segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Feminicídio em alta afasta Brasil da igualdade de gênero

Os casos de violência de gênero estão em alta no Brasil. Dados reunidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública atestaram um salto de 14,9% nos casos de estupro e 2,6% nos feminicídios em 2022, na comparação com o ano anterior.

E a tendência de crescimento segue neste ano. Em 13 de novembro, o Fórum divulgou o balanço do primeiro semestre de 2023. Embora os registros de homicídio em geral registraram queda (-3,4%), os feminicídios tiveram alta. Foram 2,6% a mais neste ano do que nos primeiros seis meses de 2022: 722 assassinatos no total, o maior número da série histórica.

A tendência é crescente desde que a lei nº 13.104/2015 acrescentou ao Código Penal essa qualificadora ao crime de homicídio doloso. No entanto, o número pode ainda estar subnotificado devido às dificuldades dos tribunais e policias de classificar os casos.

O anuário da violência aponta que, em 2022, foram as mulheres em idade reprodutiva as principais vítimas desse tipo de crime: 71,9% das 1.437 mortes. Dessas, 61,1% eram mulheres negras.

Houve aumento no ano passado também dos casos de estupro contra meninas e mulheres. Ao todo, foram 34 mil casos, salto de 14,9%. Isso corresponde a uma ocorrência de violência sexual a cada 8 minutos, a maior proporção desde 2019. O relatório aponta que a maioria das vítimas são crianças de até 14 anos, e respondem por 74,5% dos registros.

Brasil mais distante da meta

Diante da alta da violência contra mulheres, o Brasil se distancia cada vez mais de atingir o 5º objetivo de desenvolvimento sustentável estabelecido pela Agenda 2030 das Nações Unidas: acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas.

O relatório do Fórum aponta que a escala da violência contra as mulheres é consistente e não é reflexo apenas do aumento das denúncias, pois todos os indicadores de agressões subiram no período.

Alguns fatores favorecem o cenário de maior insegurança e violência, como a queda no financiamento de políticas de proteção às mulheres. De 2019 a 2022, o Ligue 180, canal de denúncias de violência, teve uma redução de 41% nos gastos, por exemplo. A pandemia de covid-19, que comprometeu os serviços de acolhimento de vítimas, e a ascensão de movimentos extremistas também são apontados como possíveis causas.

Em entrevista à DW, a socióloga Wânia Pasinato, assessora sênior da ONU Mulheres, analisa os motivos da alta de feminicídios e o impacto social dessa violência e aponta as políticas públicas de combate a esse cenário que precisam ser fortalecidas.

DW: O que justifica a escalada da violência contra as mulheres no Brasil?

Wânia Pasinato: Deve-se a um processo que nos últimos anos se convencionou chamar de desmonte de políticas públicas para mulheres e voltadas para o enfrentamento à violência contra as mulheres no sentido mais amplo: prevenção, proteção, promoção de direitos e responsabilização de agressores.

Foram pelo menos seis anos que passamos de retirada de orçamento público, o que contribuiu para fragilizar os serviços que existiam, levando ao fechamento de atendimentos.

Somos uma sociedade muito conservadora, que tem uma estrutura patriarcal e machista, que autoriza os homens a praticar violência contra mulheres quando consideram que elas estão saindo do papel de submissão, e que não têm destaque na vida pública e política.

Essa cultura também autoriza os homens a praticarem essa violência na apropriação dos corpos, em relação à sexualidade e direitos reprodutivos, por exemplo, e isso se reflete no aumento dos estupros. É ainda mais preocupante porque meninas estão expostas a essa violência sexual dentro de casa, que não é um lugar de proteção..

Nos últimos anos, a legislação para proteção das meninas e mulheres avançou com a Lei Maria da Penha e a qualificação dos feminicídios. No entanto, os crimes estão em alta. Que brechas favorecem esse cenário?

As leis são uma conquista de grande importância. Todas as mudanças que foram feitas no campo legislativo desde a década de 1980 para cá, como a Lei Maria da Penha, que é um marco, inauguram um outro debate. A lei do feminicídio mostra a importância de ter instrumentos legais para trabalhar com essa violência.

Entre 2003 e 2015 houve investimento na implementação de serviços especializados, como delegacia da mulher, atendimento na Casa Abrigo, serviços de saúde e serviços de justiça. Houve também um grande investimento na produção de documentos técnicos, como protocolos e diretrizes que tinham a função importante de orientar e padronizar esse serviço e as atividades de capacitação de profissionais para atendimento.  

Isso se perdeu com o fim da secretaria de Políticas para as Mulheres, que era o principal indutor dessas ações, que negociava e impulsionava a criação de serviços, inclusive com a transferência de orçamento. Essas iniciativas vão se dissolvendo a partir de 2017. Sem capacidade de investimento, não houve capacitação de profissionais, e normas técnicas acabaram defasadas.

A lei do feminicídio é de 2015, e novas formas de violência, como a importunação sexual e a perseguição on-line foram criadas, mas isso não faz parte da orientação dos serviços. São incorporadas em iniciativas muito esporádicas por gestores sensíveis ao tema. Não sabemos como as delegacias estão aplicando a lei, ou como funciona. A situação se tornou precária nos centros de referência e casas de abrigo.

Além disso, temos obstáculos para implementar as leis e desenvolver as políticas. Estamos lidando com instituições que são majoritariamente lideradas por homens que não reconhecem essa violência como algo a ser combatido e prevenido. Quando olhamos a aplicação das leis nos tribunais, ela ainda ocorre de maneira muito discriminatória. Há a reprodução de estereótipos no processo que acaba fundamentando absolvições e não condenação de agressores.

Quais são os impactos sociais desse contexto de violência sobre as meninas e mulheres?

No nível individual, impacta o próprio núcleo familiar, pois os filhos presenciam a violência ou perdem a mãe vítima do feminicídio. Pode ser que essa mulher sustentasse financeiramente a família, deixa dependentes e os parentes precisam absorver o cuidado com crianças, por exemplo.

Há ainda estudos que investigam o custo social desse contexto. Há uma perda econômica para o próprio Estado, em termos de perda de força de trabalho, e pode impactar no PIB dos países. Além disso, há os gastos públicos com mulheres que são vítimas de violência e que precisam recorrer aos sistemas de saúde e de segurança. Esse gasto do estado poderia ser reduzido se trabalhasse pela prevenção.

Como as políticas públicas poderiam se tornar mais eficientes para conter essa alta de caso?

Tem que sair de um olhar restrito sobre a segurança pública e a Justiça. A resposta virá da associação com outras políticas de outras áreas e da combinação delas. Saúde e educação são prioridades porque por meio da educação é possível dar uma melhor formação para essa população, vão ter mais condições de prosseguir na vida escolar e acadêmica, ter uma formação profissional e podem fazer outras escolhas na vida. A saúde também é fundamental, pois as mulheres morrem ou sofrem sequelas de saúde por não terem acesso adequado ao serviço.

Mas a solução também perpassa todas as dimensões da política pública, que envolve habitação, infraestrutura urbana, espaços onde essas mulheres habitam, se tem iluminação pública, calçamento, água encanada. Se observar a Agenda 2030 e colocar a lupa de gênero nos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável, você vai ver que ali tem um grande potencial para que se possa desenvolver políticas mais adequadas para construção da equidade entre homens e mulheres em qualquer campo da política pública.

(Brasil de Fato)

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