Em outras palavras, o que era
oferecido como uma solução acabava se tornando um grave problema a longo prazo.
Os relatos que Lembke ouviu no
consultório são apenas um pequeno recorte de um problema muito maior nos
Estados Unidos.
O país enfrenta uma epidemia
de drogas prescritas, que afeta, em especial, os mais jovens.
Em 2022, o número de overdoses de drogas nos EUA aumentou novamente e chegou a
100 mil, tendo como principal agente causador o fentanil, um opioide 50 vezes mais poderoso que a heroína,
adquirido de forma ilícita.
A partir de relatos de
pacientes e de seus familiares, pesquisas científicas e entrevistas com
profissionais de saúde, administradores de hospitais, jornalistas e
farmacêuticos, entre outros, Lembke, que é chefe da Clínica de Medicina de
Adicção de Duplo Diagnóstico de Stanford, escreveu Nação Tarja Preta (Editora
Vestígio), que chega ao Brasil após o sucesso de seu livro anterior, Nação
Dopamina, pela mesma editora.
O novo livro de Lembke ajuda a
entender as consequências dos atuais modelos de cuidado com a saúde, sejam
públicos ou privados.
Segundo ela, pouco tempo para
consultas, aumento indiscriminado da disponibilidade de medicamentos, falta de
acompanhamento de seus usos, educação deficiente no entendimento dos riscos de
dependência e influência do marketing nas prescrições configuram um sistema que
precisa ser revisto.
"A escolha da prescrição
não é motivada principalmente pela ciência médica, mas, sim, pela influência da
indústria, muitas vezes de forma oculta", diz ela, em entrevista à BBC
News Brasil.
O acesso a medicamentos nos
EUA é mais fácil se eles são do tipo não controlados, que respondem pela maioria das prescrições.
Já os medicamentos controlados
são aqueles que apresentam risco de dependência.
O problema, segundo Lembke, é
que uma droga não controlada "pode passar a ser controlada se, ao longo do
tempo, seu potencial de adicção vier à luz", adverte em seu livro, citando
o analgésico tramadol, aprovado para uso não controlado em 1995 e reclassificado
como medicamento controlado em 2014.
O cenário analisado é o dos
EUA, mas, no prefácio da edição brasileira, Lembke demonstra que precisamos
aprender com os erros dos americanos.
Entre 2009 e 2015, a
comercialização de opioides (potentes analgésicos que aliviam a dor) prescritos
aumentou 465%, ao mesmo tempo em que aumentaram também os investimentos no
marketing de medicamentos relacionados.
As maiores altas foram vistas
nas vendas de codeína, oxicodona e fentanil.
Lembke se mostra cautelosa em
não estigmatizar o uso e a aplicação de medicamentos controlados e direciona
sua crítica ao modo como o sistema funciona, em que os comprimidos prescritos
com a boa intenção de aliviar uma condição acabam se tornando fatais aos
pacientes que se tornam dependentes.
"Mais importante ainda,
por que continuamos prescrevendo e consumindo essas drogas perigosas, mesmo
sabendo disso?", questiona ela, em Nação Tarja Preta.
Confira os principais trechos
da entrevista de Lembke à BBC News Brasil.
BBC News Brasil - Em seu novo
livro, a senhora argumenta que a dependência de substâncias não é um problema
individual, mas sim, uma questão de saúde pública. De que maneira fatores
sociais, econômicos e culturais participam do quadro atual do consumo excessivo
e o que pode ser feito para contorná-lo?
Anna Lembke - Existem muitos fatores de
risco para a dependência de substâncias e eles podem ser divididos nas
categorias genética, educação e entorno.
"Genética" refere-se
ao risco genético, isto é, à vulnerabilidade biológica inata de um determinado
indivíduo ao transtorno por uso de substâncias.
Mas a "educação" e o
"entorno" estão claramente no domínio da saúde pública, incluindo
fatores de risco para a dependência relacionados com a pobreza, o desemprego, o
trauma multigeracional, a mobilidade social e o simples acesso às drogas.
Se você mora em um bairro onde
as drogas são vendidas na esquina, é mais provável que você as experimente e
que fique dependente delas.
Assim, as intervenções para
abordar a dependência devem abordar não apenas os fatores de risco individuais,
mas também os fatores de risco ecológicos, ou seja, todas as formas como o
mundo moderno conspira para nos transformar em dependentes.
BBC News Brasil - Muitas
pessoas dizem que nunca seriam dependentes de drogas, mas a senhora descobriu
que milhares fizeram uso excessivo de medicamentos prescritos, o que pode ser
fatal. A senhora acha que os médicos têm consciência da influência deles na
prescrição de determinado medicamento aos seus pacientes?
Lembke - A maioria dos médicos
tem pouca formação sobre o transtorno por uso de substâncias de forma mais
ampla e, em particular, sobre o potencial de dependência dos medicamentos que
prescrevem.
Eles não sabem como monitorar
o uso indevido de medicamentos prescritos, como conversar com os pacientes
sobre este tipo de uso ou o que fazer se detectarem que seus pacientes se
tornaram dependentes dos medicamentos que receitam.
O lado positivo da epidemia de
opioides é que hoje os médicos nos EUA têm recebido mais educação sobre o uso
indevido e a dependência de medicamentos prescritos, e os jovens médicos de
hoje são muito mais cautelosos na prescrição de remédios potencialmente
aditivos.
BBC News Brasil - Em sua
visão, o que motiva os médicos a prescreverem determinados medicamentos aos
seus pacientes?
Lembke - Pacientes imaginam que a
decisão dos seus médicos de prescrever um medicamento específico se baseia
puramente na tomada de decisão médica, mas, na verdade, há muitos fatores que
influenciam a escolha que pouco têm a ver com o que é melhor para o paciente.
A promoção do medicamento
pelos fabricantes e outros integrantes da cadeia de abastecimento farmacêutico
tem enorme influência na forma como os médicos escolhem o que vai ser
prescrito.
Esse impacto sobre os clínicos
pode nem ser percebido. Eles recebem muito material promocional que vem com o
discurso da ciência, mas que, na verdade, contém mensagens falsas e enganosas
sobre segurança e eficácia.
Até mesmo um brinde
aparentemente simples como uma caneta, chapéu ou xícara de café pode
influenciar a prescrição.
Além disso, os pacientes
também são bombardeados com publicidade direta ao consumidor sobre
medicamentos, por isso vão aos médicos solicitando determinados nomes.
Nos Estados Unidos, a
indústria farmacêutica também tem enorme influência no custo e na
disponibilidade dos medicamentos, promovendo alguns em detrimento de outros,
independentemente da evidência médica.
Em outras palavras, a escolha
da prescrição não é motivada principalmente pela ciência médica, mas sim pela
influência da indústria, muitas vezes de forma oculta.
BBC News Brasil - Quais são os
segmentos da sociedade mais suscetíveis de serem tratados com medicamentos
prescritos?
Lembke - Se você está perguntando
quais pacientes têm maior probabilidade de receber prescrição de opioides para
dor crônica, então seriam pessoas com doenças mentais e pessoas que vivem na
pobreza.
As mulheres são mais propensas
a receber prescrição de benzodiazepínicos do que os homens.
É mais provável que os brancos
nos Estados Unidos recebam prescrição de opioides para a dor, já que o preconceito
racial inconsciente faz com que os médicos suspeitem mais que os negros e
pardos pratiquem uso indevido e diversão.
BBC News Brasil - Um dos
pontos mais preocupantes discutidos em seu livro é que a dependência de
medicamentos controlados vem a partir do acesso às prescrições médicas, mesmo
que bem-intencionadas. No momento estamos caminhando para uma intensificação do
uso da IA (inteligência Artificial) nos atendimentos de saúde. Existe risco
deste quadro de dependência piorar, considerando que as prescrições possam vir
a partir de protocolos sem a presença humana?
Lembke - Os protocolos de IA são
tão inteligentes quanto a alimentação de seus dados [os chamados inputs, em
inglês, "entradas"].
Se informações úteis forem
inseridas em um algoritmo de IA, elas terão o potencial de ajudar os médicos a
rastrear e intervir no uso indevido e na dependência de medicamentos
prescritos, ao mesmo tempo em que eliminam alguns dos preconceitos dos quais os
humanos são vítimas.
Por outro lado, uma ferramenta
de IA mal concebida e com entradas defeituosas pode piorar a situação.
BBC News Brasil - No prefácio
da edição brasileira, a senhora argumenta que a confiança que depositamos em
pílulas para curar o sofrimento humana não considera os custos deste uso em
longo prazo, nem o fato de que estas mesmas pílulas podem agravar a condição de
saúde do paciente ao longo dos anos. Quão importante é o fator
"tempo" neste debate?
Lembke - O sistema de saúde nos
EUA é quase inteiramente concebido em torno de soluções rápidas, que geralmente
têm efeito contrário à saúde dos pacientes com o passar do tempo.
Precisamos criar sistemas de
tratamentos que priorizem a saúde a longo prazo, em vez da ajuda e do lucro a
curto prazo.
Isso deve incluir dar aos
médicos tempo para dialogar e educar os pacientes, e construir relacionamentos
com eles ao longo do tempo, permitindo as conversas difíceis que às vezes são
necessárias para a melhoria da saúde de quem busca o cuidado.
BBC News Brasil - Além disso,
a senhora acha que nós, como sociedade, estamos dando tempo suficiente a nós
mesmos quando se trata de passar por situações difíceis na vida?
Lembke - Em geral, a cultura
moderna promove a velocidade.
Mesmo o luto em resposta à
perda de um ente querido é agora considerado uma doença mental, para a qual
existe uma categoria diagnóstica no DSM [Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais, publicação de referência para os tratamentos
psiquiátricos], embora o luto esteja entre as respostas humanas mais normais e
saudáveis.
A cultura ocidental moderna,
em particular, tem pouca tolerância ao sofrimento.
Pessoas tristes são vistas
como doentes, e não como seres humanos saudáveis, envolvidos na complexa
proposta de navegar pela vida.
BBC News Brasil - Quais são os
cuidados que médicos e pacientes devem adotar no uso de medicamentos prescritos
para tratamentos de saúde mental?
Lembke - As decisões sobre medicamentos
devem fundamentalmente considerar uma análise de custo-benefício: os benefícios
superam os danos?
Todos os medicamentos têm
efeitos colaterais potenciais.
Quando o sofrimento do
indivíduo não pode ser aliviado de nenhuma outra forma, e quando os benefícios
potenciais de um medicamento parecem superar seus riscos, então tentar tomá-lo
faz sentido.
Uma vez iniciado o
medicamento, o médico e o paciente devem avaliar continuamente os riscos e
benefícios, pois estes podem mudar com o tempo.
Um medicamento que
inicialmente é útil pode tornar-se prejudicial com o uso prolongado.
Se e quando os efeitos
adversos excederem os benefícios, a medicação deve ser descontinuada de forma
compassiva e humana.
Essa avaliação de riscos e
benefícios deve incluir mais do que o relato subjetivo do paciente.
Deve incluir também exames
laboratoriais, o que os membros da família observam sobre o paciente e outros
dados objetivos.
Os próprios pacientes,
especialmente quando se tornam adictos a um medicamento, podem ver benefícios
mesmo quando estes não existem.
BBC News Brasil - Ao mesmo
tempo, ainda existe um estigma em torno do uso de medicamentos desse tipo. Como
podemos dosar acessibilidade e conscientização?
Lembke - Sou grata por existirem
medicamentos psicotrópicos para prescrever aos meus pacientes. Em alguns casos,
eles podem salvar vidas.
Ao mesmo tempo, devemos ter
cuidado ao prescrevê-los em excesso, especialmente quando têm potencial para
causar dependência.
Podemos estigmatizar práticas
médicas inadequadas sem estigmatizar os próprios medicamentos.
BBC News Brasil - Na sua
análise, quando foi que medicamentos prescritos para tratamentos como
ansiedade, insônia, depressão e falta de foco passaram a ser consumidos de
forma massiva e acrítica?
Lembke - Essa onda começou na
década de 1970 com a promoção do Valium como "ajudante das mães" e
tem aumentado desde então, incluindo a prescrição de psicotrópicos a crianças
cada vez mais novas, incluindo crianças com apenas dois anos.
BBC News Brasil - E em que
momento os tratamentos de saúde mental passaram a ser tão associados ao uso de
medicamentos prescritos?
Lembke - A década de 1990 foi a
chamada "Década do Cérebro", quando a psiquiatria se afastou
decisivamente da psicoterapia (e de uma abordagem mais holística da saúde
mental) e passou a adotar os medicamentos como solução para todas as formas de
sofrimento psicológico.
BBC News Brasil - Qual sua
avaliação sobre o uso da cannabis e de medicamentos psicodélicos para
tratamentos de saúde mental?
Lembke - Não há evidências
confiáveis de que a cannabis seja eficaz no tratamento de qualquer transtorno
de saúde mental, especialmente quando consumida a longo prazo (esta é
também a posição oficial da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP)).
As evidências sobre
psicodélicos são muito preliminares para serem confiáveis, especialmente por
conta da subnotificação sistemática dos danos provocados.
Por esse motivo, não recomendaria nenhum dos dois aos meus pacientes, pelo menos não sem evidências mais robustas de segurança e eficácia.
(Fonte: BBC)
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