A indigência vernacular e a espantosa vulgaridade, aliadas à absoluta
ausência de qualquer átomo porventura construtivo, constatadas no atual e
insalubre panorama musical brasileiro, prenhe de pornografia chula -
vistosamente exibida em coreografias que explicitam os mais baixos instintos -,
contrastam, de forma atroz, com o rico, pujante e caudaloso acervo de nossa
música popular, onde sempre esteve presente o talento de seus valorosos
compositores e intérpretes.
A título de melhor comparação, escolhi como perfeito parâmetro para
cotejar o gosto musical popular, no passado e nos tempos atuais, a composição
que possivelmente tenha atingido o ápice da consagração perante o imenso
contingente do povo brasileiro até hoje: "O Ébrio", de Vicente
Celestino (1894-1968).
Simplesmente inexiste o menor padrão comparatório.
A despeito de sua carga melodramática de altíssima voltagem, digna de um
dramalhão - e dos bons - da Pelmex, a referida composição constitui uma
primorosa, policromática, iridescente e preciosa jóia, confrontada às
desconcertantes aberrações que dominam e inundam o hodierno e midiático cenário
musical pátrio, onde uma de suas figuras de proa - uma impetuosa e
vulcânica beldade - proclama-se "a tal" por ostentar tatuagem em
inusitado e inimaginável local. Será que existe ponto de reflexão mais
convincente para simbolizar a inabalável certeza da manifesta decadência de
todo o contexto musical pátrio, outrora de excelente nível, do que essa
extravagante - bizarra é o termo mais correto - atitude, supinamente insana,
que, mesmo assim, mereceu insensatas loas e ovações por parte dessa mesma e
alucinada mídia? "O tempora! O mores!", clamaria em vão no deserto
Marco Túlio Cícero (106 a. C. - 43 a. C), o mais eloquente de todos os oradores
romanos.
Deixando as polêmicas de lado, vou me ater à face não pútrida da
dicotomia por mim levantada.
O fluminense Vicente Celestino, nascido no pitoresco e aprazível bairro
de Santa Teresa, era
filho de imigrantes calabreses. Na infância - sua época
ainda não estava contaminada pela devastadora gangrena ideológica do
politicamente correto -, aprendeu o ofício de sapateiro com o pai. Aos oito
anos de idade, já cantava no grupo "Pastorinhas da Ladeira do Viana".
Aos nove, integrou o coro infantil da ópera "Carmen", do celebrado
compositor francês Georges Bizet (1838-1875), apresentada no Teatro Lírico do
Rio de Janeiro, despertando a atenção do extraordinário tenor napolitano Enrico
Caruso (1873-1921) - considerado o maior intérprete da música erudita de todos
os tempos pelo venerável tenor modenense Luciano Pavarotti (1935-2007) -, que o
convidou para viajar à Itália, a fim de estudar canto lírico, o que foi
recusado por seu genitor.
Além de sapateiro, trabalhou como vendedor e servente de pedreiro. A
partir de 1912, começou a cantar em bares, clubes recreativos, festas e
serenatas, deixando toda e qualquer atividade laboral de lado para se dedicar
exclusivamente à música. Tocava com louvável desembaraço piano e violão. O seu
primeiro disco foi gravado em 1915, ou 1916.
Também passou a trabalhar como ator, encenando várias peças, com destaque
para o seu trabalho na opereta "Juriti", com letra de Viriato Correia
(1884-1967) e música de Chiquinha Gonzaga (1847-1935).
Em 1920, Vicente Celestino, dono de poderosa voz com timbre de tenor,
fundou sua própria companhia de canto lírico, vindo a encenar, além da
supracitada "Carmen", as magistrais óperas "Lucia de
Lammermoor", de Gaetano Donizetti (1797-1848), "Aída", de
Giuseppe Verdi (1813-1901), e "Tosca", de Giacomo Puccini
(1858-1924). Suas apresentações sempre foram muito bem recebidas pelo público.
O nominado artista excursionou por grande parte do território brasileiro.
Em 1933, contraiu núpcias com a refinada atriz, cantora e cineasta Gilda
de Abreu (1904-1979), nascida em Paris.
Vivia-se a época de ouro do rádio, e as músicas compostas e/ou interpretadas
por Vicente Celestino atingiam estrondoso sucesso popular, com destaque
especial para as canções "O Ébrio" (1936), "Coração
Materno" (1937), "Patativa" (1937) e "Porta Aberta"
(1946). A primeira foi adaptada como peça teatral, em 1941, e a segunda como
opereta, em 1946, sendo ambas levadas às telas do cinema, respectivamente, nos
anos de 1946 e 1951, por sua esposa Gilda de Abreu.
Estima-se que o filme "O Ébrio", um fenomenal êxito de
bilheteria, tenha sido visto por mais de doze milhões de espectadores, o que o
eleva à condição de uma das películas nacionais de maior receptividade popular.
Vicente Celestino detém a meritória referência de ter sido o primeiro
artista a gravar, em 1917, o nosso Hino Nacional, de autoria de Francisco
Manuel da Silva (1795-1865), com letra de Joaquim Osório Duque Estrada
(1870-1927), antes mesmo de ser oficialmente chancelado como tal.
Vicente Celestino, cognominado "A Voz Orgulho do Brasil",
faleceu nas dependências do Hotel Normandie, na capital paulista, onde estava
hospedado, como decorrência de um fulminante infarto enquanto se preparava para
ser homenageado, em um programa de televisão, por dois promissores jovens
que despontavam no horizonte musical de nosso país, empunhando
a vanguardista bandeira do movimento da Tropicália: os baianos Caetano Veloso e
Gilberto Gil, ambos nascidos em 1942.
Vicente Celestino, honra e glória da música popular brasileira, merece
todo o nosso respeito e admiração.
(*) Francisco Santamaria Mont'Alverne Parente - Juiz de Direito. Membro da Academia Sobralense de Estudos e Letras. Membro da Academia Cearense de Cinema. Ator de radionovela sob a direção de Marques da Cruz.
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