Num editorial sobre o tema, os responsáveis pela publicação destacaram como esse incômodo ganhou protagonismo nos últimos anos — e se mostra cada vez mais como um fator negativo para a saúde do corpo e da mente.
“Conexões
sociais empobrecidas são associadas a um risco aumentado de doenças
cardiovasculares, hipertensão, diabetes, infecções, declínio cognitivo,
depressão e ansiedade”, listam os autores.
A
ideia do comitê, que deve começar a se debruçar sobre o tema em breve, está
justamente em definir o que é a solidão, como ela pode ser identificada e quais
são as principais formas de combatê-la, segundo as melhores evidências
científicas disponíveis.
Mas
essa é apenas uma entre diversas iniciativas relacionadas ao assunto que foram
anunciadas nos últimos anos. Os governos de Reino Unido e Japão, por exemplo,
criaram “Ministérios da Solidão” em 2018 e 2021, respectivamente.
Já
o médico Vivek Murthy, o atual US Surgeon General — uma das principais
autoridades de saúde dos Estados Unidos —, declarou em maio deste ano que se
sentir só equivale a fumar 15 cigarros ao dia em termos de prejuízos à saúde.
Mas
por que a solidão ganhou tantos holofotes recentemente?
Uma
das principais dificuldades quando pensamos no impacto da solidão está em
definir exatamente o que é esse incômodo.
“O
sentimento de solidão é uma experiência individual. Não basta estar isolado,
afinal muitas pessoas que estão sozinhas não se sentem necessariamente
solitárias. E, na contramão, tem gente que está no meio de outros indivíduos,
mas isso não é garantia que elas se sintam conectadas”, reflete o psiquiatra
Lucas Spanemberg, pesquisador do Instituto do Cérebro da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
“A
solidão é uma sensação de desconexão, de não pertencimento a um grupo social,
que traz implicações emocionais e comportamentais — e isso está relacionado a
uma série de desfechos negativos do ponto de vista da saúde mental e física”,
complementa ele.
Essa
relação entre solidão e prejuízos ao corpo e à mente está bem documentada numa
série de pesquisas.
Uma
delas, feita em 2010 na Universidade
Brigham Young, dos Estados Unidos, revelou que indivíduos com
relações sociais fortes têm 50% mais chance de sobreviver por mais tempo em
comparação àqueles que interagem menos com o meio onde vivem.
E
a necessidade de manter essa conexão está praticamente inscrita na origem de
nossa espécie, como explica Spanemberg.
“Os
seres humanos foram programados geneticamente para viver em sociedade e
integrar grupos. Durante os primeiros anos de vida, somos muito frágeis e
indefesos, portanto precisamos de um núcleo coeso capaz de proteger a prole”,
diz o médico, que também atua no Hospital São Lucas, em Porto Alegre.
“E
essa coesão social forma famílias, grupos, sociedades, países…”, lista ele.
O
especialista também chama a atenção para um acompanhamento de centenas de
indivíduos realizado pela Universidade
Harvard, nos EUA, há 80 anos.
“Os
autores desse levantamento observaram que o fator mais importante para
sentir-se feliz no final da vida não era sucesso financeiro, emprego dos
sonhos, fama ou dinheiro, mas, sim, coesão social”, diz Spanemberg.
“A
grande variável associada à sensação de felicidade foi justamente ter relações
importantes e significativas ao longo da vida”, completa ele.
'Solidão
é lava, que cobre tudo'
A
enfermeira Juliana Teixeira Antunes, do Instituto Federal do Norte de Minas
Gerais, em Januária, destaca que durante muito tempo a solidão esteve
relacionada aos mais velhos, como se fosse um fenômeno que ocorresse apenas
nessa faixa etária.
De
fato, os idosos podem se sentir desconectados com maior frequência e geralmente
apresentam mais dificuldade para se adaptar e acompanhar as novidades.
A
morte de familiares e amigos da mesma geração deixa mais sozinho quem fica,
explicam os profissionais de saúde ouvidos pela BBC News Brasil.
“Mas
hoje nós identificamos a solidão em qualquer fase da vida”, observa ela.
Durante
o trabalho de mestrado, Antunes decidiu estudar como esse incômodo afeta os
adolescentes brasileiros.
“Esse
é um momento de vida caracterizado pelo convívio social, pela criação de
vínculos e de relações”, caracteriza a pesquisadora. “Mas, infelizmente, hoje
em dia a solidão afeta um número considerável de jovens.”
No
levantamento, que usou inquéritos epidemiológicos nacionais de 2015, 15,5% dos
adolescentes entrevistados relataram que se sentiam solitários “na maioria das
vezes” ou “sempre”.
“Um
dos fatores que parece contribuir para esse cenário é a violência familiar, as
agressões e o autoritarismo dos pais”, lista Antunes.
“Por
outro lado, a prevalência de solidão era baixa entre os jovens que relataram
hábitos mais constantes, como fazer refeições em família com frequência, ou ter
o apoio de pais que se preocupam e conversam com eles”, detalha ela.
'A
solidão é fera, a solidão devora'
Mas
por que a solidão virou um assunto urgente de saúde pública nos últimos anos?
Para
a psicóloga clínica Dorli Kamkhagi, do Laboratório de Neurociências do
Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (IPq-USP), há vários
fatores que contribuem para este cenário.
“Acabamos
de sair de uma pandemia de covid-19, em que havia a necessidade de isolamento
social, por exemplo”, contextualiza. “Mas agora não estamos mais na crise
sanitária e, mesmo assim, algumas pessoas não querem mais frequentar lugares ou
fazer encontros presenciais.”
“Mas
é totalmente diferente sentir o toque, ver as coisas, andar no parque…”,
reflete ela.
Em
outras palavras, a necessidade de ficar em casa para evitar o coronavírus fez
com que muitos encontrassem nesse ambiente uma zona de conforto, da qual não
querem sair agora.
Antunes
destaca que, aos poucos, a solidão gera outros sentimentos negativos.
“Com
o passar do tempo, surge o medo, a angústia, o sofrimento…”, diz.
O
editorial do The Lancet aponta que a solidão é “um produto de como as
sociedades e o mundo ao redor de nós estão organizados”.
Alguns
autores chegam a citar que muitas cidades são construídas com base em
“ambientes solitarizantes”.
“Nosso
ambiente físico, ditado pelo planejamento urbano, pode impedir a conexão social
se não permitir interações e engajamento”, diz o texto.
Os
autores ainda destacam outros ingredientes que contribuem para esse contexto.
“O
uso de redes sociais, com as promessas de aproximar as pessoas, tem sido
associado a um aumento da sensação de desconexão social”, lembram eles.
“Austeridade,
pobreza, racismo e xenofobia também causam desigualdade e sentimentos de
exclusão. As tendências sociais para o individualismo, em detrimento do
coletivismo e do sentimento de pertencimento, elevam o risco de experimentar
sentimentos de solidão.”
'Agora
é hora de sair da cápsula'
Mas
será que é possível identificar a solidão e interferir antes que ela provoque
prejuízos à saúde?
Para
Kamkhagi, o desafio está em saber diferenciar solitude (estar só voluntariamente)
e solidão.
“Reservar
momentos para ficar sozinho é importante e saudável”, diz a psicóloga.
“O
problema é quando você fica o tempo todo desligado do resto do mundo e começa a
desaprender os códigos e as condutas das relações sociais”, complementa ela.
“Na
solidão, o isolamento não está mais a serviço de uma experiência de bem-estar,
como uma leitura ou o contato com a natureza, mas passa a apresentar padrões
prejudiciais, como ficar apenas em casa, abusar de álcool e outras drogas e se
desconectar do restante da vida”, concorda Spanemberg.
O
psiquiatra acrescenta que a solidão geralmente acontece junto de descuidos com
a própria saúde e a aparência, perda de autocuidado e irritabilidade nos
momentos em que é necessário ter contato com o outro.
Em
alguns casos, a própria pessoa consegue identificar esses sinais de alarme — em
outros, é necessário o auxílio de um familiar ou colega próximo, que pode
observar padrões e prejuízos na vida da pessoa solitária.
Diagnosticado
o problema, é possível lançar mão de algumas intervenções e cuidados que
previnem a evolução de um isolamento social voluntário para algo ainda mais
grave, como quadros de ansiedade e depressão.
“Pode
ser necessário realizar uma avaliação ou um acompanhamento psicológico ou
psiquiátrico”, sugere Spanemberg.
Aos
poucos, com o auxílio de um profissional de saúde, é possível retomar as
atividades sociais e o vínculo com a comunidade.
“Podemos
começar devagar, com uma caminhada leve no parque, ou o envio de uma mensagem a
um amigo para perguntar como ele está e dizer que está com saudades”,
exemplifica Kamkhagi.
“Essas
pequenas atitudes permitem reabrir o campo dos relacionamentos e lidar melhor
com a solidão”, conclui a psicóloga.
(BBC)
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