou sendo a gota
d'água para a ditadura militar - foi o discurso do deputado Moreira Alves, que
chamou o Exército de antro de torturadores e convocou as mulheres a pararem de
dançar com oficiais em bailes.
Os militares pediram ao Congresso que o deputado
fosse processado, já que a Constituição de 1967 determinava que parlamentares
só poderiam ser cassados pelo Legislativo.
Mesmo com as Casas dominadas pelo partido da
ditadura, a Arena, e com a permissão para apenas um partido de oposição, o MDB,
o governo teve o pedido negado - com dezenas de votos de deputados do Arena
indo contra o Executivo.
"Era um ato de desobediência do Congresso, que
na visão da ditadura servia apenas para legitimá-la, mostrando disposição de
parte dos parlamentares a resistirem a atos mais autoritários", conta
Motta.
"Do ponto de vista dos militares, o gesto
teria que ser punido, sob pena da oposição no Congresso crescer e vir a
tornar-se foco de instabilidade grave para o regime."
Quando a situação chegou a esse ponto, explica o
historiador, o AI-5 já estava pronto e vinha sendo ensaiado. "Não tinha
sido detonado ainda pela falta de uma fagulha apropriada", afirma.
O caso Moreira Alves foi essa fagulha que os
militares precisavam. O presidente Costa e Silva convocou a famosa reunião que
instituiu o AI-5 com a cúpula do governo militar. O único a se opor ao
endurecimento foi o vice-presidente Pedro Aleixo.
O então ministro da Fazenda, Antônio Delfim Netto,
guru econômico dos militares, contou muitos anos depois que o caso Moreira
Alves foi uma desculpa e a reunião, "um teatro".
"Naquela época do AI-5 havia muita tensão, mas
no fundo era tudo teatro. Havia as passeatas, havia descontentamento militar,
mas havia sobretudo teatro. Era um teatro para levar ao Ato. Aquela reunião foi
pura encenação", disse Delfim, como relata o jornalista Elio Gaspari no
livro A Ditadura Envergonhada.
O apoio dos empresários
O AI-5 não teve a mesma simpatia de setores de
elite da sociedade que o golpe de 1964, e os militares podiam estar ficando
mais isolados, mas não estavam sozinhos.
Para o Ato Institucional Número 5, eles tiveram o
apoio de um setor essencial: os empresários.
"Isso servia para compensar um pouco a falta
de apoio de outros setores influentes, como a grande imprensa", explica
Motta.
O AI-5 teve o apoio de diretores de instituições
como a CNI (Confederação Nacional da Indústria) e a Fiesp (Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo).
Delfim Netto, ligado ao setor, disse na reunião que
estava "plenamente de acordo" e que eram "absolutamente
necessárias" certas mudanças constitucionais para que o país pudesse
"realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez".
O empresariado acreditava que mais autoritarismo
poderia ser útil para facilitar decisões na área econômica e possibilitar o
crescimento. "A motivação principal para o AI-5 foi de natureza política,
o aspecto econômico foi secundário. Mas esse aspecto secundário não foi
irrelevante, ou seja, a motivação de aumentar a centralização de poder para
beneficiar projetos e investimentos econômicos também teve seu peso",
afirma Motta.
Governo militar reprimiu duramente manifestações
Quais foram as consequências do AI-5?
O AI-5 precedeu - e possibilitou - o período mais
sombrio da ditadura, em que milhares de pessoas foram perseguidas e torturadas.
"A imprensa foi calada, com censores de
plantão nas redações ou a ameaça de que isso viesse a ocorrer", explica
Motta. "Juízes considerados inimigos da ditadura foram expurgados, assim
como diplomatas e professores universitários."
Houve um grande expurgo no Congresso de todos os
políticos que governo considerava "contestadores". O professor
explica que a expulsão de parlamentares atingiu mais o MDB, que era o único
partido de oposição autorizado a existir na época, mas também afetou a Arena,
que era o partido do próprio governo - a legenda teve dezenas de deputados
cassados.
"O AI-5 deu à ditadura instrumentos para
imobilizar os espaços institucionais e sociais que estavam veiculando críticas
ao governo", afirma Motta. Ou seja, o AI-5 foi uma maneira dos militares
revigorarem o governo, explica o historiador, e unirem as Forças Armadas na
defesa do regime.
Nos anos todos de ditadura, há registros sessões de
tortura praticadas pelo Estado contra cerca de 20 mil brasileiros - entre
estudantes, professores, políticos, jornalistas, artistas e até militares.
Os militares, aliás, foram uma categoria muito
atingida pela repressão - mais
de 6,5 mil integrantes das Forças Armadas sofreram algum tipo de perseguição.
Qualquer um que tivesse críticas ao governo poderia
ser alvo.
Segundo a Comissão Nacional da Verdade também houve
milhares de perseguições na forma de acusações, processos e inquéritos, quase 5
mil políticos e funcionários públicos cassados, centenas de exílios e 434
mortos ou desaparecidos.
(BBC)
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