Muitos desses eventos
extremos, como são conhecidos pela Ciência, já apareciam nas
projeções feitas pelos especialistas ao longo das últimas décadas.
Também é consenso que eles estão relacionados — e são
potencializados — pelas mudanças climáticas causadas pela ação
humana.
O tema está no centro dos debates da COP28, cúpula do clima organizada
anualmente pelas Nações Unidas e que começa nesta quinta-feira (30/11) em
Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.
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Mas o que o futuro nos reserva? Como o Brasil já é e será cada vez mais afetado pelo aumento das temperaturas?
Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil,
o cenário traz, ao mesmo tempo, grandes ameaças e boas oportunidades.
Por um lado, o Brasil certamente sofrerá com ondas de calor intensas, períodos
prolongados de seca e chuvas inclementes.
Por outro, há uma série de condições e
características do território que, se bem aproveitadas, representam uma série
de vantagens estratégicas para os brasileiros em comparação com outras partes
do mundo — como o potencial de gerar energia limpa ou de reduzir rapidamente a
emissão de gases do efeito estufa.
Entenda todos os detalhes desse cenário a seguir.
Os registros históricos não deixam dúvidas: a
temperatura média do planeta (e do Brasil) subiu de forma consistente desde o
início da Revolução Industrial, a partir de meados dos séculos 18 e 19.
"Isso se deve a uma decisão tomada a partir
dessa época, quando a geração de energia passou a ser baseada na queima de
combustíveis fósseis, principalmente petróleo e carvão mineral", diz o
meteorologista Gilvan Sampaio, coordenador geral de Ciências da Terra do
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
A grande questão é que essa queima joga, de forma
contínua, toneladas e mais toneladas dos famosos gases do efeito estufa na
atmosfera — um dos principais deles é o dióxido de carbono (ou CO2).
Esses gases permanecem na atmosfera durante décadas
(ou até séculos) e bagunçam a forma como o calor é dissipado. Para resumir, o
resultado desse acúmulo é o aumento médio da temperatura ano após ano.
Esse fenômeno pode ser observado no gráfico a
seguir, que traz dados do Brasil nos últimos 121 anos.
Em 1901, a temperatura média do país foi de
24,91ºC. Já em 2022, subiu para 25,54ºC.
Essa diferença de 0,63ºC parece pequena, mas já faz
uma grande diferença no fino balanço climático do país e do mundo.
Esse aumento progressivo da temperatura gera uma
série de eventos extremos, como aqueles que ocorreram nos últimos meses — que,
além de serem influenciados pelas mudanças climáticas, ainda tiveram a contribuição do El Niño, fenômeno marcado
pelo aumento acima da média da temperatura nas águas superficiais do Oceano
Pacífico nas proximidades da Linha do Equador.
"Esses eventos estão acontecendo de forma cada
vez mais frequente em todo o planeta", observa o cientista Carlos Nobre,
do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP).
"Segundo o Copernicus, a instituição climática
da Europa, 2023 é o ano mais quente já registrado não apenas nos últimos dois
séculos, mas desde o período interglacial, há 125 mil anos."
Os efeitos disso já podem ser observados na
prática.
"Episódios de chuva com volume maior que 50
milímetros por dia eram raros em São Paulo até a década de 1950. Hoje, são sete
a dez episódios do tipo todos os anos", afirma Sampaio.
O climatologista José Antonio Marengo,
coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de
Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), destaca que o Rio
Negro, na Amazônia, chegou a 12 metros de profundidade no dia 20 de outubro.
"Esse é o volume mais baixo em 121 anos de
observações. Além disso, tivemos as ondas de calor muito fortes em setembro,
outubro e novembro", diz.
"Falamos de uma sequência de eventos extremos
que, combinados, geram consequências e são preocupantes."
Calorão nas alturas
O aumento das temperaturas não deve parar por aí:
as projeções feitas pelos cientistas reunidos no Painel Intergovernamental
sobre Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas apontam que o planeta pode
ter um acréscimo de 1,5ºC a 4ºC na temperatura média até o final deste século.
A meta é reduzir ao máximo essa subida dos
termômetros — o Acordo de Paris, assinado em 2015, traz uma série de metas que
precisam ser cumpridas pelos países signatários para cortar a emissão de gases
do efeito estufa e limitar esse aumento ao mínimo de 1,5ºC.
Mas o que tudo isso significa para o Brasil?
A oceanóloga Regina Rodrigues, professora da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), aponta que as projeções sobre o
futuro climático do Brasil são um pouco incertas, porque muitos dos modelos
levam em conta a realidade e as características do Hemisfério Norte (onde
muitas dessas ferramentas foram desenvolvidas).
"De maneira geral, podemos projetar um clima
muito mais seco para as regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e partes do
Sudeste, com um aumento do volume das chuvas no Sul", diz a pesquisadora,
que também representa o Programa Mundial de Pesquisa Climática da Organização
Mundial de Meteorologia.
"Teremos também mais ondas de calor, como
essas que tivemos ao longo de 2023."
Segundo os dados compilados pelo Banco Mundial,
esse aumento da temperatura média no Brasil vai variar bastante, de acordo com
o ritmo da emissão dos gases estufas daqui em diante.
Em um dos cenários mais otimistas (em que as emissões
são zeradas um pouco depois de 2050), os termômetros brasileiros passariam de
25,84ºC em 2014 para uma média de 26,67 ºC em 2100.
Já a possibilidade mais pessimista, em que as
emissões globais dos gases do efeito estufa dobram, a temperatura média do Brasil
em 2100 saltaria para 30,88ºC — uma diferença que ultrapassa os 5ºC em relação
aos patamares atuais.
Mas por que o aumento da temperatura gera mais
eventos extremos? A mudança nos padrões climáticos conhecidos e registrados ao
longo de décadas e séculos modifica o fino balanço dos ecossistemas, que
dependem dos ciclos de chuvas, secas, calor e frio para manter as mais diversas
formas de vida.
As ondas de calor no oceano, por exemplo, fazem
mais água marítima evaporar. Parte dessa umidade vai em direção ao continente e
gera chuvas torrenciais — que causam enchentes e deslizamentos.
Já a elevação da temperatura em outros locais tem
um efeito contrário: gera secas extremas, que matam a vegetação acostumada com
certo nível de umidade e desequilibram toda a cadeia alimentar. Como mencionado
anteriormente, os efeitos da estiagem na agricultura também podem ser
dramáticos.
Quanto maior for esse aumento da temperatura,
piores serão as consequências em termos de eventos extremos, como os calorões,
as estiagens e os temporais, como apontam especialistas.
"O Brasil tem vulnerabilidades enormes. Grande
parte da nossa economia é baseada no agronegócio, que sofrerá uma queda de
produtividade com a diminuição das chuvas e o aumento das secas", destaca
o físico Paulo Artaxo, professor da USP.
O Brasil já é mais propenso aos eventos extremos,
porque é um país tropical, explica ele.
"Um aumento de 3 ºC na Suécia pode até ser
benéfico para o clima na região. Agora, 3 ºC a mais para quem mora em Teresina,
Cuiabá ou Palmas pode significar a diferença entre a vida e a morte",
complementa.
Nobre lembra que essa vulnerabilidade climática
também é influenciada pela condição socioeconômica do país.
"O IBGE calcula que 2 milhões de brasileiros
vivem em áreas de altíssimo risco para deslizamentos ou inundações e não podem
continuar nesses locais. Além disso, 10 milhões moram em regiões de alto
risco", diz o cientista.
"E sabemos que o impacto de eventos extremos é
muito menor nos países que protegem melhor as suas populações."
Como exemplo, os especialistas ouvidos pela BBC
News Brasil citam os casos de Holanda e Bangladesh — que têm boa parte do
território abaixo do nível do mar — ou de Japão e Turquia — onde terremotos são
frequentes (que não estão relacionados ao clima, mas são eventos que geram
grandes catástrofes).
Em ambos os casos, os impactos desses eventos
(inundações ou terremotos) nas nações mais ricas e com planos de contingência
(caso de Holanda e Japão) costumam ser bem menores do que nos lugares mais
pobres e sem uma estrutura para proteger a população (como Bangladesh e
Turquia).
Vantagens estratégicas
Se, por um lado, o presente (e o futuro) do clima
do Brasil gera preocupações, a boa notícia é que a missão do país de mitigar os
riscos pode ser relativamente mais fácil do que a de outras nações.
"O Brasil tem uma vantagem estratégica enorme,
que nenhum outro país do mundo possui: nós conseguiríamos reduzir nossas emissões
de gases do efeito estufa em 50%, pela metade, se parássemos o desmatamento da
Amazônia", diz Artaxo.
"E nós conseguimos fazer isso a um custo
baixíssimo e num curto espaço de tempo."
Nobre lembra que o Brasil pode ser o primeiro
grande país a zerar as emissões de gases do efeito estufa.
Para contextualizar, as cinco nações que jogam mais
CO2 na atmosfera são China, Estados Unidos, Índia, Rússia e Brasil.
Mas há uma diferença importante nesse grupo: a
emissão de gases do efeito estufa dos quatro primeiros países tem a ver com a
geração de energia e a queima de combustíveis fósseis (como carvão e petróleo).
Já no Brasil, como é possível conferir no gráfico a
seguir, a maior parte das emissões está relacionada à agricultura, ao uso da
terra e ao desmatamento.
Em termos práticos, isso significa que China,
Estados Unidos, Índia e Rússia precisam fazer toda uma transição energética,
abandonar os combustíveis fósseis e criar uma nova rede baseada em fontes
renováveis (como placas solares, usinas eólicas, hidrelétricas…).
Isso tem um custo financeiro alto e gera impactos
na economia desses países.
Já a "lição de casa" brasileira consiste
basicamente em reduzir drasticamente — e eventualmente zerar — o desmatamento.
Essa, aliás, é uma das grandes promessas do país
nas negociações da COP28.
Os especialistas ainda sugerem recuperar as áreas
degradadas — regiões que foram desmatadas e hoje não são usadas para nenhuma
atividade comercial, mas podem ser regeneradas e virar floresta (ou campo para
agricultura ou pecuária).
Energia para dar (e vender)
Outra vantagem estratégica do país está na geração
de energia.
"A nossa matriz energética já é
majoritariamente limpa. Cerca de 75% de nossa eletricidade vêm das
hidrelétricas, que produzem um impacto no ambiente, mas que é bem menor do que
o dos combustíveis fósseis", compara Rodrigues.
Sampaio avalia que o Brasil talvez seja o país com
as maiores possibilidades de geração de energia do mundo.
"Temos uma dimensão continental e estamos
localizados em grande parte na região tropical, que recebe muita radiação solar
durante todo o ano. Isso pode ser usado para gerar energia fotovoltaica",
propõe.
"Também temos diversas regiões do país com
grande possibilidade de gerar energia eólica, principalmente no Nordeste e no
Sul."
O diretor do Inpe destaca outro fator que pode ser
explorado no futuro para a obtenção de eletricidade: o movimento das marés, uma
vez que o país tem uma extensa costa.
"Isso sem contar a liderança mundial do Brasil
em relação aos biocombustíveis, como o etanol feito a partir da
cana-de-açúcar", complementa.
A engenheira Suzana Kahn Ribeiro, professora do
Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coope-UFRJ), diz que esse potencial
energético pode ser aproveitado nos projetos de reindustrialização do país.
"Temos condições de atrair uma nova
industrialização baseada numa economia verde, com baixo carbono, geração de
emprego e crescimento econômico", afirma.
"Precisamos de um ambiente jurídico e político
estável e previsível para atrair esses investimentos."
Nobre concorda com a avaliação e entende ser
possível aproveitar a biodiversidade brasileira nessas cadeias produtivas sem
gerar danos ao meio ambiente.
"Nossos biomas, a Amazônia, a Mata Atlântica,
o Cerrado, a Caatinga, os Pampas, o Pantanal, são muito biodiversos. Mas essa
biodiversidade ainda não tem representatividade na economia", avalia.
"Essa nova industrialização, baseada na
biodiversidade, é essencial para tornar o Brasil um país de classe média e
menos desigual."
Para isso virar realidade, Ribeiro aponta ser
necessário investir em educação e pesquisa.
"Quando o Brasil decide focar em alguns
setores, vira exemplo mundial. É o caso dos biocombustíveis", diz.
"Nós temos um capital fantástico, agora
precisamos de uma densidade intelectual para saber como aproveitá-lo."
Rodrigues lembra que não há mais uma oposição entre
preservar o meio ambiente e desenvolver a economia.
"As duas coisas andam juntas. O Brasil nunca
foi competitivo no modelo antigo, baseado nos combustíveis fósseis",
afirma.
"A crise climática pode servir como
oportunidade para que o país desenvolva tecnologias e possa virar essa nova
referência."
Adaptar é preciso
Além dos potenciais e das vantagens estratégicas,
os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil chamam a atenção para a
necessidade de fazer adaptações e desenvolver planos de emergência.
Afinal, as mudanças climáticas até podem ser
mitigadas, mas, mesmo nos cenários mais otimistas, haverá um aumento da
temperatura e dos eventos extremos.
"Nós estamos muito atrasados na agenda da
adaptação climática", constata Artaxo.
"Precisamos reestruturar todo o nosso sistema
de defesa civil e pensar nos impactos à saúde causados pelas mudanças
climáticas."
Um exemplo prático: na avaliação dos pesquisadores,
os 2 milhões de brasileiros que vivem em áreas com risco altíssimo para
deslizamentos e enchentes precisam ser remanejados com urgência, porque correm
risco de morte a cada nova tempestade.
Para as ondas de calor, que ficarão cada vez mais
intensas e frequentes, os serviços de saúde devem estar preparados para
absorver o aumento da demanda nos pronto-socorros.
Será necessário pensar em abrigos para proteger os
mais vulneráveis, como crianças e idosos.
As regiões afetadas pela seca necessitam de
cisternas e reservatórios, para garantir o suprimento de água.
Agrônomos e agricultores já realizam pesquisas
sobre cultivares que sejam mais resistentes às estiagens.
Cidades litorâneas devem pensar em estratégias para
conter o avanço do mar — e muitas vezes, a solução está na própria natureza,
com a revitalização dos manguezais, que pode servir como uma barreira verde.
"Essa não me parece uma questão de recursos
financeiros, mas de uma integração de ações governamentais", pontua
Artaxo.
Ao contrário das ações de mitigação das mudanças
climáticas, que envolvem negociações internacionais para reduzir a emissão de
gases do efeito estufa do mundo todo, a agenda de adaptação é muito particular:
cada cidade pode (e deve) desenvolver soluções próprias, baseadas na realidade
local.
"Os planos de adaptação às mudanças climáticas
não são apenas um documento bonito, escrito em letras douradas, que fica
exposto numa prateleira", diz Marengo.
"Ele precisa ser prático, conhecido por todos
e mostrar o que fazer para prevenir ou minimizar os danos relacionados aos
eventos climáticos extremos", complementa ele.
Para Nobre, esses planos também envolvem educar e
conscientizar a população sobre o que fazer para ficar mais resguardado em
situações como essas.
"Por mais que os brasileiros estejam adaptados
ao calor, estamos batendo todos os recordes de temperatura. A secura do ar pode
causar desidratação e uma série de doenças", explica ele.
"As pessoas precisam ser orientadas para saber
como se proteger diante dessa nova realidade."
(Fonte: BBC)
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