Em um momento em
que governantes em diversos países decidem quem serão os primeiros a receber as
ainda escassas doses de vacina contra a covid-19, cresce o debate sobre a
inclusão da população carcerária entre os grupos prioritários.
Especialistas em saúde pública ressaltam que o alto risco de exposição nas prisões e o impacto não apenas sobre detentos e funcionários, mas também na população das cidades onde estão localizadas, fazem com que seja crucial incluir os presidiários entre os primeiros a serem imunizados.
"Prisões são incubadoras de
doenças, incluindo a covid-19", diz à BBC News Brasil o especialista em
bioética Arthur Caplan, professor da Escola de Medicina da Universidade de Nova
York.
"Você não vai querer ter em sua
região um lugar que está espalhando a doença. Guardas, pessoal de limpeza,
fornecedores de comida, visitantes, muita gente entra e sai das prisões. É
preciso controlar (a propagação da doença nas prisões)."
O especialista em saúde pública William
Lopez, professor da Universidade de Michigan, observa que é comum a ideia de
prisões como fortalezas onde ninguém entra ou sai, mas na realidade essas
instalações costumam ter grande movimento de pessoas.
"Há pessoas entrando e saindo de
prisões o dia inteiro, como presos que foram libertados, guardas ou outros
funcionários. Essas pessoas estão entrando em um local de alta densidade e
risco e depois voltando para casa em suas comunidades", diz Lopez à BBC News
Brasil.
Resistência
Mas a ideia de vacinar presidiários
antes de outras parcelas da população é muitas vezes recebida com resistência,
principalmente enquanto ainda não há doses suficientes para todos.
Nos Estados Unidos, somente seis dos 50
Estados anunciaram a inclusão da população carcerária em seus planos para a
primeira fase de vacinação. Em outros 19 Estados, os presos deverão ser
imunizados em uma segunda fase, quando maior número de doses estiver
disponível.
Nas instalações governadas pelo Federal
Bureau of Prisons, a agência do Departamento de Justiça responsável pelas
prisões federais americanas, o plano inicial é distribuir as primeiras doses a
agentes e funcionários. Os detentos seriam incluídos em uma fase posterior,
ainda sem previsão.
No Brasil, o plano nacional de
vacinação apresentado na quarta-feira (16/12) pelo Ministério da Saúde incluiu
presos entre os grupos prioritários. Eles já estavam entre as categorias
prioritárias em um plano preliminar, mas foram posteriormente retirados da
lista. Após críticas, voltaram a ser incluídos na versão final.
Também terão prioridade trabalhadores
de saúde, educação e transporte, idosos, funcionários do sistema carcerário,
membros de forças de segurança e salvamento, pessoas com comorbidades e com
deficiência severa, indígenas, populações quilombolas, ribeirinhas e em
situação de rua. Esses grupos serão vacinados em etapas, mas ainda não há cronograma
final.
Surtos em prisões
As prisões americanas estiveram no
centro de alguns dos maiores surtos registrados ao redor do país desde o início
da pandemia, com cerca de 250 mil casos e 1.657 mortes entre a população
carcerária e mais de 62 mil casos confirmados e 108 mortes entre funcionários.
Os Estados Unidos têm a maior população
carcerária per capita do mundo, com cerca de 2,3 milhões de detentos em prisões
federais e estaduais e outros centros de detenção. Entre eles, cerca de 500 mil
estão presos enquanto aguardam julgamento, sem terem sido condenados por nenhum
crime.
No Brasil, segundo dados do
Departamento Penitenciário Nacional (Depen), há cerca de 760 mil presos, com
39.905 casos confirmados e 126 mortes por covid-19. Segundo o Conselho Nacional
de Justiça (CNJ), há ainda cerca de 12,5 mil casos e 90 mortes entre servidores
no sistema prisional. Mas os números podem ser maiores, devido a fatores como o
índice de testagem.
No ambiente superlotado das prisões,
onde os detentos compartilham dormitórios, refeitórios e banheiros, é
impossível manter o distanciamento social recomendado para evitar o contágio
pelo coronavírus.
Além disso, muitas vezes há escassez de
testes, de equipamentos de proteção, como máscaras, e de artigos de higiene.
Nos meses iniciais da pandemia, algumas prisões americanas registravam falta de
sabonete para lavar as mãos.
Grande parte dos presos nos Estados
Unidos tem comorbidades, como diabetes, asma ou doenças cardíacas, e muitos são
idosos, o que aumenta o risco de complicações e morte por covid-19. A falta de
acesso a cuidados médicos adequados também é comum, o que agrava a situação.
Segundo estudo da Comissão Nacional
sobre Covid-19 e Justiça Criminal, ligada ao centro de pesquisas Council on
Criminal Justice (Conselho sobre Justiça Criminal), presos nos Estados Unidos
têm quatro vezes mais chance de serem infectados pelo coronavírus do que a
população geral. A taxa de mortalidade é duas vezes maior.
Vacinação nos EUA
As primeiras doses da vacina contra a
covid-19 começaram a ser distribuídas nos Estados Unidos na segunda-feira
(14/12), mas ainda são escassas, e sua disponibilidade deverá permanecer
limitada por meses.
A vacina é aplicada em duas doses, e
estima-se que até o fim deste ano cerca de 20 milhões de pessoas poderão ser
imunizadas, número pequeno diante de uma população de 330 milhões e de uma
doença que já infectou mais de 17 milhões e deixou mais de 300 mil mortos no
país.
Profissionais de saúde e idosos em
casas de repouso serão os primeiros a receber as doses. Depois disso, cada
Estado decidirá como será a distribuição para o restante da população,
incluindo os presos. Diversas entidades médicas recomendam que os Estados
incluam detentos entre os grupos prioritários.
A Associação Médica Americana (AMA),
maior associação de médicos nos Estados Unidos, divulgou em novembro sua
política oficial em relação à pandemia, na qual ressalta o alto risco para
presos, imigrantes em centros de detenção e agentes que trabalham nesses
locais.
"Esses indivíduos devem ter
prioridade no acesso a vacinas seguras e eficazes contra a covid-19 nas fases
iniciais de distribuição", afirma a associação. "Ao longo da pandemia
de covid-19, vimos que o vírus se propaga rapidamente em populações de alta
densidade, particularmente em unidades correcionais."
Congresso
Um relatório das Academias Nacionais de
Ciências, Engenharia e Medicina dos Estados Unidos, elaborado por um comitê de
mais de 20 especialistas e divulgado em outubro, traz recomendação semelhante.
Segundo o documento, presos com mais de
65 anos deveriam ser incluídos na primeira fase de vacinação, atrás de
profissionais de saúde e ao lado de moradores de casas de repouso e pessoas com
comorbidades.
O restante da população carcerária e
agentes penitenciários deveriam ser incluídos na segunda fase, ao lado de
idosos e pessoas que trabalham em ambientes de risco, como escolas, transporte
público e na cadeia de suprimento de alimentos. Os autores dizem que as
recomendações são "guiadas por evidências para maximizar benefícios à
sociedade".
Nesta semana, 26 congressistas
americanos enviaram uma carta ao CDC (Centros de Controle e Prevenção de
Doenças, agência de pesquisa em saúde pública ligada ao Departamento de Saúde)
e ao Federal Bureau of Prisons manifestando preocupação e pedindo
esclarecimentos sobre os planos para vacinar os detentos.
Na carta, os parlamentares ressaltam
que o coronavírus está se espalhando "quatro vezes mais rápido nas prisões
do que entre a população geral".
Mas, apesar dos argumentos do ponto de
vista ético e de saúde pública, a ideia de vacinar presidiários antes de
pessoas que não cometeram crimes não costuma ser popular politicamente.
Um exemplo recente é o caso do
Colorado, onde já foram registrados vários surtos de covid-19 em prisões e onde
os quase 6 mil casos entre detentos representam uma taxa de casos 720% maior do
que a verificada na população geral. Mais de mil agentes penitenciários também
já foram infectados no Estado.
Em outubro, o Departamento de Saúde do
Colorado havia divulgado um plano preliminar segundo o qual pessoas que vivem
em locais onde há aglomeração (entre eles abrigos para moradores de rua,
dormitórios de universidades e prisões) estariam entre as primeiras a serem
imunizadas, logo após trabalhadores do setor de saúde e residentes de lares de
idosos.
Enquanto presidiários estavam no grupo
de prioridade 2A, indivíduos na população geral considerados de alto risco,
como pessoas com comorbidades, estavam no grupo 2B.
Mas o plano imediatamente gerou
críticas, principalmente por parte de políticos e veículos de imprensa
conservadores, que passaram a dizer que "assassinos e estupradores"
receberiam a vacina antes de "avós". No início deste mês, o governador
democrata Jared Polis acabou rejeitando a recomendação de seu próprio Estado.
"De jeito nenhum (a vacina) irá
para prisioneiros antes de pessoas que não cometeram nenhum crime", disse
o governador, esclarecendo apenas que presos com mais de 65 anos deverão
receber a vacina ao mesmo tempo que o restante da população nessa faixa etária.
Estigma
Caplan, da Universidade de Nova York,
salienta que a população carcerária costuma ser estigmatizada, e que muitas
pessoas não acham que os presos merecem receber a vacina.
"Não estou dizendo que morro de
amores por todos os prisioneiros. Mas simplesmente ressaltando que há uma ampla
gama de pessoas na prisão. Em muitos países, você poderia argumentar que elas
não deveriam estar presas", afirma.
Caplan observa que muitas pessoas estão
presas sem terem ainda sido condenadas por qualquer crime. Outras estão na
prisão por crimes menores e sem violência. Em alguns países, há prisioneiros
políticos.
"E há outras pessoas que estão
presas por crimes graves. Mas, diante da questão se prisioneiros devem ser
vacinados, as pessoas não deveriam pensar que são todos assassinos em série.
Isso simplesmente não é verdade", observa.
"Em segundo lugar, as pessoas na
prisão não receberam sentença de morte. Elas têm direito de receber cuidados de
saúde", afirma Caplan.
Depois que a vacina estiver disponível,
restará a questão sobre o percentual de presos dispostos a serem imunizados.
Entre a população geral americana, pesquisa Gallup deste mês indica que 63%
pretendem ser vacinados. Especialistas apontam para a desconfiança que muitos
presos têm em relação ao governo.
"É muitas vezes difícil para os
presos confiar que um local que é fundamentalmente ruim para a sua saúde será
capaz de cuidar da sua saúde", afirma Lopez.
"Alguns talvez irão recusar (a vacina). Mas acho que muitos irão aceitar, depois de terem visto tantas pessoas que conhecem na prisão morrer (em decorrência da covid-19)."
(BBC)
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