E a
tendência de crescimento segue neste ano. Em 13 de novembro, o Fórum divulgou o
balanço do primeiro semestre de 2023. Embora os registros de homicídio em geral
registraram queda (-3,4%), os feminicídios tiveram alta. Foram 2,6% a mais
neste ano do que nos primeiros seis meses de 2022: 722 assassinatos no total, o
maior número da série histórica.
A
tendência é crescente desde que a lei nº 13.104/2015 acrescentou ao Código
Penal essa qualificadora ao crime de homicídio doloso. No entanto, o número
pode ainda estar subnotificado devido às dificuldades dos tribunais e policias
de classificar os casos.
O
anuário da violência aponta que, em 2022, foram as mulheres em idade
reprodutiva as principais vítimas desse tipo de crime: 71,9% das 1.437 mortes.
Dessas, 61,1% eram mulheres negras.
Houve
aumento no ano passado também dos casos de estupro contra meninas e mulheres.
Ao todo, foram 34 mil casos, salto de 14,9%. Isso corresponde a uma ocorrência
de violência sexual a cada 8 minutos, a maior proporção desde 2019. O relatório
aponta que a maioria das vítimas são crianças de até 14 anos, e respondem por
74,5% dos registros.
Brasil
mais distante da meta
Diante
da alta da violência contra mulheres, o Brasil se distancia cada vez mais de
atingir o 5º objetivo de desenvolvimento sustentável estabelecido pela Agenda
2030 das Nações Unidas: acabar com todas as formas de discriminação contra
todas as mulheres e meninas.
O
relatório do Fórum aponta que a escala da violência contra as mulheres é
consistente e não é reflexo apenas do aumento das denúncias, pois todos os
indicadores de agressões subiram no período.
Alguns
fatores favorecem o cenário de maior insegurança e violência, como a queda no
financiamento de políticas de proteção às mulheres. De 2019 a 2022, o Ligue
180, canal de denúncias de violência, teve uma redução de 41% nos gastos, por
exemplo. A pandemia de covid-19, que comprometeu os serviços de acolhimento de
vítimas, e a ascensão de movimentos extremistas também são apontados como
possíveis causas.
Em
entrevista à DW, a socióloga
Wânia Pasinato, assessora sênior da ONU Mulheres, analisa os motivos da alta de
feminicídios e o impacto social dessa violência e aponta as políticas públicas
de combate a esse cenário que precisam ser fortalecidas.
DW: O que justifica a escalada da violência contra as mulheres no
Brasil?
Wânia Pasinato: Deve-se a um processo que nos últimos
anos se convencionou chamar de desmonte de políticas públicas para mulheres e
voltadas para o enfrentamento à violência contra as mulheres no sentido mais
amplo: prevenção, proteção, promoção de direitos e responsabilização de
agressores.
Foram
pelo menos seis anos que passamos de retirada de orçamento público, o que
contribuiu para fragilizar os serviços que existiam, levando ao fechamento de
atendimentos.
Somos
uma sociedade muito conservadora, que tem uma estrutura patriarcal e machista,
que autoriza os homens a praticar violência contra
mulheres quando consideram que elas estão saindo do papel
de submissão, e que não têm destaque na vida pública e política.
Essa
cultura também autoriza os homens a praticarem essa violência na apropriação
dos corpos, em relação à sexualidade e direitos reprodutivos, por exemplo, e
isso se reflete no aumento dos estupros. É ainda mais preocupante porque
meninas estão expostas a essa violência sexual dentro de casa, que não é um
lugar de proteção..
Nos últimos anos, a legislação para proteção das meninas e
mulheres avançou com a Lei Maria da Penha e a qualificação dos feminicídios. No
entanto, os crimes estão em alta. Que brechas favorecem esse cenário?
As
leis são uma conquista de grande importância. Todas as mudanças que foram
feitas no campo legislativo desde a década de 1980 para cá, como a Lei Maria da Penha, que é um marco, inauguram um
outro debate. A lei do feminicídio mostra a importância de ter instrumentos
legais para trabalhar com essa violência.
Entre
2003 e 2015 houve investimento na implementação de serviços especializados,
como delegacia da mulher, atendimento na Casa Abrigo, serviços de saúde e
serviços de justiça. Houve também um grande investimento na produção de
documentos técnicos, como protocolos e diretrizes que tinham a função
importante de orientar e padronizar esse serviço e as atividades de capacitação
de profissionais para atendimento.
Isso
se perdeu com o fim da secretaria de Políticas para as Mulheres, que era o
principal indutor dessas ações, que negociava e impulsionava a criação de
serviços, inclusive com a transferência de orçamento. Essas iniciativas vão se
dissolvendo a partir de 2017. Sem capacidade de investimento, não houve
capacitação de profissionais, e normas técnicas acabaram defasadas.
A lei
do feminicídio é de 2015, e novas formas de violência, como a importunação
sexual e a perseguição on-line foram criadas, mas isso não faz parte da
orientação dos serviços. São incorporadas em iniciativas muito esporádicas por
gestores sensíveis ao tema. Não sabemos como as delegacias estão aplicando a
lei, ou como funciona. A situação se tornou precária nos centros de referência e
casas de abrigo.
Além
disso, temos obstáculos para implementar as leis e desenvolver as políticas.
Estamos lidando com instituições que são majoritariamente lideradas por homens
que não reconhecem essa violência como algo a ser combatido e prevenido. Quando
olhamos a aplicação das leis nos tribunais, ela ainda ocorre de maneira muito
discriminatória. Há a reprodução de estereótipos no processo que acaba
fundamentando absolvições e não condenação de agressores.
Quais são os impactos sociais desse contexto de violência sobre as
meninas e mulheres?
No
nível individual, impacta o próprio núcleo familiar, pois os filhos presenciam
a violência ou perdem a mãe vítima do feminicídio. Pode ser que essa mulher
sustentasse financeiramente a família, deixa dependentes e os parentes precisam
absorver o cuidado com crianças, por exemplo.
Há
ainda estudos que investigam o custo social desse contexto. Há uma perda
econômica para o próprio Estado, em termos de perda de força de trabalho, e
pode impactar no PIB dos países. Além disso, há os gastos públicos com mulheres
que são vítimas de violência e que precisam recorrer aos sistemas de saúde e de
segurança. Esse gasto do estado poderia ser reduzido se trabalhasse pela
prevenção.
Como as políticas públicas poderiam se tornar mais eficientes para
conter essa alta de caso?
Tem
que sair de um olhar restrito sobre a segurança pública e a Justiça. A resposta
virá da associação com outras políticas de outras áreas e da combinação delas.
Saúde e educação são prioridades porque por meio da educação é possível dar uma
melhor formação para essa população, vão ter mais condições de prosseguir na
vida escolar e acadêmica, ter uma formação profissional e podem fazer outras
escolhas na vida. A saúde também é fundamental, pois as mulheres morrem ou
sofrem sequelas de saúde por não terem acesso adequado ao serviço.
Mas a
solução também perpassa todas as dimensões da política pública, que envolve
habitação, infraestrutura urbana, espaços onde essas mulheres habitam, se tem
iluminação pública, calçamento, água encanada. Se observar a Agenda 2030 e
colocar a lupa de gênero nos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável, você
vai ver que ali tem um grande potencial para que se possa desenvolver políticas
mais adequadas para construção da equidade entre homens e mulheres em qualquer
campo da política pública.
(Brasil
de Fato)
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