A semana começa e os clientes da doceira Elida Ribeiro
recebem, por meio de lista de transmissão, mensagem motivacional. Foi essa a
estratégia adotada quando ela começou a usar a internet nos negócios: “Todos os
domingos mandava uma mensagem para começarem a semana bem, mensagens com
positividade. E daí vinham sempre três ou quatro encomendas”, conta.
terça-feira, 8 de março de 2022
Mulheres são mais conectadas, mas acessam menos serviços na internet
A proprietária de A Mineira Doceria Gourmet considera
a internet importante aliada nas vendas. Agora, as mensagens motivacionais
deixaram a lista de transmissão e são postadas no status.
Pelas redes sociais, ela recebe atualmente pelo menos 90% dos pedidos.
A internet também é o instrumento de trabalho da
empreendedora digital Tayane Andrade, que
chega a trabalhar até 14 horas por dia quando precisa executar um projeto. “É
um mundo muito rico em questão de conteúdo. Um mundo que dá para trabalhar e se
sustentar”, defende.
Tanto Elida quanto Tayane não são regras entre as mulheres
brasileiras. Apesar de estarem mais conectadas à internet que os homens, as
mulheres ainda usam menos a rede para trabalhar ou para estudar.
A pesquisa Mulheres e Tecnologia - Dados sobre o acesso
feminino a Tecnologias da Informação e Comunicação, da plataforma Melhor Plano, mostra que 85% das mulheres de 10
anos ou mais são usuárias de internet. Esse percentual entre os homens é menor,
77%.
Apesar disso, elas usam menos a internet para trabalhar. Em
2020, em meio à pandemia de covid-19, 32,47%, praticamente uma em cada três
mulheres, usou a internet para realizar atividades relacionadas ao trabalho.
Entre os homens, 44,16% fizeram esse uso.
O estudo foi feito a
partir dos dados do Centro Regional de Estudos para o
Desenvolvimento da Sociedade da Informação.
Rotina na rede
As redes sociais entraram na rotina de Elida por causa de
um cliente. Em Brasília, ela fazia doces e levava para vender nos bares da
cidade. Foi quando um cliente a ajudou a criar perfis nas redes sociais. Ela
passou então a postar onde estaria fazendo as vendas. Logo, passou a receber
encomendas online e a ampliar
os negócios, contratando funcionárias para a empresa. Quando veio a pandemia,
já estava estabelecida de forma online e
isso, segundo ela, foi fundamental.
“A minha mãe dependia de as pessoas comprarem, comerem e
gostarem. Hoje, tem essa ferramenta gratuita que é Instagram”, diz Elida,
que aprendeu a fazer bolos e doces com a mãe e a avó, que tinham o mesmo
ofício.
Se não é possível conquistar os clientes pelo estômago, ela
conquista pelos olhos: só posta aquilo “que dá vontade de comer com os
olhos”, diz. “Os nossos doces são cem por cento artesanais e feitos
diariamente. A gente tira várias fotos. O cuidado que temos é se olhamos a foto
e temos vontade de comer. É a primeira coisa. Tem vontade de comer? Se sim,
divulgo e, se não, nem divulgo”.
Muito trabalho
Para Tayane também foi fundamental o trabalho online, sobretudo na pandemia. “Essa
pandemia não teve coisa boa, mas se tenho alguma coisa a agradecer desse tempo
que fiquei em casa é justamente saber que mundo digital existe. É um
privilégio”, diz.
Tayane dava aulas de empreendedorismo para mulheres. Com a
necessidade de distanciamento social, as aulas passaram a ser online na pandemia. Foi aí que ela
percebeu toda a dificuldade enfrentada por outras mulheres, que iam desde
a falta de dinheiro para comprar pacotes de conexão, falta de equipamentos a
até falta de tempo e de prioridade para se dedicar aos estudos. Como às vezes a
família tinha um único celular, "a preferência era de quem trabalhava na
rua ou era do marido, nunca dela”, diz.
Quando conseguiam passar muito tempo em frente às
telas, se dedicando aos estudos, parecia que estavam fazendo algo errado. “Elas
se sentiam um pouco desconfortáveis de passar tanto tempo dedicadas ao negócio
porque era estranho e parecia que não estavam fazendo nada. No início, eu mesma
me incomodava com isso também e, se não cuidar, até hoje a gente se
incomoda porque parece que não está fazendo nada. Mas é tão trabalhosa quanto
qualquer outra atividade, às vezes até mais”.
Hoje, Tayane deixou de dar aulas e se dedica ao próprio
negócio, em que oferece mentorias e trabalha com marketing digital.
Fora do mercado digital
Segundo a pesquisa, a baixa proporção de mulheres que
trabalham na rede pode estar relacionada à alta concentração da população
feminina em trabalhos convencionais, que exigem pouco contato com os espaços online. “Talvez uma parte da população
feminina ainda esteja concentrada em atividades que não exigem trabalho online, e sim mais presencial, físico,
como domésticas ou mesmo cuidando da própria casa”, diz uma das sócias do
Melhor Plano, Mariah Julia Alves.
“Grande parte das mulheres tem acesso à internet e isso é bem
positivo”, complementa ela. “Mas, esses acessos têm sido usados em funções
cotidianas - usam mensagens, chamadas de voz, para assistir vídeos, acessar
redes sociais, coisas muito pessoais e que não são relacionadas à educação, ao
desenvolvimento profissional”.
A desigualdade está também na formação. O estudo mostra que
apenas 19,81% das mulheres entrevistadas revelaram ter feito cursos a
distância em 2020. Entre os homens, o percentual foi 22,68%.
“Isso traduz muitas das desigualdades, em todos os aspectos,
que nos atingem”, analisa a professora da Universidade de Brasília (UnB)
Catarina de Almeida Santos.
“A gente enfrentou grande dificuldade para meninas e
mulheres fazerem seus cursos de forma remota, durante a pandemia]. Quando estão
em casa, ninguém entende que estão estudando. Muitas vezes, precisam olhar o
filho ou são chamadas para fazer outra atividade. A própria infraestrutura
domiciliar não possibilita que as mulheres tenham esse tempo e esse espaço”,
diz Catarina.
Outras desigualdades
Os dados do Cetic.br mostram que há uma série de
desigualdades no acesso à internet no Brasil, entre elas o tipo de equipamento
pelo qual se acessa a rede. Homens têm mais acesso a múltiplos dispositivos,
enquanto mulheres acessam mais a internet pelo celular, equipamento que tende a
limitar algumas funções da rede.
A pesquisa Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação
nos Domicílios Brasileiros (TIC Domicílios) revela que mulheres negras
acessaram a internet exclusivamente pelo telefone celular (67%) em maiores
proporções que homens brancos (42%). Por outro lado, elas realizaram transações
financeiras (37%), serviços públicos (31%) e cursos (18%) pela internet em
proporções bastante inferiores às de homens brancos (51%, 49% e 30%,
respectivamente).
“Essa questão de acesso e uso das tecnologias de informação
e comunicação foi inserida em contexto social cultural, ou seja, se se
está em uma sociedade machista, em que mulheres têm menos oportunidades no offline, isso também vai se traduzir no
mundo online”, diz o coordenador
da pesquisa TIC Domicílios, Fabio Storino.
Segundo a analista do Núcleo de Informação e Coordenação do
Ponto BR (NIC.br), órgão Cetic.br, Javiera Macaya, essa desigualdade de acesso
e de oportunidades na internet começa desde cedo. “É
preciso ter acessibilidade de gênero, ter acessibilidade
considerando questões raciais. Sempre pensar em política pública, em dados, não
parar em uma primeira camada de análise, mas incluir outras variáveis que
são importantes, ainda mais no contexto brasileiro”, diz.
Os pesquisadores enfatizam que é preciso garantir o acesso
à internet, mas, além disso, a qualidade desse uso para todos, o que inclui
equipamentos de qualidade, alta velocidade de conexão.
“Precisamos preparar nossa sociedade para esse mundo cada
vez mais digital, pensar em políticas com as quais possamos trabalhar as
habilidades digitais necessárias para conseguir a atividade online”, afirma Storino. “Não
adianta o governo e as empresas estarem digitais se há uma população que ainda
não é digital, que ainda é analógica, que precisa desenvolver certas
habilidades. A gente precisa trabalhar tudo isso junto”, acrescenta. (Ag.
Brasil)
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