
O longo
imbróglio em torno dos resultados dos exames de coronavírus do presidente Jair
Bolsonaro ganhou um novo capítulo. A Câmara dos Deputados deu 30 dias para o
Planalto divulgar informações sobre os dois exames aos quais o mandatário foi
submetido depois de ter tido contato com ao menos 25 pessoas infectadas.
Bolsonaro
já recusou diversas solicitações para divulgar esses dados, e rebateu afirmando
que as pessoas precisam confiar em sua palavra de que não foi infectado.
"Já
pensou que prato feito para a imprensa se eu tivesse infectado? Não estou. É a
minha palavra. A minha palavra vale mais do que um pedaço de papel",
afirmou a jornalistas no dia 26 de março.
O
vice-presidente da República, Hamilton Mourão, adotou linha semelhante.
"Acho que tem de confiar na palavra do presidente. Seria o pior dos mundos
o presidente chegar e declarar que testou e deu negativo e depois aparecer que
deu positivo".
Caso o
governo Bolsonaro deixe de responder ao requerimento da Mesa Diretora da Câmara
"sem justificação adequada" ou repasse informações falsas, o Artigo
50 da Constituição afirma que a autoridade incorreria em crime de
responsabilidade. Isso, em última análise, poderia levar à abertura de processo
de impeachment na Casa.
Mas o
governo teria argumentos jurídicos plausíveis que evitem a divulgação dessas
respostas? E quais seriam as implicações para o presidente se eventualmente
vier a público que ele contraiu o vírus?
Bolsonaro
pode se recusar a responder?
A BBC News
Brasil consultou três constitucionalistas sobre o tema, que basicamente opõe
dois direitos fundamentais: à privacidade e à informação.
Primeiro é
importante deixar claro que o requerimento feito pelo deputado Rogério Correia
(PT-MG) é endereçado ao ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da
República, Jorge Antonio de Oliveira Francisco, e não diretamente ao presidente
Bolsonaro.
Rubens
Glezer, professor de Direito Constitucional da Fundação Getulio Vargas de São
Paulo, avalia que pedido da Câmara tem mais implicações políticas do que
jurídicas.
Para ele, o
ministro pode facilmente argumentar que essas informações são de foro íntimo da
pessoa física que é presidente da República e por isso desrespeitaria normas
caso tivesse que obter e repassar esses dados privados.
Uma
eventual recusa poderia levar a disputa à Justiça, que decidiria sobre a
legalidade do pedido.
Para Vera
Chemim, advogada constitucionalista, e Marina Faraco, professora da Faculdade
de Direito da PUC-SP, nesse caso o interesse público claramente se sobrepõe ao
privado em uma eventual resposta do ministro alvo do requerimento.
"O
presidente da República tem a obrigação de responder ao questionamento da
Câmara dos Deputados, quanto aos resultados dos seus exames e se foi nesse
caso, infectado pelo coronavirus. Trata-se de informação de interesse público
que nesse caso específico de grave anormalidade sanitária se sobrepõe absoluta
sobre o seu direito individual à privacidade", afirma Chemim.
Faraco
ressalta que não há nenhum direito fundamental absoluto e que o Artigo 37 da
Constituição estabelece o princípio da publicidade, entre outros, é uma das
bases da administração pública.
"Então,
a gente tem que interpretar sim uma limitação da esfera da intimidade do
presidente pela função que ele ocupa e de dever prestar essa informação sim à
sociedade. Principalmente porque o presidente se envolveu em episódios de estar
em locais públicos cumprimentando pessoas, tirando fotos com pessoas. Nesse
caso, não cabe o direito à privacidade."
Mas nessa
etapa apenas o ministro poderia ser responsabilizado juridicamente por
eventualmente deixar de responder sem justificativa plausível ou repassar dados
falsos. Sobre o presidente, poderia haver ainda mais pressão política.
E se os
exames têm diagnóstico positivo, em vez de negativo como ele afirmou?
Se essa
hipótese se confirmar, Chemim explica que o presidente Bolsonaro poderia ser
enquadrado em pelo menos quatro artigos do Código Penal, todos passíveis de
pena de prisão:
131:
"Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está
contaminado, ato capaz de produzir o contágio";
267:
"Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos";
268:
"Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução
ou propagação de doença contagiosa";
330:
"Desobedecer a ordem legal de funcionário público".
Mas na
avaliação dela, caso esse cenário se confirme, "a hipótese mais viável é a
de que ele venha a responder por crime de responsabilidade, em razão da sua
função pública".
Mais
especificamente em dois itens dos Artigos 7º e 9º da Lei nº 1.079/1950, que
prevê os crimes de responsabilidade. A exemplo, de "proceder de modo incompatível
com a dignidade, a honra e o decoro do cargo".
Faraco, da
PUC-SP, afirma que do ponto de vista constitucional, caso o presidente tenha
mentido sobre seu diagnóstico, ele terá incorrido em crime de responsabilidade
porque descumpriu leis.
"E
nesse sentido poderia haver um processo de impeachment. É claro que um processo
de impeachment depende de inúmeros fatores, mas teoricamente falando nesse
caso, se ele souber que está contaminado e tiver participado de eventos
públicos, ele incorre em crime de responsabilidade."
Para
Glezer, da FGV-SP, um crime atribuído ao presidente da República no exercício
da função só pode ser denunciado pelo procurador-geral da República, Augusto
Aras, e a viabilidade política desse cenário hoje é pequena.
"Por
isso que me parece muito mais uma pressão política do que de fato algo com
repercussões jurídicas concretas. Para um presidente instável, uma eventual
queda precisa da conjunção de pequenos pedaços, de uma percepção de sua
inviabilidade, da sua desmoralização, de um acúmulo de escândalos.
Eventualmente essa pode ser uma peça do que viria a ser uma derrocada de Jair
Bolsonaro num futuro próximo."
Autoridades e especialistas de saúde recomendam distanciamento
social para evitar espalhamento do novo coronavírus
Dois
testes, diversas recusas
O primeiro
teste para detectar se o presidente Bolsonaro estava infectado ou não foi realizado
no dia 12 de março.
Ele foi
submetido ao exame porque integrantes da comitiva presidencial que foi aos
Estados Unidos no início daquele mês receberam o diagnóstico da doença. Ao
menos 25 pessoas desse grupo foram infectadas.
No dia 13
de março, Bolsonaro divulgou em seu perfil no Twitter que o resultado havia
dado negativo, sem apresentar o laudo do exame, a exemplo do que fez o colega
Donald Trump.
Um segundo
teste foi realizado quatro dias depois. Em 18 de março, Bolsonaro divulgou
novamente Twitter que o exame havia dado negativo novamente, sem apresentar o
resultado do laboratório.
A decisão
de Bolsonaro de não divulgar os documentos levou a uma série de questionamentos
da imprensa e de políticos.
Por ter
tido contato com pessoas infectadas, Bolsonaro deveria ter cumprido quarentena
de duas semanas para evitar o contágio de outras pessoas, se ele tivesse
contraído o vírus.
Mas no dia
15 de março ele desconsiderou a medida e foi criticado ao deixar o Palácio do
Planalto para se aproximar de apoiadores do lado de fora. Naquele dia, ele
afirmou em entrevista à CNN não divulgar seus exames por ter um tratamento
especial por ser chefe do Executivo.
"
Se
algo porventura vier a acontecer comigo, você mexe com a economia e isso não é
bom para o País. No caso, o vírus para mim se eu estiver sendo portador, não
tenho problema nenhum em divulgar, eu não mentiria para o povo brasileiro. Mas
não estou acometido pelo vírus. Acho que há uma intromissão, ingerência
desproporcional na vida do ser humano."
No dia 20 de
março, o presidente foi questionado duas vezes durante uma entrevista coletiva
por que, "em nome da transparência", não divulgava os resultados.
"Eu
sou uma pessoa especial pela função que ocupo, obviamente", respondeu na
primeira vez. E na segunda, afirmou: "Depois da facada, não vai ser uma
gripezinha que vai me derrubar não. Se o médico, o ministro da Saúde, me
recomendar um novo exame, eu farei. Caso contrário, me comportarei como
qualquer um de vocês aqui presentes".
Três dias
depois, em 23 de março, o portal Uol solicitou esses documentos ao governo via
Lei de Acesso à Informação. No dia 9 de abril, a Secretaria Especial de
Comunicação Social da Secretaria de Governo da Presidência da República se
recusou a repassar a informação.
"As
informações individualizadas sobre o assunto dizem respeito à intimidade, vida
privada, honra e imagem das pessoas."
No dia
seguinte a esse pedido, Bolsonaro editou uma Medida Provisória que suspendia o
atendimento via Lei de Acesso à Informação, sob o argumento de direcionar
recursos para o combate à pandemia. Mas o Supremo Tribunal Federal derrubou o
texto dois dias depois.
E como
garantir que os resultados dos exames eventualmente divulgados sejam
confiáveis? O próprio Bolsonaro lança ainda mais dúvidas sobre isso.
No dia 27
de março, ele afirmou ao apresentador José Luiz Datena, da Band, que utiliza
códigos em pedidos de remédios e exames para evitar manipulações. "Os
testes que eu faço são com códigos. e se eu mostrar o código. vão dizer que é
mentira. por mim não tem problema." E acrescentou: "Mas tem uma lei
diz que isso faz parte de sua intimidade".
O
presidente também foi questionado por ter tossido no início da entrevista.
"Eu tenho um problema de refluxo", justificou.
No dia 31
de março, um dos membros da comitiva presidencial que contraíram o vírus, o
ministro Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) divulgou no
Twitter o resultado negativo do seu exame, a fim de provar que estava livre da
doença.
Até agora,
o Brasil já registrou 30 mil infectados e quase 2.000 mortos por coronavírus.
Hospital
omite dois nomes de infectados, segundo DF
A disputa
em torno os exames realizados por Bolsonaro também chegou à Justiça.
O governo
do Distrito Federal recorreu ao Judiciário para obrigar o Hospital das Forças
Armadas (HFA) - onde Bolsonaro foi testado - a divulgar a lista de pessoas que
receberam diagnóstico positivo da doença.
Em decisão
liminar no dia 20 de março, a juíza federal Raquel Soares Chiarellei, da 4º
Vara da Justiça Federal em Brasília, determinou que o hospital divulgasse a
lista de todos os pacientes com coronavírus. Ela estabeleceu uma multa diária
de R$ 50 mil caso a decisão fosse descumprida.
"Já é
notório que a devida identificação dos casos com sorologia positiva para
covid-19 é fundamental para a definição de políticas públicas para o
enfrentamento urgente e inadiável da pandemia, a fim de garantir a preservação
do sistema de saúde e o atendimento da população", escreveu a juíza na
decisão.
Quatro dias
depois, o HFA repassou uma lista de 15 pessoas infectadas com o vírus que foram
submetidas a exames na instituição. Segundo o governo do DF, outros dois nomes
foram omitidos.
Questionado
pela imprensa sobre essa omissão no dia 25 de março, Bolsonaro afirmou:
"Você acha que eu estou escondendo alguma coisa? Tá na lei que esses
laudos são segredo. Quer que eu te mande a lei, eu mando".
No dia
seguinte, a juíza Raquel Soares Chiarellei extinguiu a ação por considerar que
o HFA havia prestado todas as informações solicitadas.
(BBC)
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