A relatora do caso e presidente do STF, Rosa Weber, ainda não marcou a data do julgamento. Mas, como Weber se aposenta no dia 2 de outubro, o caso deve começar a ser analisado antes disso.
Hoje, o aborto é permitido parcialmente no país. A
legislação autoriza a prática em casos de gravidez por estupro e quando há
risco para a vida da gestante. Já o STF liberou em 2012 o aborto de fetos
anencéfalos (sem cérebro), que não têm possibilidade de viver após o parto.
Defensores da descriminalização dizem que o aborto
deve ser uma decisão da mulher e que sua proibição fere direitos humanos da
gestante. Já opositores defendem que a vida começa na concepção e que,
portanto, deve-se proteger o feto.
Como relatora, Weber será a primeira a dos onze
ministros votar. A expectativa é que ela será favorável à ampla descriminalização,
mas não está claro nos bastidores do Supremo se há maioria para acompanhá-la.
Uma análise de manifestações prévias e do perfil
dos ministros, no entanto, permite identificar alguns votos prováveis contra e
a favor.
Defensores da descriminalização esperam ter ao
menos quatro votos: além do de Weber, Cármen Lúcia, Luís Roberto Barroso e
Edson Fachin.
No caso de Weber, Barroso e Fachin, os três já se
manifestaram contra a criminalização do aborto até o terceiro mês de gestação
em um julgamento da Primeira Turma do STF de 2016 que determinou a soltura de
funcionários e médicos de uma clínica clandestina em Duque de Caxias (RJ),
presos preventivamente.
Já a expectativa do voto de Cármen Lúcia tem
relação com o fato de ser uma mulher com visão progressista nas pautas de
costumes.
Por outro lado, os ministros indicados pelo
ex-presidente Jair Bolsonaro – Kássio Nunes e André Mendonça – devem votar
contra a ampla liberação do aborto.
Há mais incerteza sobre como vão se posicionar os
demais: Gilmar Mendes, Luiz Fux, Dias Toffoli, Alexandre de Moraes e Cristiano
Zanin.
O placar final, porém, deve demorar a sair. A
expectativa é que o julgamento seja interrompido por um pedido de vista (mais
tempo para analisar a ação) de um dos ministros. O prazo para liberar a ação
após pedido de vista é de 90 dias.
Confirmando-se o esperado adiamento, quem decidirá
sobre a retomada ou não do julgamento será Barroso, próximo presidente da
Corte.
Entenda melhor a seguir o que se sabe sobre a
posição e os argumentos dos integrantes do STF
Os argumentos pela descriminalização
No julgamento de 2016 em que a Primeira Turma
soltou pessoas acusadas de praticar aborto em uma clínica clandestina, Barroso
liderou a posição pela ampla descriminalização, com apoio de Weber e Fachin.
Também participaram daquele julgamento Fux e Marco
Aurélio (já aposentado). Eles concordaram com a revogação da prisão preventiva
por questões processuais, mas não se manifestaram sobre a descriminalização do
aborto.
Naquele julgamento, Barroso argumentou que há
controvérsia sobre o momento do início da vida – se na fecundação ou apenas na
formação do sistema nervoso central e da presença de rudimentos de consciência,
o que geralmente se dá após o terceiro mês da gestação.
O ministro ressaltou não haver resposta jurídica
para essa questão, que seria de fundo religioso e filosófico. Argumentou,
porém, que até o terceiro mês de gestação não há possibilidade de vida do feto
fora do útero.
Para Barroso, obrigar que uma mulher leve adiante
uma gestação nesse estágio inicial fere direitos fundamentais garantidos pela
Constituição, como o direito à integridade física e psíquica, os direitos
sexuais e reprodutivos da mulher e à igualdade de gênero.
"Quando se trate de uma mulher, um aspecto
central de sua autonomia é o poder de controlar o próprio corpo e de tomar as
decisões a ele relacionadas, inclusive a de cessar ou não uma gravidez"
argumentou o ministro.
"Como pode o Estado – isto é, um delegado de
polícia, um promotor de justiça ou um juiz de direito – impor a uma mulher, nas
semanas iniciais da gestação, que a leve a termo, como se tratasse de um útero
a serviço da sociedade, e não de uma pessoa autônoma, no gozo de plena
capacidade de ser, pensar e viver a própria vida", continuou, ao votar em
2016.
Por outro lado, o ministro disse que não estava
defendendo a disseminação do procedimento.
"O aborto é uma prática que se deve procurar
evitar, pelas complexidades físicas, psíquicas e morais que envolve. Por isso
mesmo, é papel do Estado e da sociedade atuar nesse sentido, mediante oferta de
educação sexual, distribuição de meios contraceptivos e amparo à mulher que
deseje ter o filho e se encontre em circunstâncias adversas", disse em seu
voto.
O que dizem os ministros contrários à liberação?
Kássio Nunes e André Mendonça já se declararam
publicamente contra a ampliação do acesso ao aborto.
Ao ter sua indicação ao STF sabatinada no Senado em
outubro de 2020, Marques se disse contra a interrupção da gravidez por razões
pessoais: "Questões familiares, questões pessoais, experiências minhas
vividas. A minha formação é sempre em defesa do direito à vida".
Ele também manifestou que as três hipóteses de
liberação do aborto no Brasil estariam adequadas e que apenas algum fator
extraordinário poderia provocar a ampliação disso.
"Dentro da quadra que está estabelecida, eu
analiso com muita razoabilidade a forma atual do tratamento desta questão (do
aborto). Eu entendo que o poder Judiciário muito provavelmente exauriu as
hipóteses dentro desta sociedade", disse também na sabatina.
"Só se eventualmente vier a acontecer algo que
hoje é inimaginável. Alguma pandemia, algum problema como o caso da anencefalia
provocada pelo mosquito da zika, algo nesse sentido que transformasse a
sociedade e provocasse, tanto o Congresso quanto o Poder Judiciário, para
promover modificações nesse sentido", disse.
A Associação Nacional de Defensores Públicos chegou
a apresentar um ação que pedia a liberação do aborto para grávidas infectadas
pelo vírus da zika, doença que causa microcefalia (quando o cérebro do feto não
se desenvolve de maneira adequada).
No entanto, o Supremo decidiu em abril de 2020 não
julgar o mérito da ação, recusando seu andamento por questões processuais.
Já André Mendonça chegou a se manifestar nessa ação
quando era advogado-geral da União, argumentando contra o direito ao aborto em
caso de gestante infectada pela zika. Para ele, seria uma espécie de eugenia
interromper a gravidez por esse motivo.
"Lamentável. Um retrocesso para a sociedade. O
pedido se trata do estabelecimento e da constitucionalização de uma segregação
das espécies, que foi presente no regime nazista", argumentou na ocasião.
Já como ministro do STF, Mendonça e Marques votaram
contra autorizar a interrupção de fetos siameses que, segundo avaliação médica,
não teriam capacidade de viver após o nascimento, em um julgamento na Segunda
Turma da Corte.
Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski acompanharam os
dois na ocasião, concordando com o argumento de que o STF não poderia analisar
o caso, porque não haviam se esgotado a análise do mérito em instâncias
judiciais anteriores.
Fachin foi o único que votou para autorizar o
aborto.
Sem a permissão do STF para interromper a gravidez,
a mãe deu à luz as filhas siamesas no final de 2022. Elas ficaram internadas e
morreram quase quatro meses depois.
A incerteza sobre os demais ministros
Outras pistas sobre os possíveis posicionamentos
dos ministros são os julgamentos que liberaram o aborto de anencéfalos (2012) e
a pesquisa científica com células-tronco embrionárias (2008) – caso que
provocou uma discussão sobre quais seriam os direitos do embrião e se sua vida
estaria protegida pela Constituição.
Dos ministros que ainda estão no Supremo, votaram
pela liberação do aborto de anencéfalos Luiz Fux, Rosa Weber, Gilmar Mendes e
Cármen Lúcia. Não há na Corte hoje ministros que ficaram contra.
Dias Toffoli, por sua vez, não participou do
julgamento porque quando era advogado-geral da União já havia se manifestado na
causa a favor do aborto de fetos sem cérebro.
Já no segundo caso, quando a maioria do Supremo
entendeu que as pesquisas com células-tronco embrionárias não violam o direito
à vida, foram favoráveis a essa decisão Cármen Lúcia e Gilmar Mendes –
considerando apenas os que permanecem no STF.
Toffoli era na época advogado-geral da União e
defendeu as pesquisas.
Os votos favoráveis nesses dois julgamentos podem
sinalizar uma abertura dos ministros à discussão da liberação ampla do aborto,
mas não permitem tirar uma conclusão sobre quais serão seus posicionamentos.
A forma como alguns ministros da Corte já se
manifestaram sobre o tema em outras ocasiões também não permite concluir para
que lado irão.
Toffoli, por exemplo, disse em sua sabatina no
Senado, em 2009, que era pessoalmente contra o aborto, mas que não considerava
a criminalização a melhor forma de evitar a prática. Já em 2018, indicou que o
Congresso seria o Poder mais adequado para discutir a ampliação do aborto.
“Teremos um novo Congresso que tomará posse a
partir de 1º de fevereiro de 2019 e, com certeza, terá a oportunidade de
discutir esse assunto. Tanto quanto o Congresso possa decidir sobre isso, tanto
melhor”, afirmou.
Fux, por sua vez, defendeu, em 2016, a atuação do
Judiciário em temas polêmicos quando há, na sua visão, omissão do Congresso.
"Há várias questões em relação às quais o
Judiciário não tem capacidade institucional para solucionar. É uma questão
completamente fora do âmbito jurídico. Mas, mesmo assim, temos que decidir. E
por que temos que decidir? Porque a população exige uma solução", disse o
ministro, durante o 10º Encontro Nacional do Poder Judiciário, segundo registro
da imprensa.
"Essas questões todas deveriam, realmente, ser
resolvidas pelo Parlamento. Mas acontece uma questão muito singular. O
Parlamento não quer pagar o preço social de decidir sobre o aborto, sobre a
união homoafetiva e sobre outras questões que nos faltam capacidade
institucional", acrescentou Fux.
Quanto à Cristiano Zanin, não está claro nos
bastidores do STF qual será seu posicionamento, mas ele se manifestou de forma
conservadora sobre o tema durante sua sabatina no Senado.
"O direito à vida está expressamente previsto
na Constituição. É uma garantia fundamental. Nessa perspectiva, temos que
enaltecer o direito à vida, porque aí estamos cumprindo o que diz a
Constituição da República", afirmou.
"Também nesse assunto existe um arcabouço
normativo consolidado, tanto da tutela do direito à vida, como também as
hipóteses de exclusão de ilicitude da interrupção voluntária da gravidez como
prevê o artigo 128 do Código penal", respondeu, em referência aos casos em
que a lei permite o aborto.
Alexandre de Moraes se recusou a revelar sua
posição sobre a ampliação do direito ao aborto ao ser sabatinado em 2017, com o
argumento de que iria julgar o tema caso aprovado para o STF.
Já em seu livro Constituição do Brasil interpretada
e legislação constitucional, publicado antes de virar ministro, Moraes se
posicionou a favor de uma ampliação limitada das três hipóteses que já permitem
o aborto legal, aponta uma reportagem do Conjur, portal especializado temas
jurídicos.
Na sua avaliação, isso deveria ocorrer na
impossibilidade do feto nascer com vida ou continuar vivo fora do útero.
Ele, porém, se colocou no livro contra a
interrupção da gestação quando houver probabilidade de que o bebê nasça com
complicações físicas ou mentais, devendo nesse caso ser protegido o direito à
vida do feto.
O que acontece se o STF descriminalizar o aborto?
O pedido da ação é para que a Corte determine que
dois artigos do Código Penal, que criminalizam a gestante e a pessoa que
realizar o aborto, seriam incompatíveis com preceitos fundamentais como o
direito das mulheres à vida, à dignidade, à cidadania, a não discriminação, à
liberdade, à igualdade, à saúde e ao planejamento familiar, entre outros.
As advogadas que assinam a ação destacam que a
criminalização do aborto leva muitas mulheres a recorrer a práticas inseguras,
provocando mortes.
Argumentam também que o problema afeta de forma
ainda mais intensa mulheres pobres, negras e das periferias, já que elas têm
menos conhecimento e recursos para evitar a gravidez, assim como menos meios
para pagar por métodos abortivos mais seguros, ainda que clandestinos.
A implementação da eventual descriminalização
dependerá dos termos da decisão do Supremo, avalia a vereadora Luciana Boiteux
(PSOL-RJ), professora de direito penal da UFRJ e uma das autoras da ação.
A Corte pode definir a liberação do aborto até 12
semanas, como pede o PSOL, ou determinar que um órgão técnico, como o
Ministério da Saúde, defina qual será o tempo limite, por exemplo.
Haverá também a necessidade de uma regulamentação
sobre como o procedimento será oferecido, nos serviços de saúde públicos e privados.
Para entidades feministas que defendem a liberação
do aborto, isso poderia ser feito diretamente pelo Poder Executivo, como
ocorreu quando o STF permitiu a interrupção de gravidez de fetos anencefálicos
(2012).
"Foi assim que aconteceu no caso da anencefalia:
o STF decidiu que o aborto nesse caso não era crime, e o Ministério da Saúde
definiu os detalhes de como as mulheres e pessoas que gestam poderiam acessar
os serviços de saúde nesses casos", defende uma cartilha sobre o tema
produzida por organizações como Anis Bioética e Católicas pelo direito de
decidir.
"Foi assim que ocorreu em outros países que
descriminalizaram o aborto, como a Colômbia. Com a decisão do tribunal, coube
ao poder executivo editar uma regulamentação para a oferta do procedimento nos
serviços de saúde", continua o documento.
Luciana Boiteux, porém, reconhece que eventual
regulamentação do acesso ao aborto "vai gerar ruído e disputa" com o
Congresso.
O aborto até 12 semanas de gestação, em geral, pode
ser feito apenas com uso de medicamentos, como misoprostol e mifepristona.
Outro impacto da eventual descriminalização é que
pessoas condenadas ou processadas por praticar aborto poderiam ter seus casos
anulados pela Justiça.
(Fonte: BBC)
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