segunda-feira, 7 de março de 2022

ARTIGOS: Mestre Ataulfo Alves (Dr. Francisco Santamaria Mont'Alverne Parente*)


Um dos exemplos mais representativos da nostálgica evocação - que faz muito bem à alma da gente - dos tempos idos da infância está retratado à perfeição nos versos, translúcidos de serena placidez e de um suave, melancólico e benfazejo saudosismo, de "Meus Tempos de Criança", antológica composição de autoria de um consumado mestre do cancioneiro pátrio. Reverencio neste espaço o admirável músico Ataulfo Alves (1909-1969), natural de Miraí, na Zona da Mata das Minas Gerais.

Ataulfo Alves e suas Pastoras

Com o firme apoio de seu pai, bom violeiro, sanfoneiro e repentista, iniciou cedo o aprendizado no campo musical, evidenciando aos oito anos de idade um promissor desembaraço na cantoria de viola. Perde o pai aos dez anos. Menino pobre, a necessidade de sobrevivência o conduz ao sadio exercício da atividade laboral em várias frentes, sem prejuízo das obrigações estudantis, no período da adolescência em sua cidade natal, porquanto trabalhou como lavrador - plantando arroz, café e milho -, tangerino, leiteiro, marceneiro, engraxate, portador de recados e carregador de malas e marmitas.

Teve eficiente formação, por conseguinte, na boa escola da vida, nos ditosos e profícuos tempos em que o trabalho infantil assumia uma conotação pedagógica de positivo viés, sobressaindo de forma altaneira para o melhor aprendizado no difícil educandário direcionado à formação do retilíneo caráter das pessoas, em contraposição ao lastimável panorama dos dias atuais, onde impera a draconiana proibição do exercício laboral na infância, conduzindo muitas vezes o menor vulnerável à perigosa e suicida trilha da solerte malandragem e da sedutora ociosidade, que acabam por atraí-lo à prática de pequenos delitos, sendo o furto o mais tentador - o dinheiro fácil e sem o menor esforço é uma ardilosa e feiticeira isca - e à experiência com o uso de drogas, vestíbulo perfeito e bastante aliciador para o corrosivo e devastador batismo no universo da criminalidade, um nefasto caminho habitualmente sem volta. Triste e deplorável realidade de nossos dias em pleno século XXI!

Mas, retomando o fio de Ariadne, aos dezoito anos, Ataulfo Alves resolve morar no Rio de Janeiro, então a esfuziante capital da República, a convite de um médico que era seu conterrâneo, Dr. Afrânio Moreira de Resende, passando a trabalhar no consultório do referido esculápio. Pouco tempo depois, foi contratado por um estabelecimento farmacêutico para lidar com manipulação de pílulas, xaropes e poções diversas. À noite, encontrava aprazível lazer frequentando rodas de samba no bairro do Rio Comprido, dando vazão aos seus dotes musicais.

Nesse período iniciou cordial amizade com uma jovem que procurava espaço como cantora no meio artístico. Tratava-se de Carmen Miranda (1909-1955), até então uma ilustre desconhecida.  Paulatinamente o talento nato do respeitável mestre foi se impondo. A primeira música de sua autoria a ser gravada, e logo por sua amiga Carmen Miranda - à época já era uma estrela, com carreira alavancada pelo samba "Taí", do também mineiro Joubert de Carvalho (1900-1977) -, foi "Tempo Perdido", no ano de 1934. A carreira musical do talentoso compositor foi evoluindo a partir desse afortunado evento, exibindo toda a exuberância de seu inestimável valor artístico.

Várias músicas de sua lavra foram recepcionadas com enorme carinho e desconcertante empatia pelo povo brasileiro, destacando-se, dentre outras, "Saudade do Meu Barracão", "Menina que Pinta o Sete", "A Você", "Quanta Tristeza", "Nem que Chova Canivete", "Saudade Dela", "Mulher Fingida", "Errei, Erramos", "Sei que É Covardia", "Boêmio", "Oh! Seu Oscar", "Requebro da Mulata", "O Bonde São Januário", "Vida da Minha Vida", "Errei, Sim", "Leva Meu Samba", "Ai, que Saudades da Amélia", "Atire a Primeira Pedra", "Para que Mais Felicidade", "Capacho", "Inimigo do Samba", "Todo Mundo Enlouqueceu", "Índia do Brasil", "Boêmio Sofre Mais", "Vá Baixar em Outro Terreiro", "Infidelidade", "O Samba Nasce do Coração", "Pois É", "Vai, Vai Mesmo", "Meus Tempos de Criança", "Mulata Assanhada", "Na Cadência do Samba", "O Homem e o Cão", "Lenço Branco", "Laranja Madura", "Você Passa e Eu Acho Graça", "Você Não É Como as Flores" e "Mandinga", sua última composição.

Vultos importantes que marcaram relevante presença no pujante cenário da música popular brasileira foram valorosos colaboradores na parceria musical com Mestre Ataulfo, dentre os quais menciono Orestes Barbosa (1893-1966), Jorge Faraj (1901-1963), Alberto Ribeiro (1902-1971), Alcebíades "Bide" Barcelos (1902-1975), Armando Marçal (1902-1947), Benedito Lacerda (1903-1958), Lamartine Babo (1904-1963), Felisberto Martins (1904-1980), André Filho (1906-1974), Donga (1907-1991), Sílvio Caldas (1908-1998), José "Zé da Zilda" Gonçalves (1908-1954), Alcides Gonçalves (1908-1987), Roberto Martins (1909-1992), Haroldo Lobo (1910-1965), Claudionor Cruz (1910-1995), Nássara (1910-1996), Assis Valente (1911-1958), Mário Lago (1911-2002), Peterpan (1911-1983), Herivelto Martins (1912-1992), Aldo Cabral (1912-1994), Wilson Batista (1913-1968), Floriano Belham (1913-1999), Marino Pinto (1916-1965), Newton Teixeira (1916-1990), David Nasser (1917-1980), Jacob do Bandolim (1918-1969), Miguel Gustavo (1922-1972) e Carlos Imperial (1935-1992).

O compositor miraiense passou a gravar suas próprias músicas nos anos 40 do século pretérito e, como o timbre de sua voz ficava aquém dos padrões exigidos para os cantores da época, resolveu formar o grupo "Ataulfo Alves e Suas Pastoras", com as vozes femininas estabelecendo um harmonioso contraponto à sua. O conjunto vocal obteve grande sucesso. Em 1958, o renomado músico participou do simpático filme "Meus Amores do Rio", realizado pelo habilidoso cineasta argentino Carlos Hugo Christensen (1914-1999), um surpreendente sucesso de bilheteria. Em 1961, realiza uma série de apresentações pela Europa, em uma caravana organizada pelo desenvolto compositor e advogado cearense Humberto Teixeira (1915-1979), parceiro habitual do mítico "Rei do Baião", Luiz Gonzaga (1912-1989).


Impecável no vestir, de fino trato, voz branda, sorriso franco e lhaneza de caráter, sempre exibindo postura sóbria e refinada, Ataulfo Alves certamente foi o mais elegante sambista que o Brasil já conheceu. O afamado colunista social fluminense Ibrahim Sued (1924-1995) chegou a incluí-lo em sua seleta e disputadíssima lista dos 10 Mais Elegantes.

O majestoso compositor lamentavelmente faleceu aos cinquenta e nove anos de idade, durante o período pós-operatório de uma úlcera no duodeno. O manso de coração e cordato por natureza, gentil-homem por excelência e fidalgo por vocação, Mestre Ataulfo Alves, cognominado "O General do Samba", bem merece o venerável título de honra e glória do cancioneiro nacional. 


(*) Dr. Francisco Santamaria Mont'Alverne Parente. Juiz de Direito. Membro da Academia Sobralense de Estudos e Letras. Membro da Academia Cearense de Cinema.

Nenhum comentário:

Postar um comentário