"Questionar a
independência e a neutralidade do Judiciário faz parte da cartilha quando você
está fortalecendo um regime mais autoritário", disse Berthin em entrevista
à BBC News Brasil.
Berthin é
especialista em governança democrática e atua na Freedom House, em Washington,
DC (EUA). A instituição é uma organização não-governamental de viés liberal que
faz o monitoramento do ambiente democrático em 185 países. Um dos seus produtos
mais conhecidos é o relatório "Liberdade no Mundo", divulgado
anualmente.
O relatório
analisa quão livres são os países, com base em critérios como direitos civis e
políticos e liberdade de expressão. As notas vão de 0 a 100 - quanto maior a
pontuação, mais livre é o país.
Os dados da
Freedom House são usados por acadêmicos e instituições ao redor do mundo como
indicadores sobre a saúde da democracia em países governados tanto por
políticos de esquerda quanto de direita.
Para o Brasil, no
entanto, as notícias não são boas. Desde 2016, a nota do país vem caindo.
Naquele ano, o Brasil atingiu a nota 81, o que o colocava no grupo das nações
consideradas livres.
Em 2022, a nota
chegou a 73, somente três pontos acima do mínimo para que um país seja
considerado livre. Abaixo de 70, os países são classificados como
"parcialmente livres". Nesta categoria, estão nações como Bolívia,
Colômbia e Mauritânia.
À BBC News Brasil,
Berthin afirmou que a queda no ambiente democrático no Brasil é uma das mais
acentuadas nas Américas, comparável à da Venezuela, que não é considerado um
país livre pela organização. Ele diz que as críticas feitas pelo presidente
Jair Bolsonaro (PL) ao sistema eleitoral e as avaliações de alguns de que ele
poderia não aceitar o resultado das eleições caso saia derrotado em outubro são
motivo de preocupação.
Ele diz que as
eleições brasileiras serão monitoradas de perto e afirma ainda que uma possível
ruptura democrática no país teria efeitos não apenas no Brasil, mas em todo o
mundo.
Confira os
principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil -
A Freedom House é famosa pelo ranking sobre a democracia no mundo. De acordo
com ele, a pontuação do Brasil está ficando cada vez menor desde pelo menos
2016. Em 2017, era 79 e agora é 73. Por que isso aconteceu?
Gerardo Berthin
- O Brasil ainda é classificado
como um país livre pela Freedom House, mas se você olhar comparativamente, ele
está lá atrás, muito perto dos países considerados parcialmente livres das
Américas. Estamos preocupados, principalmente, com questões relacionadas à
liberdade de expressão online, que tem diminuído consistentemente nos últimos
anos, particularmente no que diz respeito a ativistas e jornalistas. Eles estão
enfrentando cada vez mais investigações criminais, particularmente por criticar
o atual governo [...]
Neste ano em
particular, a nota caiu um ponto por causa das restrições à liberdade acadêmica
[...] Há vários relatos que surgiram sobre instituições federais e
universidades públicas sendo ameaçadas para demitir pesquisadores depois que
eles questionaram e criticaram o governo. O ato mais notável ocorreu no
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Eles demitiram o diretor, Ricardo Galvão, provavelmente,
por ter desafiado o presidente Bolsonaro.
BBC News Brasil -
O Brasil terá eleições neste ano. A comunidade internacional está preocupada
com a forma como esse processo ocorrerá aqui?
Gerardo Berthin
- Temos duas eleições cruciais
sendo monitoradas. Uma delas é na Colômbia, em maio. A outra é no Brasil. E há
algumas preocupações sobre se Bolsonaro e seus aliados ou seus apoiadores
voltarão a inundar o ambiente online com desinformação, como fizeram em 2018.
Isso pode ameaçar a integridade da eleição.
Além disso, por
muitas vezes, o regime de Bolsonaro também deu a entender que não reconhecerá o
resultado das eleições se ele perder, mais ou menos como Donald Trump fez em
2020. Estamos observando isso de perto. Não vamos esquecer que Bolsonaro atacou
a legitimidade das instituições eleitorais. Ele enviou uma emenda
constitucional sobre o voto impresso e assinou um decreto que proibia as redes
sociais de remover informações relacionadas a eleições. Mesmo que essas
tentativas tenham falhado, sabemos que essas medidas teriam dado legitimidade a
alegações infundadas de fraude e poderiam aumentar o potencial de intimidação
dos eleitores.
BBC News Brasil -
Quão fortes são as preocupações sobre uma possível ruptura democrática no Brasil
a depender dos resultados das eleições?
Gerardo Berthin
- Estamos vendo tendência global
de mudança para regimes mais autoritários. Acho que o Brasil faz parte dessa
tendência. Se você olhar a análise da Freedom House na última década, há dois
países na América do Sul que realmente perderam pontos em relação aos direitos
civis e políticos. Um deles é a Venezuela, que é considerada não-livre pela
Freedom House. O outro é o Brasil. É claro que existem outros países na América
do Sul que são considerados parcialmente livres: Bolívia, Colômbia e Paraguai,
por exemplo.
Mas esses dois
países, Venezuela e Brasil, estão mostrando os declínios mais profundos nos
direitos civis e políticos da última década. É preocupante ver o que está
acontecendo.
BBC News Brasil -
Na sua opinião, o presidente Bolsonaro já fez algum tipo de ameaça às
instituições democráticas do país durante o seu mandato?
Gerardo Berthin
- Acho que sim. Desde 2019,
nossos relatórios têm documentado isso, particularmente em relação à restrição
de direitos políticos e liberdades civis. Isso se reflete nesse declínio da
pontuação do país. Como mencionei antes, existe essa a questão da liberdade de
expressão, particularmente em relação aos defensores dos direitos humanos,
ativistas e jornalistas. Também há as restrições à liberdade acadêmica e essa
tentativa de limitar as empresas de mídia social em sua capacidade de fazer
cumprir seus próprios termos de serviços. Se você analisar esses incidentes e
essas evidências, há um risco de que Bolsonaro talvez não entenda totalmente
que as eleições precisam ser livres e transparentes. Há uma demonstração de que
talvez ele possa não estar disposto a apoiar eleições justas e transparentes
que virão em outubro.
BBC News Brasil -
E quais seriam as consequências para o Brasil se os resultados das eleições não
fossem respeitados?
Gerardo Berthin
- Essa é uma pergunta
interessante. O jogo geopolítico será importante. Talvez essa seja uma das
razões pelas quais há alianças sendo feitas com a Rússia. Lembre-se que o
presidente Bolsonaro visitou o presidente Vladimir Putin algumas semanas antes
da invasão da Ucrânia. O outro fator geopolítico é a China. O Brasil também tem
relações crescentes com a China. Existem alguns instrumentos regionais como a
Organização dos Estados Americanos (OEA), que pode aplicar a Carta da
Democracia se isso acontecer. Certamente, os Estados Unidos reagiriam. Isso
seria muito preocupante porque o Brasil não é apenas um líder regional por seu
tamanho e sua história, mas também é um líder global. E o que quer que aconteça
no Brasil, não só afetará seus vizinhos, particularmente aqueles que já estão
tendo alguns problemas como Bolívia, Peru e talvez Colômbia, mas também
afetaria fatores geopolíticos em todo o mundo. A ONU também será outro ator
muito importante na reação se de fato algo assim acontecer.
BBC News Brasil -
Considerando as últimas décadas, este é o momento de maior preocupação em
relação à saúde da democracia brasileira?
Essas eleições são
um momento decisivo?
Gerardo Berthin
- O que aprendemos é que o
retrocesso da democracia, a menos que seja feito por um golpe de estado, é um
processo gradual e incremental. O que estamos vendo no Brasil são os primeiros
indícios de que há um retrocesso sustentado da democracia desde 2016. O que irá
acontecer a partir de agora dependerá de quão fortes são as instituições que
defenderão a democracia como, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal, os
órgãos eleitorais, etc.
Se esse é o último
respiro da democracia no Brasil? Ainda não é possível dizer porque ainda
existem algumas forças boas por aí. Há forças democráticas que podem impedir
que essas eleições sejam as últimas. Mas, como eu disse, as democracias tendem
a morrer muito gradualmente e, por conta de todas as indicações e evidências
que eu mencionei, o Brasil está lentamente recuando em seu progresso
democrático.
BBC News Brasil -
Alguns analistas afirmam que o presidente Bolsonaro e o ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva são radicais e que uma vitória de qualquer um deles
colocaria a democracia no Brasil em perigo. O senhor vê os dois como radicais?
Gerardo Berthin
- Eu diria que mais do que
radicais, eles estão na extremidade oposta do espectro político. Uma das coisas
que vimos em todo o mundo é que essa classificação entre esquerda e direita não
faz mais sentido.
Basta ver que, na
França, muitas das posições da extrema direita também estão presentes nas
respostas apresentadas pela esquerda. No Brasil, eles (Bolsonaro e Lula) são
dois pontos que estão polarizando e não há nada no meio. Muito provavelmente,
muitos países estão sofrendo com isso porque não há um centro forte. Ambos os
candidatos precisam se pronunciar mais ativamente a favor dos valores
democráticos. Se eles não forem capazes de fazer isso, certamente a polarização
vai continuar e sabemos que ela não é boa.
BBC News Brasil -
Falamos bastante sobre o papel desempenhado pelo presidente Bolsonaro, mas a
nota do Brasil no ranking da democracia começou a cair antes de ele assumir o
governo. Quais as responsabilidades de outros partidos e atores políticos em
relação a isso?
Gerardo Berthin
- A dinâmica nacional é
importante em todos os países. Certamente, há algumas coisas que eles podem
fazer. E uma das maneiras de renovar e reformar nossa democracia é também
garantir que os partidos políticos sejam renovados, que eles realmente
representem os interesses daqueles que são mais vulneráveis ou marginalizados
para evitar termos uma eleição na qual você precisa escolher entre dois males,
como foi também o caso do Peru, recentemente. O Brasil e outros precisam
proteger eleições livres e justas. A integridade das eleições é muito
importante para fortalecer essas instituições. Mas, com certeza, temos que
começar a renovar os sistemas e processos políticos que não foram renovados ou
melhorados desde que fizemos a transição para as democracias no final dos anos
1980.
BBC News Brasil -
O senhor disse que os peruanos tiveram que escolher entre dois males. O senhor
acredita que a escolha entre Bolsonaro e Lula é uma escolha entre dois males?
Gerardo Berthin
- Provavelmente, não. Eu não
usaria isso no caso do Brasil, mas certamente é uma escolha entre dois
extremos.
BBC News Brasil -
O ex-presidente Lula tem falado sobre a necessidade de regulamentar a mídia no
Brasil. Isso lhe preocupa?
Gerardo Berthin
- Muitos países estão tratando
esse dilema em termos de como lidar com a evolução empoderadora das empresas de
mídia social.
Acabamos de ver
Elon Musk comprando o Twitter. Não há uma solução mágica porque você precisa
equilibrar, por um lado, a liberdade de expressão com a proteção dos direitos
humanos, mas também precisa ter alguma forma de regulamentação. Esse será o
tema da próxima década, já que essas empresas começam a ter mais poder do que
muitos estados e estão orientando algumas políticas que estão afetando
negativamente as pessoas. Estou feliz que ele esteja falando sobre isso. Espero
que ele tenha boas soluções para isso.
BBC News Brasil -
Recentemente, o presidente Bolsonaro contrariou uma decisão do Supremo Tribunal
Federal e perdoou um parlamentar condenado em um caso que investigava atos
antidemocráticos. Como você avalia isso?
Gerardo Berthin - Não estou familiarizado com isso nesse caso
em particular.
Não sei se eu
poderia comentar.
BBC News Brasil -
No Brasil, há muitas críticas sobre o papel desempenhado pelo Judiciário.
Alguns aliados de Bolsonaro e até mesmo o presidente dizem que o Judiciário vem
interferindo dentro do governo.
Na sua opinião, o
Judiciário brasileiro vem adicionando mais pressão ao cenário político?
Gerardo Berthin
- Em geral, é bom ter poderes
independentes. Esse conceito de freios e contrapesos é muito importante para
garantir que nem o Executivo, o Legislativo ou o Judiciário tenham mais poder
do que os outros e que eles verifiquem a ação um do outro. O Brasil é um
sistema federativo com um presidente muito poderoso. Dessa forma, ter um
judiciário que possa interpretar a lei e ser justo e transparente é sempre
muito importante.
BBC News Brasil -
Como o senhor vê os conflitos entre o atual governo e o Judiciário?
Gerardo Berthin - Questionar a independência e a neutralidade
do Judiciário faz parte da cartilha quando você está fortalecendo um regime
mais autoritário.
BBC News Brasil -
O senhor acredita que o presidente Bolsonaro está se comportando de acordo com
essa cartilha?
Gerardo Berthin
- Acho que há intenção. Agora,
se isso se traduziria em ações nós precisamos ver. Entretanto, minar o estado
de direito enfraquece a independência judicial.
BBC News Brasil -
O senhor trabalha com a possibilidade de o presidente Bolsonaro não entregar o
governo caso ele perca as eleições?
Gerardo Berthin
- Bem... ele já falou sobre
isso, na verdade. E o que estamos descobrindo, por exemplo, no caso dos Estados
Unidos, é que isso era uma possibilidade com Trump. E o que evitou que isso
acontecesse foi a força das instituições e a força dos indivíduos que continuam
a acreditar nos valores democráticos. Esperamos que mesmo que sua (Bolsonaro)
intenção seja fazer isso, que as instituições brasileiras estejam à altura da
ocasião, que os verdadeiros democratas estejam à altura da ocasião e defendam a
democracia contra alguém que não concorda com os resultados da eleição.
BBC News Brasil -
O senhor classificaria o presidente Bolsonaro como um democrata?
Gerardo Berthin - Ele mostrou muitos traços autoritários, em certo sentido. Se ele fizer outro movimento, a opção nuclear (se negar a aceitar o resultado das eleições) então, provavelmente, ele se revelaria. Até agora, ele está caminhando sobre uma linha tênue e esperamos que ele continue sobre essa linha até depois das eleições.
(BBC)
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