domingo, 13 de agosto de 2023

É possível recriar o ‘sopro de Deus’ e dar origem à vida?

Cerca de 4,5 bilhões de anos atrás, o então recém-formado planeta Terra ainda não abrigava animais, plantas e bactérias.

Mas, em algumas centenas de milhões de anos, as primeiras formas de vida primitivas surgiram no planeta. Como isso aconteceu?

Este é um dos maiores mistérios da ciência, mas talvez estejamos mais perto do que nunca de descobrir o que fez surgir a vida na Terra. E os pesquisadores estão fazendo grandes avanços para recriar este processo em laboratório.

Quando o planeta se formou, as condições na Terra eram completamente inóspitas para o desenvolvimento da vida. Violentas erupções vulcânicas lançavam sulfeto de hidrogênio para a atmosfera. Havia pouco oxigênio e o planeta enfrentava frequentes bombardeios de asteroides.

Ainda assim, sabemos que a Terra se tornou um local muito mais acolhedor em relativamente pouco tempo, em termos geológicos – “apenas” 200 milhões de anos depois.

Os registros fósseis comprovam que o nosso mundo estava repleto de organismos unicelulares simples cerca de 3,7 bilhões de anos atrás. Mas como essas primeiras formas de vida conseguiram sobreviver?

Existe um consenso de que, para que exista vida, é preciso ter compostos orgânicos que contenham carbono, como metano, aliados à água e a uma fonte de energia. Esta faísca daria início às reações químicas necessárias para criar moléculas mais complexas, como aminoácidos – os blocos de construção de proteínas – e RNA – um ácido nucleico presente em todas as células vivas com estruturas similares ao DNA.

Mas o que forneceu essa faísca – o chamado “sopro de Deus”? E será que podemos recriar essas condições?

Uma hipótese é que a intensa radiação ultravioleta e os relâmpagos existentes no jovem planeta Terra podem ter fornecido a energia necessária para formar os aminoácidos e, posteriormente, moléculas como DNA e RNA nos oceanos.

Esta teoria recebeu apoio em 1952, quando o então estudante de doutorado Stanley Miller (1930-2007), da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, associou-se ao Prêmio Nobel de Química Harold Urey (1893-1981), para tentar recriar as condições atmosféricas da Terra nos seus primórdios.

Eles injetaram amônia, metano e vapor d’água em um recipiente de vidro fechado e introduziram uma faísca elétrica através do beaker para simular um relâmpago. Surpreendentemente, formaram-se aminoácidos espontaneamente.

Mas pesquisas posteriores demonstraram que as condições atmosféricas do modelo de Miller e Urey provavelmente não existiam na Terra naquela época. Outro problema é que a maior parte do planeta ficou coberta de gelo por quatro bilhões de anos e raramente existem relâmpagos nessas condições.

Mas Jeffrey Bada, ex-aluno de Miller e professor de química marinha do Instituto Scripps de Oceanografia em San Diego, nos Estados Unidos, acredita que os relâmpagos possam ter se formado nas nuvens de cinza vulcânica. E existem boas razões para acreditar que essas condições produzem intensas tempestades com raios.

Em 2022, o vulcão subaquático Hunga Tonga-Hunga Ha’apai, no sul do Oceano Pacífico, entrou em erupção e liberou uma série de gases, cinzas e vapor de água do mar a 52,8 km de altura na atmosfera. O resultado foi a surpreendente ocorrência de 25.508 relâmpagos em apenas cinco minutos.

“Havia um grande número de pequenas ilhas vulcânicas nos primórdios da Terra”, afirma Bada. “Suspeito que esses vulcões entrassem em erupção com bastante violência e havia muitos deles.”

A incidência de raios sobre certos gases em reservatórios de água pode ter criado 
as condições adequadas para criar aminoácidos, que são os blocos de construção das proteínas

Os vulcões teriam lançado gases como hidrogênio e monóxido de carbono para a atmosfera. E, segundo Bada, os intensos relâmpagos que acompanhavam as erupções podem ter fornecido a faísca necessária para converter esses gases em aminoácidos.

Em um estudo recente, Bada trabalhou com colegas da Universidade de Munique, na Alemanha, para simular relâmpagos de origem vulcânica em um aparelho contendo monóxido de carbono e gás hidrogênio.

“Processei os resultados no meu laboratório e tenho bastante certeza de que encontramos aminoácidos”, afirma o cientista.

Os aminoácidos teriam se formado inicialmente na atmosfera, antes de caírem sobre os flancos dos vulcões. Lá, eles podem ter sido levados pela água para pequenos lagos e lagoas, onde a vida teria melhores condições de se propagar.

Estas conclusões vêm de encontro aos argumentos já existentes de que a vida não poderia ter começado em mar aberto, pois as substâncias químicas baseadas em carbono seriam imediatamente espalhadas, sem se aproximarem o suficiente para reagir com outras moléculas.

Já nas piscinas rasas, o calor do Sol evaporaria a água, concentrando substâncias como cianeto de hidrogênio, o que permitiria que elas se reunissem com mais frequência.

Os pesquisadores recriaram este processo em laboratório, gerando com sucesso os três principais blocos moleculares de construção da vida – o DNA, as proteínas e os lipídios – a partir de cianeto de hidrogênio. Mas alguns cientistas ainda estão céticos sobre esta teoria.

“Para mim, o problema com [a vida] começando em piscinas é que não há nelas uma força direcionadora óbvia”, segundo o professor de bioquímica evolutiva Nick Lane, do University College de Londres (UCL). “A teoria é que a radiação UV poderia ter energizado moléculas de cianeto, causando sua reação, mas a quantidade de cianeto que havia na Terra jovem é algo questionável.”

“Acredita-se que as primeiras formas de vida tenham crescido a partir de hidrogênio e dióxido de carbono, não de cianeto”, explica o professor, “e os processos químicos são totalmente diferentes, de forma que você não está partindo do mesmo ponto que deu origem à vida.”

Respiradouros hidrotérmicos

Lane acredita que respiradouros hidrotérmicos no fundo do oceano sejam uma fonte mais provável do início da vida.

Essas estruturas em forma de labirinto são como um paraíso longe do mar aberto. Aqui, fluidos quentes ricos em minerais borbulham através de pequenas aberturas na crosta da Terra.

“Os respiradouros hidrotérmicos fornecem hidrogênio em grandes quantidades e acreditamos que os primeiros oceanos fossem ricos em CO2”, explica Lane. “Por isso, os respiradouros podem ter sido a zona de mistura ideal para que essas substâncias se reunissem.”

Quando o hidrogênio reage com CO2, ele forma ácidos carboxílicos. A partir deles, é possível criar cadeias de ácidos graxos – um componente importante das membranas celulares – e aminoácidos.

Os poros no centro dos respiradouros hidrotérmicos podem ter desempenhado papel fundamental na catálise da reação entre hidrogênio e CO2.

Lane explica que sua estrutura é quase igual à das células, com uma membrana que contém minerais de enxofre e ferro. E o lado externo dos poros também tem carga positiva em relação ao lado interno, que é conhecido como gradiente de prótons.

Este processo é o mesmo que ocorre nas células biológicas.

“Esta estrutura similar às células rompe eficientemente a barreira entre a reação de hidrogênio e CO2”, segundo Lane. “Os dois são gases bastante estáveis – normalmente, eles não reagem com muita facilidade – mas a combinação de minerais de enxofre e ferro e gradientes de prótons causa a sua reação.”

Na última década, pesquisadores começaram a demonstrar experimentalmente que substâncias pré-bióticas podem ser formadas sob condições hidrotérmicas.

Em 2019, Lane e sua equipe do UCL chegaram a criar com sucesso “protocélulas” simples em um ambiente similar ao dos respiradouros hidrotérmicos.

Lane tomou um grupo de ácidos graxos e álcoois graxos – que pesquisas anteriores demonstraram que podem ter se formado sob condições hidrotérmicas – e tentou fazer com que elas formassem espontaneamente uma membrana celular rudimentar. E, surpreendentemente, ele conseguiu.

“Conseguimos uma membrana com duas camadas e material aquoso no seu interior”, ele conta. “Concluímos que realmente era mais fácil fazer isso em condições similares aos respiradouros hidrotérmicos. Você precisa de alcalinidade, altas temperaturas e água salgada.”

Choques de meteoros

Outra teoria afirma que a queda de meteoritos poderia ter fornecido a faísca que gerou a formação dos primeiros compostos orgânicos.

Os meteoritos contêm altos níveis de metais como ferro, níquel, cobalto e urânio, frequentemente utilizados como catalisadores na Terra. E, quando um meteorito entra na atmosfera, ele se aquece e esses metais são oxidados.

“Nos primórdios da Terra, tínhamos uma atmosfera composta principalmente de CO2 e nitrogênio”, explica o professor de química orgânica Oliver Trapp, da Universidade Ludwig Maximilian, de Munique. “Por isso, imaginei que o CO2 pudesse ter sido ativado sob essas condições.”

Respiradouros vulcânicos submarinos podem ter sido um ambiente
 propício para o desenvolvimento da vida, segundo pesquisas

Em um estudo de 2023, a estudante de PhD Sophia Peters, aluna de Trapp, tomou partículas de ferro retiradas de meteoritos e cinza vulcânica e as misturou com vários minerais que se acreditavam estar presentes nos primórdios do planeta Terra. Estes minerais servem de estrutura de suporte receptiva, à qual se aderem as partículas de ferro.

Como a atmosfera da Terra, naquela época, não continha oxigênio, Peters retirou quase todo o oxigênio da mistura. Ela então colocou a mistura em uma câmara sob pressão preenchida principalmente com moléculas de dióxido de carbono (CO2) e hidrogênio, para reproduzir as altas pressões atmosféricas da superfície da Terra.

O experimento funcionou. Foram formados compostos orgânicos, incluindo álcoois, acetaldeído e formaldeído.

Acetaldeído e formaldeído são os blocos de construção de diversas das moléculas mais importantes da vida, incluindo ácidos graxos, nucleobases, açúcares e aminoácidos.

Além disso, os pesquisadores demonstraram que, quando você mistura aldeídos com outras substâncias que se acredita que estivessem presentes na atmosfera inicial da Terra, como cianeto, amônia e gás sulfeto de hidrogênio, acontece algo muito interessante.

“Nós conseguimos produzir moléculas orgânicas que são capazes de modificar diretamente sua própria estrutura e catalisar a produção de outras moléculas similares”, afirma Trapp.

Estas moléculas, conhecidas como organocatalisadores, passam por um processo de evolução por meio de seleção natural, em que as moléculas mais “bem sucedidas” se reproduzem. E, segundo Trapp, elas podem ter desempenhado um papel importante no surgimento da vida na Terra.

“O que descobrimos é uma camada oculta entre as primeiras moléculas orgânicas pequenas e compostos autorreprodutores posteriores, como o RNA”, explica o professor.

E quanto ao RNA? Esta molécula é encontrada em todas as células e desempenha um papel fundamental para transformar as instruções contidas no DNA do genoma em proteínas funcionais nas células dos seres vivos.

Mas muitos cientistas acreditam que, nos primórdios do planeta Terra, as moléculas de RNA capazes de reproduzir-se realizavam grande parte do trabalho feito hoje pelas células modernas, como a catálise da formação de proteínas.

Essas moléculas de RNA poderiam ter eventualmente formado o ribossomo – uma fábrica presente em todas as células do corpo, que usa as informações presentes no DNA para construir proteínas. O ribossomo é construído principalmente com RNA.

Em um experimento inovador em 2022, cientistas liderados por Ada Yonath, do Instituto Weizmann de Ciência, em Israel, conseguiram criar em laboratório uma primeira versão primitiva do ribossomo, demonstrando como ele pode ter surgido na Terra primitiva.

Yonath ganhou o Prêmio Nobel de Química em 2009 pelo seu trabalho na determinação da estrutura do ribossomo.

Esta estrutura revela que existe uma bolsa no centro da molécula gigante. Esta bolsa é encontrada nos ribossomos de todos os organismos, desde as bactérias até os seres humanos. E é no seu interior que os aminoácidos se conectam para formar as proteínas.

“A bolsa permite que os aminoácidos sejam posicionados exatamente no lugar certo, possibilitando a ligação de peptídeos”, explica Yonath.

Segundo ela, “este tipo de ligação pode ser realizado espontaneamente por dois aminoácidos, mas a frequência e a eficiência seriam 10 mil, 100 mil ou até um milhão de vezes menores se não existisse a bolsa.”

No seu estudo, Yonath copiou o projeto dos ribossomos bacterianos, incluindo as bolsas onde ocorre a síntese das proteínas. Ela então preparou esses protorribossomos em uma placa de laboratório.

Para verificar se os ribossomos primitivos eram capazes de produzir proteínas, os pesquisadores acrescentaram uma solução contendo aminoácidos, sais e outros ingredientes. E, para alegria da equipe, os ribossomos sintéticos conseguiram unir os aminoácidos entre si.

“Acreditamos que o que fizemos no laboratório é análogo ou pelo menos imita o que aconteceu na natureza”, afirma Yonath. “Inicialmente, existiriam poucos RNAs que se enrolaram entre si, formando uma pequena bolsa. A partir desses pedaços, pode ter surgido um ribossomo funcional rudimentar.”

Assim, os protorribossomos mais bem sucedidos na catálise das ligações entre os aminoácidos teriam permanecido por mais tempo e, em um dado momento, o ribossomo teria nascido por meio de um processo de seleção natural.

Será que o conhecimento deste processo nos deixa mais perto de entender a origem da vida?

Temos agora diversas explicações possíveis sobre como podem ter se formado os primeiros compostos orgânicos. A energia pode ter sido fornecida pelos raios, por meteoritos ou por respiradouros hidrotérmicos.

Mas recriar com sucesso os primeiros compostos da vida em laboratório pode nos ajudar a mostrar como o mesmo processo talvez tenha ocorrido em outras partes do Universo.

(BBC)

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