À época, há cerca de 14 anos, ele precisou falar
com uma mulher que passava por um dos momentos mais trágicos da vida.
Dias antes, a casa onde ela morava com a família em São Paulo foi invadida por ladrões — que, após uma reação inesperada, acabaram atirando no peito do pai e na cabeça do irmão dela.
O pai não resistiu aos ferimentos e morreu pouco
depois. O irmão foi levado a um hospital e ficou internado, mas, após dois
dias, foi declarada a morte encefálica dele — o que o qualificava como um
possível doador de órgãos.
Como funcionário do serviço de transplante de
órgãos, Carneiro então ligou para a irmã da vítima.
Ela pediu que ele fosse até o cemitério onde ela
estava velando a mãe — que, diante da série de desventuras, sofreu um ataque
cardíaco e também faleceu.
"Eu me lembro como se fosse hoje daquela cena,
das crianças correndo do lado de fora e do cheiro das flores no caixão. A
mulher pegou duas cadeiras para sentarmos e conversarmos, então pude explicar
toda a situação", relata ele.
"E ela me disse: 'Eu enterrei meu pai ontem,
estou velando minha mãe hoje e você veio me dizer que meu irmão morreu agora.
Mas ele é a única vítima dessa tragédia toda que ainda pode ajudar alguém,
então eu autorizo a doação dos órgãos dele'."
Aos 41 anos, o enfermeiro segue trabalhando no
sistema de captação de órgãos para transplantes.
Nesse meio tempo, ele passou pelo Hospital das
Clínicas de São Paulo, pelo Hospital Israelita Albert Einstein, pelo Hospital
Geral de Guarulhos e hoje trabalha no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência
(Samu) num hospital público no Grajaú, bairro localizado na Zona Sul da capital
paulista.
Especializado em tanatologia — o estudo científico
da morte —, Carneiro realiza diariamente um trabalho difícil e delicado:
conversar com familiares que acabaram de perder um ente querido, para saber se
eles autorizam a doação de órgãos que poderão ser utilizados em transplantes.
"Em muitos casos, a morte ocorreu de forma
abrupta e inesperada, como por Acidente Vascular Cerebral (AVC), num acidente
de trânsito, numa queda de laje, por um tiro…", lista Carneiro.
Em entrevista à BBC News Brasil, o enfermeiro conta
como decidiu seguir essa carreira — e quais são as etapas e os critérios para a
doação de órgãos no Brasil.
A única certeza da vida
Carneiro entende que os próprios profissionais de
saúde têm uma expectativa errada sobre o trabalho que fazem.
"Geralmente, vemos os hospitais como locais de
cura, em que as pessoas são cuidadas e se recuperam. Mas a realidade é que, num
contexto em que a morte foi institucionalizada, os hospitais viraram o local
onde o indivíduo morre", diz.
"Dificilmente, hoje em dia, alguém falece em
casa, cercado dos familiares e das pessoas que ama. A morte acontece na mão dos
profissionais de saúde, que não aceitam e nem sempre entendem que estão diante
de um momento tão sublime."
Ao perceber isso, o enfermeiro viu que a doação de
órgãos era algo único, que faz uma tremenda diferença na vida das pessoas que
aguardam na fila do transplante.
Ele decidiu se especializar no serviço de
identificação das pessoas que acabaram de morrer e que têm potencial de doar
órgãos.
Como parte desse trabalho, Carneiro precisa
conversar com os familiares próximos do falecido, que são os responsáveis
legais por autorizar a retirada dos tecidos que podem acabar transplantados em
outros indivíduos.
"No início de minha carreira, ouvia vários
apelidos como 'anjo da morte' ou 'urubu'."
"Isso me impactava, então bolei uma frase
muito forte para mim, que representa aquilo que faço: 'eu vejo vida onde a
morte prevalece'", conta.
Para ficar mais preparado ao lidar com um assunto
tão delicado, Carneiro resolveu se especializar em tanatologia — a palavra faz
referência a Tânato, a personificação da morte na mitologia grega.
"Entender o assunto é um processo de
autoconhecimento, de humanizar a morte e, claro, vai muito de encontro àquilo
que você acredita, à sua espiritualidade", pontua.
"É por isso que, em conversas e palestras,
sempre gosto de perguntar: o que você faria se tivesse mais seis meses de vida?
Quais seriam as suas prioridades? Geralmente, a resposta é a família e o legado
que serão deixados."
Uma conversa sensível
Mas como é falar sobre doação de órgãos com
indivíduos que passam por um momento tão doloroso quanto a perda de alguém
querido?
Carneiro diz que, por mais que existam protocolos e
orientações formais, a principal recomendação é ter uma abordagem humana e
respeitosa.
"O primeiro impacto após a notícia da morte
costuma ser o choque, a raiva e a revolta. A pessoa reclama com Deus, com o
hospital, com o universo, e tenta encontrar respostas para explicar por que
perdeu a pessoa naquela hora."
"Depois vem a fase da barganha ou do
desespero, de querer ver o corpo ou não acreditar que aquilo de fato
aconteceu."
Na avaliação de Carneiro, esse não é o momento
ideal para conversar com os familiares sobre a doação de órgãos.
"Nessa hora, a melhor coisa que podemos
oferecer enquanto profissionais é o silêncio", diz ele, que também destaca
a importância de uma postura acolhedora e de tentar entender quem era aquela
pessoa e a história que ela construiu em vida.
"Quando os familiares entram num momento um
pouco mais calmo, de aceitação, temos uma abertura maior para falar."
"Eu sempre tento entender quem era aquele
indivíduo em vida, para descobrir se ele se via como um doador de órgãos ou
não."
Outra missão neste momento é o de deixar bem claro
que a pessoa está morta mesmo e não há mais nada a ser feito — o óbito é sempre
declarado por dois médicos, que não estão ligados à equipe de transplantes, e
com o auxílio de três protocolos diferentes (duas avaliações clínicas e um
exame de imagem para atestar que o cérebro deixou de funcionar).
"Precisamos nos assegurar que os familiares
entenderam de fato que aquele indivíduo morreu."
"Isso é particularmente importante num país
religioso como o nosso. Se restar qualquer dúvida, sempre fica a esperança de
que o ente querido vai voltar", complementa ele.
O enfermeiro reforça que o trabalho dele e dos
outros profissionais da área não envolve convencer os parentes para que eles
autorizem a retirada dos tecidos.
"Nosso papel é esclarecer como funciona o
processo de doação e tirar todas as dúvidas que possam surgir."
Segundo Carneiro, muitos têm medo que a retirada
dos órgãos para doação deixe o morto desfigurado — o que não é verdade.
Após o processo, o corpo é liberado para os ritos
fúnebres totalmente preservado — e, até quando há retirada das córneas, o
espaço dos globos oculares preserva a mesma proporção, com as pálpebras
devidamente fechadas.
Em tempos de crise sanitária
O especialista destaca que, durante a pandemia de
covid-19, o trabalho ficou ainda mais difícil.
"Eu trabalhei numa tenda montada para absorver
a demanda de pacientes que chegavam infectados. E lá víamos quatro, cinco, seis
mortes todas as noites", lembra.
"E pior que não podíamos fazer nada em termos
de doação, mesmo que a família autorizasse, pois não tínhamos estudos para
garantir que aqueles órgãos eram seguros para transplante."
Com a experiência em tanatologia, Carneiro era
frequentemente escalado para conversar e acolher as famílias que recebiam a
notícia do falecimento.
"Tudo foi psicologicamente muito pesado para
os profissionais de saúde. Alguns não queriam mais trabalhar em unidades de
covid, porque era morte o tempo todo", relata.
"E muitos passaram a perceber que o risco de
morte não afetava apenas os pacientes, mas também eles próprios, que estavam em
contato o tempo todo com o vírus."
O especialista acredita que o fato de ter estudado
o assunto previamente o ajudou a lidar com uma situação tão complicada.
"Tenho a minha fé e, quando um indivíduo
morria, eu tinha ali o privilégio de fechar os olhos dele e dizer: 'Deus,
receba essa pessoa'. E aqui não estou falando do corpo, que é apenas um vaso
que vai ser queimado ou comido pela terra."
Faustão e comoção nacional
O enfermeiro acredita que histórias como a do
apresentador Fausto Silva — que divulgou recentemente um diagnóstico de
insuficiência cardíaca e a necessidade de passar por um transplante de coração
— ajudam a debater e explicar o assunto.
"Mas nossa sociedade está tão massacrada por
casos de corrupção que muitos acreditam que o processo de doação de órgãos
também é corrompido. Há quem ache que ricos e famosos conseguem furar a fila do
transplante", relata.
"Mas não é assim que funciona. Eu acredito na
fila e nos critérios de priorização para transplantes que temos no Brasil.
Deposito a minha confiança nisso e não vejo sinais de favoritismo",
confirma.
Carneiro lembra que, pela lei brasileira, a
autorização para doar órgãos de alguém que teve morte encefálica constatada
compete exclusivamente à família.
Por isso, é importante que todo mundo converse
sobre o tema — e deixe bem claro aos parentes próximos se aceita (ou não) que
algumas estruturas do corpo sejam retiradas após a morte e usadas em
transplantes.
"Eu preciso da assinatura de familiares de
primeiro e segundo grau para realizar a retirada dos órgãos. Eu não consigo
efetivar a doação se não tiver isso, mesmo que a pessoa tenha feito um vídeo
ainda em vida dizendo que gostaria de ser doadora", pontua.
Logo após a liberação dos parentes, os
profissionais de saúde começam uma verdadeira corrida contra o relógio.
Após uma série de exames, que incluem o histórico
de saúde daquele indivíduo e algumas análises laboratoriais, as equipes
cirúrgicas que realizarão os transplantes são acionadas.
"Cada órgão tem um tempo de isquemia, ou um
período em que permanece viável após a morte. No caso do coração, por exemplo,
são apenas 4 horas a partir do momento em que ele é retirado do corpo do
doador", diz Carneiro.
Vale lembrar que todo esse processo é anônimo — e
nem a família do doador ou o receptor sabem de onde (ou de quem) veio o órgão
transplantado.
Nessa década e meia como captador de tecidos
humanos para o sistema nacional de transplantes, o enfermeiro aprendeu que não
é preciso encarar a morte como uma inimiga.
"Devemos entender que a morte faz parte de um
processo, e essa aceitação torna esse momento inevitável mais tranquilo para
todos."
"Nesse contexto, a doação de órgãos significa
fazer o bem ao outro. E esse é o maior ato de altruísmo que alguém pode
ter", conclui Carneiro.
(BBC)
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