Um dos mais
talentosos compositores de todos os tempos, com a marca da genialidade reconhecida
por unânime veredito em todos os quadrantes de nosso planeta, o russo Piotr
Ilitch Tchaikovsky (1840-1893) foi, em contrapartida, um dos mais angustiados e
atormentados artistas que a humanidade conheceu.
Nascido em berço culto - seus pais eram versados em artes, dentre as quais a música, sendo sua linhagem paterna de respeitável tradição militar -, recebeu esmerada educação doméstica, incluindo aulas de piano em casa, a partir de tenra idade.
Com oito
anos, conseguia decifrar com desembaraço toda e qualquer partitura. Brilhante
exemplo de talento nato direcionado para a grandiosa arte da musa Euterpe.
Também já escrevia, nessa mesma faixa etária, cartas e poemas em francês,
idioma então tido como refinado no seio das famílias ricas, à época predispostas,
por indissimulável pernosticismo, a preferi-lo ao vernáculo russo, considerado
menos elegante e, por conseguinte, mais vulgar. Seus genitores sempre lhe
incentivaram a ingressar no serviço público. Objetivando a realização desse
anseio, deliberaram por matricular o futuro músico, então com doze anos de
idade, na Escola Imperial de Jurisprudência, em São Petersburgo, capital da
Rússia czarista, que ficava a uma distância de quase dois mil quilômetros de
sua cidade natal, Votkinsnk, localizada às margens do rio Volga. A separação de
sua família foi traumática para o adolescente Piotr, que sentiu muito a
ausência do sereno aconchego familiar, notadamente com relação à sua mãe, a
quem dedicava um extraordinário afeto. Foi um período de difícil adaptação à
nova realidade, que se agravou vertiginosamente com a morte da referida
senhora, dois anos depois. O jovem estudante foi acometido de uma tristeza
profunda, que muito contribuiu para acentuar a timidez e a insegurança que já
criavam raízes em sua psique.
A tendência
para a depressão, que o acompanharia pari passu em toda sua trajetória de vida,
nele encontrou plena ressonância, devidamente pavimentada por uma forte e
invencível inclinação ao instinto homossexual, que tantos amargos tormentos e
cruciais aflições causaram à sua personalidade, de certa forma inclinada à
introspecção e à melancolia, traços que já se revelavam em sua infância. Com
efeito, a requintada governanta suíço-francesa Fanny Dürbach (1822-1901),
responsável por sua educação dos quatro aos oito anos, costumava dizer que
Piotr "era uma criança de vidro", extremamente sensível e frágil, que
desmoronava em pranto por qualquer motivo, mesmo que fosse de somenos importância.
Quando
cursava a mencionada Escola Imperial de Jurisprudência, outro episódio deveras
lastimável - sua mãe, pela qual nutria um exacerbado sentimento de amor filial,
ainda vivia - ocorreu com o futuro músico. Uma severa epidemia de escarlatina
irrompeu no referido estabelecimento de ensino jurídico. O tutor de Tchaikovsky,
Modest Alexeievitch Vakar, resolveu hospedá-lo por algum tempo em sua própria
casa, enquanto perdurasse o risco de contágio. Mas uma dolorosa fatalidade
estava à espreita: um dos filhos do referido senhor, que contava apenas cinco
anos de idade, adoeceu dessa mesma moléstia infectocontagiosa, vindo a falecer.
Esse triste fato agravou consideravelmente certo sentimento de culpa que o
jovem estudante já trazia consigo. Jamais deixou de se sentir culpado pela
morte da criança - ele nunca se perdoou desse terrível incidente - e, em várias
ocasiões, expressou o desejo de morrer, tamanho o peso da culpa que carregava
consigo.
Extraio do
primoroso fascículo "Mestres da Música", dedicado ao grande músico e
editado pela Abril Cultural em 1979, o seguinte excerto, que entendo pertinente
ao surgimento de luzes para a melhor compreensão da personalidade do notável
artista: "Um estudo psicanalítico mostraria como o culto da figura materna
provocou no compositor uma tal idealização do feminino que ele passou a se
recusar a ver em qualquer mulher uma amante física. Nisso residiram as raízes
da homossexualidade que constituiu o núcleo de sua personalidade".
A despeito da
dura e sofrida adversidade vivenciada, logrou graduar-se em Direito aos
dezenove anos, conseguindo pouco tempo depois a nomeação para o relevante cargo
de assistente do Ministério da Justiça, que exerceu por três anos sem grande
destaque, ensejo em que resolveu deixar o emprego para se dedicar
exclusivamente à música, que sempre foi a sua vocação básica e fundamental.
Passou a estudar no Conservatório de São Petersburgo, capital da Rússia
czarista, a primeira escola de música instalada nesse imenso país, então
dirigida por seu próprio fundador, o renomado compositor, pianista e maestro
Anton Rubinstein (1829-1894), judeu russo nascido na região da Transnístria. Em
virtude do extraordinário êxito de seu grandioso empreendimento - o número de
pedidos de matrícula não parava de crescer -, Anton Rubinstein resolve fundar o
Conservatório de Moscou, nos mesmos moldes didáticos. No início de 1866,
Tchaikovsky transfere residência para Moscou, onde assume uma cátedra de
professor no estabelecimento recém inaugurado, cuja direção estava entregue ao
zelo de Nikolai Rubinstein (1835-1881), irmão de Anton, que veio a se tornar um
valoroso amigo e fiel incentivador da carreira do jovem músico e ex-advogado.
Em 1868, o
nominado musicista manteve contato com os compositores nacionalistas russos,
que integravam o chamado "Grupo dos Cinco": Alexander Borodin
(1833-1887), César Cui (1835-1918), Mily Balakirev (1837-1910), Modest
Mussorgsky (1839-1881) e Nikolai Rimsky-Korsakov (1844-1908), os quais, embora
reconhecendo o seu formidável talento, concordavam que o estilo de suas
composições revelava nítida influência de países da Europa Ocidental, exibindo
pálido e diminuto reflexo do pujante folclore e da rica tradição do povo russo,
elementos primordiais que constituíam o cerne das preocupações dos
participantes do clã nacionalista no criativo ato de compor, visando e exaltando
o engrandecimento de uma música genuinamente russa, trilhando o caminho que
teve início com o venerável compositor Mikhail Glinka (1804-1857), considerado,
com toda justiça, o pai da música erudita russa.
Os
insistentes e incessantes comentários - que só faziam crescer (como existiam
Candinhas mexeriqueiras na velha Rússia czarista!) - sobre a homossexualidade
do genial músico, por ele sempre mantida em rigoroso e intransponível segredo,
faziam-no perder completamente o prumo do autocontrole, tamanho o desassossego
d'alma que lhe atormentava o espírito, torturado pelo tectônico impacto que a
menor dúvida lançada a respeito de sua masculinidade produzia em seu mundo
interior. Para salvaguardar as aparências, procurou manter ligações amorosas -
por sinal, efêmeras e malsucedidas - com mulheres, em mais de uma ocasião. Em
outubro desse mesmo ano de 1868, conheceu a cantora lírica francesa Désirée
Artôt (1835-1907), soprano. Tchaikovsky ficou sinceramente entusiasmado por
essa afamada artista. Iniciaram namoro; viajaram juntos para algumas cidades. O
relacionamento parecia perfeito. Em novembro, o compositor resolveu desposá-la.
Uma profunda decepção estava-lhe reservada. Um mês depois, a mulher convola
núpcias na Polônia, com o aclamado barítono espanhol Mariano Padilla y Ramos
(1843-1906). No dia 30 de julho de 1877, Tchaikovsky contraiu matrimônio com
Antonina Ivanovna Miliukova (1848-1917), arrivista megalomaníaca, de origem
social humilde, frívola e ninfomaníaca. Não tinha como dar certo. Como era
previsível, o casamento foi um desastre. Nem sequer chegou a ser consumado e
durou apenas seis semanas.
Totalmente
devastado pela hecatombe conjugal, o compositor tenta o suicídio. Mergulha nas
águas geladas do rio Moscou, com a firme convicção de que apanharia uma grave
pneumonia, capaz de conduzi-lo ao túmulo. Tal não ocorreu, mas sofreu violenta
crise nervosa, acompanhada de episódios de desvario e perda de consciência,
tendo permanecendo dois dias em estado de coma.
A desventura
matrimonial e suas nefastas consequências estão narradas no filme "Delírio
de Amor" (The Music Lovers, 1970), do mirabolante e criativo cineasta
inglês Ken Russell (1927-2011).
Tchaikovsky
usufruiu por vários anos do generoso apoio financeiro de uma rica empresária
russa, viúva, verdadeira mecenas das artes, que muito o admirava e com a qual
se correspondia, Nadejda Filaretovna von Meck (1831-1894). Estabeleceu-se entre
ambos uma estranha e singular relação de amizade e de mútuo respeito, iniciada
em 1876. O auxílio pecuniário que recebia de Nadejda von Meck permitia-lhe
conviver nos altos círculos da sociedade moscovita da época, sem maiores
dificuldades de ordem pecuniária. Sua protetora exigiu, no entanto, uma única
condição: a de que jamais deveriam se encontrar; a comunicação entre eles seria
tão somente de caráter epistolar. Não obstante essa estrambótica imposição,
Tchaikovsky e Nadedja chegaram a se ver, à distância, em três ocasiões, sem
trocarem palavras, conforme o inusitado pacto firmado. O altruísmo da magnânima
dama perdurou até o mês de outubro de 1890, com a abrupta e definitiva extinção
do pagamento da pensão, motivada por pérfida intriga arquitetada pelo próprio
genro de Nadedja, o violinista polonês Wladyslaw Pakhulski (1855 ou 1857-1919),
que inescrupulosamente lançou mão de falaciosos argumentos para convencer sua
sogra de que o notável compositor estaria lhe explorando de forma descarada.
O destino
ainda reservaria um duro golpe ao grande músico. No ano seguinte, morre sua
muito estimada irmã e confidente Aleksandra Davydova (1842-1891).
O genial
compositor já não podia suportar tanto sofrimento. No dia 22 de outubro de
1893, estando em São Petersburgo, cidade onde grassava uma epidemia de cólera,
resolve beber água não fervida, indiferente às recomendações dos órgãos responsáveis
no trato da saúde pública. Estaria ele mais uma vez imbuído do propósito de
tirar sua própria vida? A consequência lógica e previsível de seu
injustificável descaso veio logo em seguida. Contaminado pela terrível
enfermidade do cólera, vem a falecer três dias depois.
Piotr
Tchaikovsky sempre viveu angustiado e atormentado, agrilhoado à tenebrosa e
destruidora sombra da depressão. Mesmo assim produziu obras musicais de sublime
beleza, que o entronizaram no olímpico Panteon dos grandes vultos da humanidade.
Registro
algumas de suas composições mais conhecidas: os ballets "O Lago dos
Cisnes", "A Bela Adormecida" e "O Quebra-Nozes"; as
óperas "Ievguêni Oniéguin", "A Dama de Espadas", "A
Donzela de Orleans", "A Feiticeira", "Voyevoda",
"Iolanta", "Mazeppa", "Undina", "Vakula, o
Ferreiro", "Oprítchnik" e "Tcherevitchki"; os poemas
sinfônicos "Romeu e Julieta", "Francesca da Rimini" e
"A Tempestade"; a abertura-fantasia "Hamlet"; a música
incidental para a peça teatral "Hamlet", do bardo inglês William Shakespeare
(1564-1616); "Abertura 1812"; "Marcha Eslava";
"Capricho Italiano"; seus Concertos para Piano e Orquestra e para
Violino e Orquestra; suas doze peças curtas para piano intituladas "As
Estações", correspondentes a cada mês do calendário anual, destacando-se a
belíssima "Barcarolle", alusiva a Junho; e suas seis Sinfonias,
denominadas respectivamente "Sonhos de Inverno", "Pequena
Russa", "Polonesa", "Destino" - dedicada à sua mecenas
Nadedja von Meck -, "Opus 64" e "Patética". Cabe o registro
de que somente parte do 1º Movimento de sua Sétima Sinfonia foi concluída; por
essa razão, ficou conhecida como "'Sinfonia Inacabada".
Tchaikovsky
recebeu em vida o reconhecimento de seu notável talento musical. Dentre as
inúmeras honrarias que lhe foram concedidas destaco o título de Doutor Honoris
Causa concedido pela prestigiada Universidade de Cambridge/Inglaterra. Também
foi membro da Academia de Belas Artes de Paris/França.
Durante o
período rubro da foice e do martelo na então granítica União Soviética,
quaisquer referências sobre a propensão do eminente compositor à
homossexualidade, prática tida como ilegal naquele colossal país, foram
meticulosamente suprimidas, para que sua imagem pública de maior compositor
nacional não fosse conspurcada com a pecha estigmatizante de autor de algum
ilícito de natureza penal, por prática de ato considerado crime. A propósito,
uma instigante indagação teima a vir à tona: Será que a atual Rússia presidida
por Vladimir Putin, nascido na emblemática São Petersburgo no ano de 1952,
continua adotando a mesma cartilha, omitindo ou dificultando informações a
respeito da preferência sexual do brilhante compositor, um dos gloriosos ícones
da estupenda cultura desse fascinante país. Finalizando, esclareço que o
brinde-homenagem ora selecionado incide sobre a parte final do belíssimo
"O Lago dos Cisnes", provavelmente a composição do gênero ballet mais
conhecida em todo o mundo e magistralmente utilizada como leitmotiv na
excelente e perturbadora película "Cisne Negro", Black Swan, 2010),
do aclamado cineasta novaiorquino Darren Aronofsky, nascido em 1969. Filme de
visão obrigatória para os cinéfilos de carteirinha.
Vivenciei, no
dia 27 de agosto de 2017, momentos de intenso deslumbramento ao assistir a uma
esmerada exibição de "O Lago dos Cisnes" e de "A Bela
Adormecida" em minha cidade de Sobral, apresentada pelo Ballet da Ópera
Nacional da Ucrânia - Kiev Ballet -, que, integrando as comemorações do
sesquicentenário de sua fundação, fazia uma turnê por oito cidades do Brasil,
sendo a Princesa do Norte eleita uma delas. As demais foram Curitiba,
Florianópolis, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília e Cuiabá.
Um espetáculo magnífico para o melhor cardápio de uma noite de mágico
encantamento.
(*) Dr. Francisco Santamaria Mont'Alverne Parente. Juiz de Direito. Membro da Academia Sobralense de Estudos e Letras. Membro da Academia Cearense de Cinema.
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