"Tem
dias que não temos o que comer. Já cheguei a chorar depois que meu filho me
pediu comida e não tinha nada para dar", conta Maria Luiza.
A
região Norte do Brasil, onde está localizado o Estado do Amazonas, é a mais
atingida pela má distribuição de alimentos no Brasil atualmente: 71,6% sofrem
com a insegurança alimentar, enquanto a fome extrema faz parte do cotidiano de
25,7% das famílias — o equivalente a algo em torno de 4,6 milhões de pessoas.
Os
índices são superiores aos das médias nacionais: em todo o Brasil,
aproximadamente 43,2% da população sofre com insegurança alimentar leve ou
moderada e 15,5% com a forma mais grave.
Os
dados são do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da
Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede PENSSAN e divulgado no
início de junho.
Já
segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO),
28,9% da população enfrenta a insegurança alimentar moderada ou grave.
Diante
do cenário de fome crescente no país, especialistas consultados pela BBC News
Brasil apontam que as crianças podem ser as mais atingidas.
Durante
os primeiros anos de vida, a evolução do cérebro acontece a uma velocidade
incrível — a 1 milhão de conexões entre neurônios por segundo. E a desnutrição
pode impactar diretamente no fornecimento de nutrientes necessários para esse
desenvolvimento.
Há
duas formas de desnutrição primária: a subnutrição e a obesidade. A primeira
pode se apresentar em todos os níveis de insegurança alimentar, mas tem maior
incidência nas fases moderada ou grave.
Os
médicos alertam ainda para um fenômeno conhecido como desnutrição silenciosa,
quando geralmente o diagnóstico só acontece quando já há uma doença
estabelecida.
"O
cérebro de uma criança se desenvolve de uma forma muito intensa no período que
vai da gestação até os 5 anos de idade e a desnutrição pode ter impactos
profundos nesse processo, em casos mais graves ou de privação longa até
irreversíveis", diz Márcia Machado, professora do departamento de Saúde
Pública da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) e
membro do Comitê Científico do NCPI - Núcleo Ciência Pela Infância.
Segundo
o banco de dados DataSUS, do Ministério da Saúde, 13,78% das crianças de até 5
anos atendidas pelo SUS de janeiro a setembro de 2021 apresentavam peso
inadequado.
Uma
pesquisa do instituto Datafolha, de maio de 2021, revelou ainda que a
insegurança alimentar afetava um a cada três lares com crianças de até 6 anos
no Brasil, elevando as chances de ocorrência de desnutrição infantil.
Falta de nutrientes na gravidez
Segundo
especialistas, o comprometimento do desenvolvimento pela má nutrição pode
começar ainda na gestação.
Os
médicos consideram justamente os primeiros mil dias de vida — período que vai
do início da gravidez até os 2 anos — como a fase mais importante para o
desenvolvimento físico e mental do ser humano.
"Muitos
estudos mostram que a privação de alimentos enfrentada pela mãe pode repercutir
tanto no crescimento como no desenvolvimento da criança, pois o sistema
neuronal necessita de eletrólitos, proteínas, vitaminas e outras substâncias
para ser ativado", diz Márcia Machado.
Diversas
vitaminas e minerais são importantes nesse período, entre eles o zinco, o
ferro, a vitamina C e o ácido fólico.
Esse
último, por exemplo, previne malformações fetais e pode reduzir em até 93% a
incidência de defeitos do tubo neural, que mais tarde torna-se a medula
espinhal, o cérebro e as estruturas protetoras vizinhas.
Os
médicos apontam também um menor peso e comprimento ao nascer, alterações do
desenvolvimento motor e visual, o aumento da incidência de diabetes, doenças
respiratórias e doenças cardiovasculares e até risco maior de doenças como
esquizofrenia e distúrbios da personalidade como possíveis consequências da
falta de nutrientes na gestação.
Uma
pesquisa realizada na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) mostrou
ainda que desnutrição materna durante a gestação pode levar à má-formação de
órgãos linfáticos, fígado, intestino e cérebro.
Também
é preciso cautela em relação à ingestão do iodo durante a gravidez, segundo a
pediatra Mônica Moretzsohn, do departamento científico de Nutrologia da
Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
"Bebês
de mães que consomem baixas quantidades de iodo podem passar por crescimento
inadequado e hipodesenvolvimento cerebral", diz.
Segundo
a médica, no Brasil é bastante comum o consumo de sal iodado, que geralmente
supre as demandas pelo nutriente. "Mas em casos específicos, a Organização
Mundial da Saúde (OMS) recomenda a suplementação na gestação."
Nos primeiros anos de vida
A
evolução do cérebro e do sistema cognitivo continua de forma intensa mesmo após
a gravidez, de maneira especial até os 5 anos de idade.
Os
médicos chamam a atenção, porém, para o período que vai até os 2 anos e que
ainda compreende os primeiros mil dias de vida.
Segundo
os especialistas consultados pela BBC News Brasil, a subnutrição pode levar a
consequências danosas para o desenvolvimento cognitivo e motor nesse intervalo
da vida, além de problemas nos sistemas neurológico e imunológico, na visão e
até retardo na curva de crescimento.
"As
deficiências nutricionais mais comumente observadas em todo o mundo estão
associadas à falta de ferro, vitamina A, iodo e zinco", afirma Mônica
Moretzsohn.
De
acordo com a médica, a carência de ferro, que em sua forma mais grave é
conhecida como anemia ferropriva, pode causar impactos grandes no
desenvolvimento cognitivo das crianças, levando à dificuldade de aprendizado e
até menor capacidade de trabalho na idade adulta.
Os
sintomas mais frequentes associados à falta desse nutriente são irritabilidade,
apatia, fadiga, diminuição da capacidade física e dor de cabeça.
A
deficiência de vitamina A, presente em alimentos como a gema do ovo, o leite e
frutas e legumes de cores vivas, por exemplo, está entre as principais causas
de cegueira evitável em crianças menores de 5 anos, segundo Moretzsohn.
A
maior parte da visão se desenvolve até os 2 anos de idade, mas apenas por volta
dos 7 anos a capacidade total de enxergar estará completamente formada. Por
isso, os médicos alertam para a atenção dos pais aos menores sinais de
irregularidades.
Nas
crianças menores de 2 anos, o iodo também é essencial para o desenvolvimento do
sistema nervoso central e dos hormônios da tireoide.
Sua
deficiência pode causar cretinismo nas crianças (retardo mental grave e
irreversível), surdo-mudez, anomalias congênitas, bem como a manifestação clínica
mais visível: o bócio (crescimento da glândula tireoide).
O
zinco, por sua vez, está envolvido em mais reações enzimáticas dentro do
organismo do que qualquer outro mineral.
O
baixo consumo do nutriente afeta drasticamente o crescimento das crianças, levando
à falta de apetite, redução do olfato e paladar, alterações no sistema
imunológico e deixando o organismo mais exposto a infecções.
"A
falta de zinco pode levar à deficiência de outros nutrientes secundários. A
vitamina A, por exemplo, pode não ser aproveitada pelo organismo quando há uma
carência desse mineral", afirma Mônica Moretzsohn.
A
nutróloga explica que crianças que são privadas desses e outros nutrientes
podem desenvolver inicialmente um quadro de desnutrição aguda e posteriormente
de desnutrição crônica.
"Em
um primeiro momento, a criança desnutrida continua com o crescimento normal,
mas logo ela começa a parar de ganhar peso e depois a emagrecer. A partir de
três meses, pode haver comprometimento do crescimento", diz.
"Se
não houver uma intervenção e a criança continuar nesse processo, ela pode não
atingir sua altura ideal. Mesmo que o crescimento seja recuperado alguns anos
depois, isso certamente terá impacto na estatura final."
Os
filhos de Maria Luiza provavelmente fazem parte das estatísticas de desnutrição
no Brasil. O mais novo já está em idade de introdução alimentar, mas passa
muitos dias apenas com o leite materno.
"Ele
já come, mas nesses dias sem ter o que comer, ele fica só no peito. Mesmo que
eu fique fraca, por não ter me alimentado, consigo amamentar", diz a
amazonense.
Já seu
filho mais velho, de 3 anos, está abaixo do peso ideal para a idade. "Às
vezes ele vê alguém comendo na rua e chora de vontade, mas eu tenho que dizer
que não tenho dinheiro para comprar o que ele quer", lamenta a dona de
casa.
A
família recebe o Auxílio Brasil, programa de benefício do Ministério da
Cidadania que sucedeu o Bolsa Família, além de cartão alimentação doado por uma
organização não-governamental, a ONG Visão Mundial.
Com o
orçamento apertado, a família diz não saber mais o que é comer carne. O que
eles conseguem comprar são peles de frango, que pegam no ponto de abate. Antes,
de maneira gratuita, agora ao custo de R$ 5 por saco.
"Se
comemos no almoço, não tem para a janta. Ou se comemos na janta, falta para o
almoço do dia seguinte", lamenta Maria Luiza, que relata ter perdido 17
quilos nos últimos três anos. "Às vezes me sinto fraca, fico com tontura e
a vista escurecida."
Impactos na vida adulta
Os
problemas decorrentes da falta de uma nutrição adequada nos primeiros anos de
vida podem marcar também a trajetória estudantil e adulta de crianças
mal-nutridas ao produzirem efeitos no desenvolvimento do cérebro e da cognição.
Diversos
estudos já mostraram que o processo de desenvolvimento obedece a um programa
genético influenciado por diversos fatores ambientais, incluindo os
nutricionais.
Além
disso, segue uma sequência temporal de amadurecimento gradativo de circuitos
neurais, iniciando pelos sistemas sensoriais, seguidos dos sistemas motores e
depois dos mais complexos: cognitivos, emocionais e outros
Segundo
os médicos, as consequências da subnutrição nesse setor são numerosas,
incluindo retardo mental, atraso do neurodesenvolvimento, dificuldades de
aprendizagem e baixa capacidade para resolução de problemas — durante a
infância e também no futuro.
Uma
pesquisa mostrou que crianças em situação de insegurança alimentar têm o dobro
de chance de apresentar hiperatividade e problemas de atenção no futuro quando
comparadas àquelas que viveram em situação de segurança alimentar.
Além
disso, essas crianças podem apresentar menor desempenho em testes de
compreensão da linguagem e atrasos no desenvolvimento emocional, motor e
cognitivo, que podem perdurar.
O
médico neurologista Claudio Serfaty, professor da Universidade Federal
Fluminense, coordena na instituição pesquisas que analisam o impacto da
carência de dois nutrientes específicos no desenvolvimento e plasticidade do
cérebro: o aminoácido triptofano e ácidos graxos ômega-3.
Ambos
dependem integralmente da ingesta alimentar e, enquanto o triptofano está
presente principalmente em proteínas de alto valor biológico, como carnes,
sementes, nozes, castanhas e amendoins, os ácidos graxos ômega-3 são
encontrados principalmente em peixes oceânicos, e, em menor quantidade, em
vegetais escuros.
"As
fontes de triptofano e ácidos graxos ômega-3 são alimentos mais caros. E com o
quadro de fome que vivemos no momento, podemos ter toda uma geração de crianças
cronicamente mal nutridas em uma fase do desenvolvimento super
importante", diz ele.
Segundo
Serfaty, a falta do triptofano reduz drasticamente os níveis de serotonina no
cérebro, atrasa a formação de conexões e a capacidade plástica dos circuitos
neurais em desenvolvimento.
"O
cérebro em desenvolvimento só adquire as plenas capacidades sensoriais, motoras
e cognitivas mediante a existência de plasticidade", explica.
No
caso dos ácidos graxos ômega-3, os estudos com animais de experimentação
mostraram que a carência nutricional também pode resultar em danos permanentes
ao refinamento de circuitos neurais e alterações na plasticidade cerebral,
principalmente quando ocorre nos primeiros anos de vida.
"Notamos
um grande atraso na maturação dos sistemas sensoriais e a indução de um
processo de neuroinflamação causados pela restrição nutricional", explica
Claudio Serfaty.
"A
própria neuroinflamação atrapalha muito o desenvolvimento do cérebro."
Portanto,
esses estudos sugerem que a má nutrição durante a infância, entre outros
aspectos, pode alterar o curso temporal e os parâmetros de conectividade,
impactando a capacidade de aprendizado.
Segundo
o médico, as sequelas deixadas pela deficiência nutricional tendem a ser
permanentes quando a desnutrição progride de forma contínua durante os 5
primeiros anos de vida.
"Os
nutrientes pesquisados são importantes durante a vida toda, mas sua falta na
infância pode induzir quadros permanentes", diz.
"Nossos
modelos experimentais dizem que se a criança tiver o restabelecimento de uma
dieta saudável dentro dos primeiros anos de vida é muito possível que esses
déficits sejam transitórios, mas em caso contrário corre-se o risco de produzir
danos permanentes."
Estudos
apontam ainda que independentemente de ter ocorrido uma lesão cerebral, uma
criança que tem a fome não saciada pode perder a motivação para explorar o
ambiente e, assim, ter um atraso na aquisição de certas habilidades cognitivas.
A fome
ainda pode ser uma barreira a mais para que as crianças de baixa renda consigam
quebrar o ciclo de pobreza em que vivem.
"A
má alimentação tem impactos que vão além da saúde física também. Um adolescente
que cresceu em meio a um ambiente de insegurança pode perder a oportunidade de
estudar e mudar de vida, por exemplo", diz Márcia Machado.
A
professora ressalta ainda que a privação de alimentos pode impactar na saúde
mental das crianças, durante a infância e no futuro.
"A
fome causa uma sensação de estresse permanente, que chamamos de estresse
tóxico. Uma criança que vive nessa situação tende a apresentar sinais de
irritabilidade e depressão no futuro, especialmente na adolescência", diz
a professora da Universidade Federal do Ceará.
"Quando
isso está associado a um comportamento também mais estressado dos pais, que
estão preocupados e por vezes mais agressivos, as consequências são ainda
maiores."
Um
estudo desenvolvido por uma professora britânica e publicado em 2013 no
periódico científico Journal of Affective Disorders indicou que a fome na
infância pode ser um fator preditor da depressão e do aparecimento de ideias
suicidas na adolescência e no início da idade adulta.
"O
poder público precisa dar atenção não somente para as crianças em situação de
fome, mas para a família toda", diz Márcia Machado.
"O
cérebro na infância é como uma esponja e as crianças são muito influenciadas
pelo ambiente em que vivem, além de pelos componentes genéticos."
'Dou chá e farinha para encher a barriga'
Também
moradora do Amazonas, mas do município de Careiro Castanho, a 124 km de Manaus,
Eriane, de 34 anos, se emociona ao falar da situação de escassez que sua
família enfrenta atualmente.
Ela e
o marido Josenias, 49, criam os seis filhos pequenos, entre crianças e
adolescentes, com dificuldade. A família é afetada pela crise econômica, mas
também pelo período da cheia dos rios da região.
Josenias
trabalha com pesca, mas a cheia prejudica muito a oferta de peixes.
"O
que ele pega não dá para nada, nem para a família toda comer", diz Eriane.
"Quando
não tem nada para comer e as crianças reclamam de fome, dou chá e farinha para
encher a barriga."
"Às
vezes, a gente dorme com fome, eu e ele [marido], porque eu não gosto de ver
meus filhos passarem fome. A gente deixa de comer pra dar para eles."
A
família precisa contar com a solidariedade dos vizinhos, dos parentes e até da
igreja que frequenta para sobreviver. "Meu benefício do Bolsa Família está
bloqueado e ainda estou tentando resolver", diz Eriane.
Assim
como Maria Luiza, eles também recebem auxílio da ONG Visão Mundial, mas na
forma de cestas básicas. A organização comanda um projeto de combate à fome,
com foco em crianças e adolescentes, em todos os estados e no Distrito Federal.
"A
fome está impactando profundamente a vida de muitas pessoas na região Norte do
país. Observamos essa realidade nas pesquisas mais recentes sobre insegurança
alimentar, mas também diariamente nos atendimentos feitos pela ONG", diz
Daiane Lacerda, gerente de projeto da ONG Visão Mundial.
"No
Amazonas em especial, além da pandemia e da crise econômica, as famílias têm
sentido muito o impacto da época de cheias. Além da dificuldade na pesca, a
alta dos rios também prejudica a agricultura familiar", completa Lacerda.
A
professora Márcia Machado atribui o crescimento dos índices de insegurança
alimentar em todo o país, mas especialmente nas regiões Norte e Nordeste, não
apenas à pandemia e crise econômica, mas a uma "desorganização nas
políticas de acompanhamento nacionais".
"Houve uma certa desorganização nas políticas de acompanhamento e atenção primária. Não houve um modelo nacional ou um protocolo único de medidas que poderia ter mitigado os impactos da pandemia na situação econômica e alimentação da população em todo o país", diz.
(BBC)
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