Comum em países como os Estados Unidos, a escalada de tensão em torno de símbolos culturais, morais e sexuais e de doutrinas educacionais levou a fogueiras de livros didáticos, à suspensão da distribuição do material escolar a milhões de alunos e a ameaças de morte contra um dos mais altos funcionários do governo federal de Andrés Manuel Lopez Obrador.
O presidente mexicano,
conhecido pelas iniciais AMLO, é do partido esquerdista Morena (Movimento
Regeneração Nacional), que tenta vencer as eleições presidenciais mexicanas de
2024.
Nas últimas semanas,
os livros didáticos das escolas públicas primárias e secundárias do ano letivo
2023/2024 começaram a ser distribuídos ao redor do México. Seu conteúdo — com
erros de informação pontuais sobre astronomia e matemática e menções à “teoria
da revolução” de Freire — fizeram explodir uma tensão que se avolumava há mais
de dois anos no cenário político do país.
Sem conteúdo
'neoliberal'
Em agosto de 2021,
AMLO anunciou que faria uma revisão dos conteúdos educativos mexicanos para
retirar abordagens “neoliberais”.
Segundo o presidente
mexicano, as alterações eram necessárias para incluir na “educação uma dimensão
social, humanística e científica, que havia sido perdida porque, durante o
período neoliberal, não queriam que se conhecesse nossa história”.
As medidas seriam
necessárias para que o governo pudesse entregar sua prometida “Quarta
Transformação”, slogan da campanha de AMLO que prometia um México menos
desigual, com melhores e mais bem acessados serviços públicos, fim de
privilégios a autoridades e foco no combate à corrupção. Seria,
“pacificamente”, uma quarta quebra histórica na ordem social do país. As três
anteriores, segundo esse discurso, foram a independência, a reforma (que
retirou o poder da Igreja Católica) e a revolução mexicana.
Para a missão
educacional, AMLO escalou o filólogo mexicano Marx Arriaga Navarro, empossado
como diretor-geral de Materiais Educativos da Secretaria de Educação Pública,
responsável pela distribuição de mais de 50 milhões de livros didáticos.
Para auxiliá-lo,
Navarro convidou Sady Arturo Loaiza Escalona, ex-diretor da Biblioteca Nacional
da Venezuela, entre outros postos ocupados durante o regime chavista
venezuelano.
Segundo o governo, o
trabalho na área educacional foi feito com consultas públicas. Para os
oposicionistas, no entanto, não houve qualquer transparência e a reformulação
foi feita no “escurinho”.
Não demorou para que a
oposição e entidades conservadoras da sociedade civil acusassem o governo AMLO
de promover doutrinamento ideológico e panfletarismo comunista com o material
didático.
Antes mesmo que o
conteúdo fosse público, a Unión Nacional de Padres de Familia obteve na Justiça
Federal, em maio, uma ordem para que a impressão do material fosse interrompida
e, em seu lugar, fossem reutilizados os livros didáticos do ano anterior.
Dizendo ter consultado
dezenas de universidades públicas e quase dois mil professores e cumprido com
todas exigências legais, o governo AMLO não atendeu à ordem judicial e seguiu
com o processo de distribuição escolar dos livros.
O que há nos livros
A situação política
atingiu o ponto de fervura quando os conteúdos dos 18 novos livros finalmente
foram conhecidos.
Críticos afirmam que o
novo material didático teve redução nos conteúdos de matemática e literatura. E
a mídia mexicana recolheu exemplos de erros factuais: os livros do terceiro ano
trariam a informação de que o ex-presidente mexicano Benito Juárez teria
nascido no dia 18 de março de 1806, e não no dia 21 de março, que seria o
correto. A data é um dos feriados mais importantes e conhecidos dos mexicanos,
já que Juárez, o primeiro presidente indígena do país, é até hoje celebrado
como um dos mais relevantes líderes da história do México.
Além disso, um livro
do quinto ano trazia um infográfico do Sistema Solar com erros ortográficos
(como a palavra “planera” em vez de “planeta”) e de configuração — a Terra
aparecia na mesma órbita que Saturno, por exemplo. No material de matemática do
terceiro ano primário, uma ilustração sobre frações indica que ⅚ é menor do que
¾, que é menor que ⅝, o que é incorreto.
Mas o ápice da
indignação teria sido causada pela entrada de Paulo Freire em cena. Já nas
primeiras páginas de apresentação dos 18 novos livros, endereçada aos
professores, o nome do educador surge com a seguinte mensagem:
“Paulo Freire,
pedagogo brasileiro que por toda a sua vida buscou formas de libertar os
marginalizados e oferecer-lhes uma teoria que lhes permitisse adquirir os
princípios ideológicos para lutar por justiça, dizia: ‘Cada vez mais nos
convenceremos da necessidade de que os verdadeiros revolucionários reconheçam
na revolução um ato de amor, tanto quanto um ato criador e humanizador. Para
nós, a revolução não se faz sem uma teoria da revolução e, portanto, sem
consciência (...)’. Prezada professora, prezado professor, o livro que tem em
suas mãos representa o esforço da Secretaria de Educação Pública por brindar
uma teoria que acompanhe a revolução que realiza em suas aulas”.
No Brasil, Paulo
Freire, formulador da Pedagogia do Oprimido, que preconiza a educação de
adultos analfabetos a partir da experiência e das relações cotidianas destes
indivíduos, já havia causado celeuma entre conservadores de direita.
Em setembro de 2022,
em entrevista à Rede TV, o então presidente Jair Bolsonaro disse que “tem que
tirar esse método Paulo Freire que não levou o Brasil a progresso nenhum, muito
pelo contrário, viramos uma fábrica de militantesl”. Em 2019, Bolsonaro já
havia afirmado que Freire era um “energúmeno, ídolo da esquerda”.
'Destruam os livros'
No México, a reação
foi imediata. “A todos os pais de família do país, os exortamos a que descartem
os livros didáticos que derem a seus filhos, ou ao menos arranquem as páginas
que não são convenientes para a educação de seus filhos”, afirmou, em vídeo
divulgado em suas redes sociais, o líder nacional do direitista Partido da Ação
Nacional, o PAN, Marko Cortés.
Cortés ainda disse que
“nos preocupa a carga ideológica destes livros didáticos e, se não bastasse, o
que estão fazendo com as ciências. Estão retirando dos jovens a chance de se
preparar adequadamente”. O âncora da rede de TV Azteca, o popular jornalista
Javier Alatorre, acusou o material de espalhar o “vírus comunista”.
Ato contínuo,
governadores oposicionistas de Estados Mexicanos como Chihuahua, Coahuila,
Jalisco (liderados pelo PAN, PRI e Movimiento Ciudadano), entre outros,
disseram que, por conta própria, barrariam a distribuição do material didático
ao menos até que fossem corrigidos “os erros pedagógicos” encontrados nos
livros didáticos gratuitos e que fosse feita uma consulta “mais plural, diversa
e ampla à comunidade educacional”.
O próprio Arriaga
Navarro postou em suas redes sociais um vídeo em que mostra uma pilha de novos
livros didáticos sendo queimados, supostamente em Chiapas. “Dor profunda, dor
na alma”, comentou, para, na sequência, enfileirar nomes de políticos,
jornalistas e de partidos mexicanos como o PRI, o PAN e o PRD, todos de
oposição ao governo AMLO. “Conquistaram sua perversão”, acusa Navarro.
Em outra postagem, o
diretor de materiais educativos do México publica uma suposta ameaça de morte:
“só responda como prefere morrer, se com um tiro de um franco atirador ou
asfixiado em sua casa, se não retirar os livros de circulação antes do fim de
setembro”.
Ameaças de morte
A BBC News Brasil
questionou Marx Arriaga Navarro sobre as críticas a respeito da carga
ideológica dos livros didáticos.
“Tudo na vida está
carregado de ideologia”, afirmou Navarro, para, na sequência, reafirmar que os
livros “não foram concebidos para promover qualquer consciência social
específica, ou para promover conceitos com caráter proselitista”.
Segundo ele, “a Nova
Escola Mexicana é mais uma proposta dentro das discussões e contribuições
filosóficas do sul global”, que conta com Paulo Freire, entre outros nomes,
como “referência” para “a formação de uma cidadania mexicana que assume, como
principal desafio, as implicações do bem-estar comunitário em que o indivíduo
não pode estar bem se o resto do comunidade está em péssimas condições”.
Navarro afirma ainda,
sem citar exemplos, que muitos dos erros atribuídos ao material didático são
“calúnias” espalhadas por redes sociais, mas reconhece que há, sim,
incorreções, que chama de “áreas de oportunidades”.
“Como em qualquer
processo editorial, existem áreas de oportunidade; nesses livros, praticamente,
tudo se deve a questões de estilo, não a questões de conteúdo”, diz o diretor,
cuja equipe já estaria trabalhando na produção de erratas.
Navarro atribui a
resistência aos novos materiais didáticos à perda de controle por poucos atores
econômicos do mercado editorial mexicano, à sua forte representação política na
direita e à resistência política ao projeto de AMLO.
“O que vemos é o
esforço de uma classe dominante, hegemônica, para manter os marginalizados do
sistema submissos, subjugados”.
Segundo ele, o novo
material derruba “a ideia de uma cidadania obediente, que tem medo de certos
fantasmas que permitiram o assassinato de milhares de mexicanos sob a
justificativa de: comunismo, sindicalismo, bons costumes, homossexualidade ou
guerrilha”.
Questionado sobre se
havia levado à polícia e à Justiça as ameaças de morte que diz sofrer, Navarro
afirmou se recusar a levá-las a sério. “Sigo andando de transporte público sem
qualquer outra proteção além dos meus princípios”.
O México tem eleições
previstas para junho de 2024.
A coligação de
oposição ao governo nomeou recentemente como candidata uma senadora com raízes
indígenas, Xóchitl Gálvez.
No partido Morena, de
Andrés Manuel López Obrador, a ex-prefeita da Cidade do México, Claudia
Sheinbaum, é considerada a favorita.
(BBC)
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