domingo, 17 de abril de 2022

Um preito de gratidão a Vicente Celestino (Por Dr. Francisco Santamaria Mont'Alverne Parente*)


Elegi o brinde musical ora enfocado movido por um sentimento de provocação, em contraponto à massificação do asfixiante lixo musical, deletéria quintessência do mau gosto, que a grande e poderosa mídia brasileira divulga, com furiosa sanha iconoclasta repleta de suspeitíssima intensidade, degradante propósito e invulgar competência, na tentativa, até agora deploravelmente exitosa, de levar a cabo, a ferro, fogo e goela abaixo, a tenebrosa destruição dos paradigmáticos valores que foram assentados ao longo dos séculos pela humanidade.

A indigência vernacular e a espantosa vulgaridade, aliadas à absoluta ausência de qualquer átomo porventura construtivo, constatadas no atual e insalubre panorama musical brasileiro, prenhe de pornografia chula - vistosamente exibida em coreografias que explicitam os mais baixos instintos -, contrastam, de forma atroz, com o rico, pujante e caudaloso acervo de nossa música popular, onde sempre esteve presente o talento de seus valorosos compositores e intérpretes.

A título de melhor comparação, escolhi como perfeito parâmetro para cotejar o gosto musical popular, no passado e nos tempos atuais, a composição que possivelmente tenha atingido o ápice da consagração perante o imenso contingente do povo brasileiro até hoje: "O Ébrio", de Vicente Celestino (1894-1968).

Simplesmente inexiste o menor padrão comparatório.

A despeito de sua carga melodramática de altíssima voltagem, digna de um dramalhão - e dos bons - da Pelmex, a referida composição constitui uma primorosa, policromática, iridescente e preciosa jóia, confrontada às desconcertantes aberrações que dominam e inundam o hodierno e midiático cenário musical pátrio, onde uma de suas figuras de proa  - uma impetuosa e vulcânica beldade - proclama-se "a tal" por ostentar tatuagem em inusitado e inimaginável local. Será que existe ponto de reflexão mais convincente para simbolizar a inabalável certeza da manifesta decadência de todo o contexto musical pátrio, outrora de excelente nível, do que essa extravagante - bizarra é o termo mais correto - atitude, supinamente insana, que, mesmo assim, mereceu insensatas loas e ovações por parte dessa mesma e alucinada mídia? "O tempora! O mores!", clamaria em vão no deserto Marco Túlio Cícero (106 a. C. - 43 a. C), o mais eloquente de todos os oradores romanos.

Deixando as polêmicas de lado, vou me ater à face não pútrida da dicotomia por mim levantada.

O fluminense Vicente Celestino, nascido no pitoresco e aprazível bairro de Santa Teresa, era
filho de imigrantes calabreses. Na infância - sua época ainda não estava contaminada pela devastadora gangrena ideológica do politicamente correto -, aprendeu o ofício de sapateiro com o pai. Aos oito anos de idade, já cantava no grupo "Pastorinhas da Ladeira do Viana". Aos nove, integrou o coro infantil da ópera "Carmen", do celebrado compositor francês Georges Bizet (1838-1875), apresentada no Teatro Lírico do Rio de Janeiro, despertando a atenção do extraordinário tenor napolitano Enrico Caruso (1873-1921) - considerado o maior intérprete da música erudita de todos os tempos pelo venerável tenor modenense Luciano Pavarotti (1935-2007) -, que o convidou para viajar à Itália, a fim de estudar canto lírico, o que foi recusado por seu genitor.

Além de sapateiro, trabalhou como vendedor e servente de pedreiro. A partir de 1912, começou a cantar em bares, clubes recreativos, festas e serenatas, deixando toda e qualquer atividade laboral de lado para se dedicar exclusivamente à música. Tocava com louvável desembaraço piano e violão. O seu primeiro disco foi gravado em 1915, ou 1916.

Também passou a trabalhar como ator, encenando várias peças, com destaque para o seu trabalho na opereta "Juriti", com letra de Viriato Correia (1884-1967) e música de Chiquinha Gonzaga (1847-1935).

Em 1920, Vicente Celestino, dono de poderosa voz com timbre de tenor, fundou sua própria companhia de canto lírico, vindo a encenar, além da supracitada "Carmen", as magistrais óperas "Lucia de Lammermoor", de Gaetano Donizetti (1797-1848), "Aída", de Giuseppe Verdi (1813-1901), e "Tosca", de Giacomo Puccini (1858-1924). Suas apresentações sempre foram muito bem recebidas pelo público. O nominado artista excursionou por grande parte do território brasileiro.

Em 1933, contraiu núpcias com a refinada atriz, cantora e cineasta Gilda de Abreu (1904-1979), nascida em Paris.

Vivia-se a época de ouro do rádio, e as músicas compostas e/ou interpretadas por Vicente Celestino atingiam estrondoso sucesso popular, com destaque especial para as canções "O Ébrio" (1936), "Coração Materno" (1937), "Patativa" (1937) e "Porta Aberta" (1946). A primeira foi adaptada como peça teatral, em 1941, e a segunda como opereta, em 1946, sendo ambas levadas às telas do cinema, respectivamente, nos anos de 1946 e 1951, por sua esposa Gilda de Abreu.

Estima-se que o filme "O Ébrio", um fenomenal êxito de bilheteria, tenha sido visto por mais de doze milhões de espectadores, o que o eleva à condição de uma das películas nacionais de maior receptividade popular.

Vicente Celestino detém a meritória referência de ter sido o primeiro artista a gravar, em 1917, o nosso Hino Nacional, de autoria de Francisco Manuel da Silva (1795-1865), com letra de Joaquim Osório Duque Estrada (1870-1927), antes mesmo de ser oficialmente chancelado como tal.

Vicente Celestino, cognominado "A Voz Orgulho do Brasil", faleceu nas dependências do Hotel Normandie, na capital paulista, onde estava hospedado, como decorrência de um fulminante infarto enquanto se preparava para ser homenageado, em um programa de televisão, por dois promissores jovens que   despontavam no horizonte musical de nosso país, empunhando a vanguardista bandeira do movimento da Tropicália: os baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil, ambos nascidos em 1942.

Vicente Celestino, honra e glória da música popular brasileira, merece todo o nosso respeito e admiração.



(*) Francisco Santamaria Mont'Alverne Parente - Juiz de Direito. Membro da Academia Sobralense de Estudos e Letras. Membro da Academia Cearense de Cinema. Ator de radionovela sob a direção de Marques da Cruz.



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