sexta-feira, 25 de agosto de 2023

'Eu vejo vida onde a morte prevalece': as histórias do enfermeiro que busca órgãos para doação

O enfermeiro André Ramos Carneiro estava no primeiro ano de carreira quando teve contato com o caso que marcaria a sua vida profissional.

À época, há cerca de 14 anos, ele precisou falar com uma mulher que passava por um dos momentos mais trágicos da vida.

Dias antes, a casa onde ela morava com a família em São Paulo foi invadida por ladrões — que, após uma reação inesperada, acabaram atirando no peito do pai e na cabeça do irmão dela.

O pai não resistiu aos ferimentos e morreu pouco depois. O irmão foi levado a um hospital e ficou internado, mas, após dois dias, foi declarada a morte encefálica dele — o que o qualificava como um possível doador de órgãos.

Como funcionário do serviço de transplante de órgãos, Carneiro então ligou para a irmã da vítima.

Ela pediu que ele fosse até o cemitério onde ela estava velando a mãe — que, diante da série de desventuras, sofreu um ataque cardíaco e também faleceu.

"Eu me lembro como se fosse hoje daquela cena, das crianças correndo do lado de fora e do cheiro das flores no caixão. A mulher pegou duas cadeiras para sentarmos e conversarmos, então pude explicar toda a situação", relata ele.

"E ela me disse: 'Eu enterrei meu pai ontem, estou velando minha mãe hoje e você veio me dizer que meu irmão morreu agora. Mas ele é a única vítima dessa tragédia toda que ainda pode ajudar alguém, então eu autorizo a doação dos órgãos dele'."

Aos 41 anos, o enfermeiro segue trabalhando no sistema de captação de órgãos para transplantes.

Nesse meio tempo, ele passou pelo Hospital das Clínicas de São Paulo, pelo Hospital Israelita Albert Einstein, pelo Hospital Geral de Guarulhos e hoje trabalha no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) num hospital público no Grajaú, bairro localizado na Zona Sul da capital paulista.

Especializado em tanatologia — o estudo científico da morte —, Carneiro realiza diariamente um trabalho difícil e delicado: conversar com familiares que acabaram de perder um ente querido, para saber se eles autorizam a doação de órgãos que poderão ser utilizados em transplantes.

"Em muitos casos, a morte ocorreu de forma abrupta e inesperada, como por Acidente Vascular Cerebral (AVC), num acidente de trânsito, numa queda de laje, por um tiro…", lista Carneiro.

Em entrevista à BBC News Brasil, o enfermeiro conta como decidiu seguir essa carreira — e quais são as etapas e os critérios para a doação de órgãos no Brasil.

Carneiro (foto) trabalha na captação de órgãos para transplantes há 14 anos

A única certeza da vida

Carneiro entende que os próprios profissionais de saúde têm uma expectativa errada sobre o trabalho que fazem.

"Geralmente, vemos os hospitais como locais de cura, em que as pessoas são cuidadas e se recuperam. Mas a realidade é que, num contexto em que a morte foi institucionalizada, os hospitais viraram o local onde o indivíduo morre", diz.

"Dificilmente, hoje em dia, alguém falece em casa, cercado dos familiares e das pessoas que ama. A morte acontece na mão dos profissionais de saúde, que não aceitam e nem sempre entendem que estão diante de um momento tão sublime."

Ao perceber isso, o enfermeiro viu que a doação de órgãos era algo único, que faz uma tremenda diferença na vida das pessoas que aguardam na fila do transplante.

Ele decidiu se especializar no serviço de identificação das pessoas que acabaram de morrer e que têm potencial de doar órgãos.

Como parte desse trabalho, Carneiro precisa conversar com os familiares próximos do falecido, que são os responsáveis legais por autorizar a retirada dos tecidos que podem acabar transplantados em outros indivíduos.

"No início de minha carreira, ouvia vários apelidos como 'anjo da morte' ou 'urubu'."

"Isso me impactava, então bolei uma frase muito forte para mim, que representa aquilo que faço: 'eu vejo vida onde a morte prevalece'", conta.

Para ficar mais preparado ao lidar com um assunto tão delicado, Carneiro resolveu se especializar em tanatologia — a palavra faz referência a Tânato, a personificação da morte na mitologia grega.

"Entender o assunto é um processo de autoconhecimento, de humanizar a morte e, claro, vai muito de encontro àquilo que você acredita, à sua espiritualidade", pontua.

"É por isso que, em conversas e palestras, sempre gosto de perguntar: o que você faria se tivesse mais seis meses de vida? Quais seriam as suas prioridades? Geralmente, a resposta é a família e o legado que serão deixados."

Uma conversa sensível

Mas como é falar sobre doação de órgãos com indivíduos que passam por um momento tão doloroso quanto a perda de alguém querido?

Carneiro diz que, por mais que existam protocolos e orientações formais, a principal recomendação é ter uma abordagem humana e respeitosa.

"O primeiro impacto após a notícia da morte costuma ser o choque, a raiva e a revolta. A pessoa reclama com Deus, com o hospital, com o universo, e tenta encontrar respostas para explicar por que perdeu a pessoa naquela hora."

"Depois vem a fase da barganha ou do desespero, de querer ver o corpo ou não acreditar que aquilo de fato aconteceu."

Na avaliação de Carneiro, esse não é o momento ideal para conversar com os familiares sobre a doação de órgãos.

"Nessa hora, a melhor coisa que podemos oferecer enquanto profissionais é o silêncio", diz ele, que também destaca a importância de uma postura acolhedora e de tentar entender quem era aquela pessoa e a história que ela construiu em vida.

"Quando os familiares entram num momento um pouco mais calmo, de aceitação, temos uma abertura maior para falar."

"Eu sempre tento entender quem era aquele indivíduo em vida, para descobrir se ele se via como um doador de órgãos ou não."

Outra missão neste momento é o de deixar bem claro que a pessoa está morta mesmo e não há mais nada a ser feito — o óbito é sempre declarado por dois médicos, que não estão ligados à equipe de transplantes, e com o auxílio de três protocolos diferentes (duas avaliações clínicas e um exame de imagem para atestar que o cérebro deixou de funcionar).

"Precisamos nos assegurar que os familiares entenderam de fato que aquele indivíduo morreu."

"Isso é particularmente importante num país religioso como o nosso. Se restar qualquer dúvida, sempre fica a esperança de que o ente querido vai voltar", complementa ele.

O enfermeiro reforça que o trabalho dele e dos outros profissionais da área não envolve convencer os parentes para que eles autorizem a retirada dos tecidos.

"Nosso papel é esclarecer como funciona o processo de doação e tirar todas as dúvidas que possam surgir."

Segundo Carneiro, muitos têm medo que a retirada dos órgãos para doação deixe o morto desfigurado — o que não é verdade.

Após o processo, o corpo é liberado para os ritos fúnebres totalmente preservado — e, até quando há retirada das córneas, o espaço dos globos oculares preserva a mesma proporção, com as pálpebras devidamente fechadas.

Equipes de transplantes precisam agir rápido para aproveitar os órgãos que serão doados

Em tempos de crise sanitária

O especialista destaca que, durante a pandemia de covid-19, o trabalho ficou ainda mais difícil.

"Eu trabalhei numa tenda montada para absorver a demanda de pacientes que chegavam infectados. E lá víamos quatro, cinco, seis mortes todas as noites", lembra.

"E pior que não podíamos fazer nada em termos de doação, mesmo que a família autorizasse, pois não tínhamos estudos para garantir que aqueles órgãos eram seguros para transplante."

Com a experiência em tanatologia, Carneiro era frequentemente escalado para conversar e acolher as famílias que recebiam a notícia do falecimento.

"Tudo foi psicologicamente muito pesado para os profissionais de saúde. Alguns não queriam mais trabalhar em unidades de covid, porque era morte o tempo todo", relata.

"E muitos passaram a perceber que o risco de morte não afetava apenas os pacientes, mas também eles próprios, que estavam em contato o tempo todo com o vírus."

O especialista acredita que o fato de ter estudado o assunto previamente o ajudou a lidar com uma situação tão complicada.

"Tenho a minha fé e, quando um indivíduo morria, eu tinha ali o privilégio de fechar os olhos dele e dizer: 'Deus, receba essa pessoa'. E aqui não estou falando do corpo, que é apenas um vaso que vai ser queimado ou comido pela terra."

Faustão e comoção nacional

O enfermeiro acredita que histórias como a do apresentador Fausto Silva — que divulgou recentemente um diagnóstico de insuficiência cardíaca e a necessidade de passar por um transplante de coração — ajudam a debater e explicar o assunto.

"Mas nossa sociedade está tão massacrada por casos de corrupção que muitos acreditam que o processo de doação de órgãos também é corrompido. Há quem ache que ricos e famosos conseguem furar a fila do transplante", relata.

"Mas não é assim que funciona. Eu acredito na fila e nos critérios de priorização para transplantes que temos no Brasil. Deposito a minha confiança nisso e não vejo sinais de favoritismo", confirma.

Carneiro lembra que, pela lei brasileira, a autorização para doar órgãos de alguém que teve morte encefálica constatada compete exclusivamente à família.

Por isso, é importante que todo mundo converse sobre o tema — e deixe bem claro aos parentes próximos se aceita (ou não) que algumas estruturas do corpo sejam retiradas após a morte e usadas em transplantes.

"Eu preciso da assinatura de familiares de primeiro e segundo grau para realizar a retirada dos órgãos. Eu não consigo efetivar a doação se não tiver isso, mesmo que a pessoa tenha feito um vídeo ainda em vida dizendo que gostaria de ser doadora", pontua.

Logo após a liberação dos parentes, os profissionais de saúde começam uma verdadeira corrida contra o relógio.

Após uma série de exames, que incluem o histórico de saúde daquele indivíduo e algumas análises laboratoriais, as equipes cirúrgicas que realizarão os transplantes são acionadas.

"Cada órgão tem um tempo de isquemia, ou um período em que permanece viável após a morte. No caso do coração, por exemplo, são apenas 4 horas a partir do momento em que ele é retirado do corpo do doador", diz Carneiro.

Vale lembrar que todo esse processo é anônimo — e nem a família do doador ou o receptor sabem de onde (ou de quem) veio o órgão transplantado.

Nessa década e meia como captador de tecidos humanos para o sistema nacional de transplantes, o enfermeiro aprendeu que não é preciso encarar a morte como uma inimiga.

"Devemos entender que a morte faz parte de um processo, e essa aceitação torna esse momento inevitável mais tranquilo para todos."

"Nesse contexto, a doação de órgãos significa fazer o bem ao outro. E esse é o maior ato de altruísmo que alguém pode ter", conclui Carneiro.

(BBC)

Nenhum comentário:

Postar um comentário