Ré primária, Yorrana cumpriu pena por tráfico na Professor Jason, em São Joaquim de Bicas, na Grande Belo Horizonte – a única penitenciária LGBTQIA+ de Minas Gerais. Passou os três anos sem trabalhar: “Lá só temos o mínimo. As vagas de trabalho são poucas, para a maioria não há oportunidade”, conta. Em seu vasto tempo livre, Yorrana planejava como se reerguer quando se visse em liberdade.
Resolveu
que correria atrás de dois sonhos antigos: retificar seu nome (Yorrana é uma
mulher trans) e abrir seu próprio negócio, uma sex shop. Foram anos “futricando
a lei” para entender os trâmites da retificação – que, descobriu, não seria
aceita enquanto estivesse presa.A loja foi idealizada em longos diálogos com
seu ex-companheiro, que conheceu no presídio. Yorrana preencheu cadernos
inteiros calculando o capital inicial necessário, as vendas online e o contato
com clientes. Planejar ajudou a evitar um problema comum: “A soltura é tão
idealizada que muita gente não pensa no que fazer quando a hora chega. Quando
você não planeja, acaba na rua; da rua, acaba nas drogas; das drogas, acaba
cometendo outro crime, e daí cai de novo no sistema”, diz Yorrana.
Embora
seus parentes a visitassem na prisão, avisaram que não haveria lugar para ela
na casa da família. Em 2021, ao ser solta, só rompeu o ciclo vicioso graças a
uma mão que lhe foi estendida – e não pelo Estado.
Yorrana
a procurou assim que saiu da penitenciária. Do próprio bolso, Angelita pagou as
taxas para a retificação do nome da egressa e lhe ajudou a encontrar um
trabalho de meio período. Um ano depois, Yorrana arranjou emprego num pet shop,
e com o dinheiro pôde inaugurar o seu sex shop. Agora batalha para pagar, em
prestações, a multa processual que lhe foi aplicada quando de sua condenação:
R$ 17 mil.
Se
dependesse só do Estado, o destino de Yorrana poderia ser outro, reflete
Angelita. “A maioria dos presos fica 24 horas dentro da cela, quando a lei
determina que todos devem ter acesso ao estudo e trabalho”, diz.
O
“conjunto de falhas” que ela percebe na Lei de Execução Penal (LEP), que
considera “linda, mas só no papel”, vai desde a comida azeda ao racionamento de
água, passando pelas recorrentes agressões físicas e psicológicas por parte dos
agentes penitenciários. A soma desses fatores é perversa: “Quem está na prisão
tem risco de sair pior do que entrou”.
Em
todo o Brasil, apenas 24% dos presos trabalham, mostram dados da Secretaria
Nacional de Políticas Penais. Em Minas, são 28%, e somente 15% têm acesso a
estudo dentro das prisões. Não há um dado exato sobre ressocialização. De
acordo com o Núcleo de Estudos da Violência da USP, 46% dos egressos retornam
para as prisões após reincidir em delitos – o que não quer dizer que os 54%
restantes conseguiram se restabelecer após o cárcere. Exemplos bem-sucedidos de
ressocialização, como Yorrana, são exceções que se enquadram num perfil claro:
costumam ser réus primários, ter sólida estrutura familiar ou contar com uma
mão amiga fora da prisão – no caso de Yorrana, a própria Angelita.
Ajudar
presos ou ex-presos, porém, dificilmente fará com que um funcionário do sistema
prisional fique popular entre os policiais penais. Em Minas, há um apelido
depreciativo para esse servidor ou servidora: “mãe de preso”. “Há rivalidade
entre a área de segurança e a área voltada para a ressocialização”, afirma
Angelita, que já chegou a ser denunciada por policiais penais. O motivo: ela
entrou com um pedido judicial requerendo que um egresso, cadeirante, fosse
levado de volta à casa do pai, que aceitou acolhê-lo no Espírito Santo. Ao fim
do processo, ela foi inocentada.
Ela
trabalha no presídio de Machado, no sul de Minas. Antes de passar por uma
intervenção judicial no ano passado, a unidade operava com o dobro de sua
lotação, que é de 134 vagas. Ela lembra que, pela LEP, todo preso tem de
receber atenção de assistentes sociais, mas o presídio não conta com esses
profissionais, que têm entre suas atribuições resgatar laços dos detentos com
seus familiares. “Quanto maior a rede de apoio do interno, melhor será sua vida
pós-cárcere e maior a chance dele não reincidir”, explica Renata. Os que
cumprem pena longe de sua terra sofrem também com a falta de notícias da
família e raramente recebem visitas.
A
consequência da falta de verbas e funcionários é o descumprimento da lei: “Nada
voltado para a ressocialização é feito aqui. É triste. A nossa sensação é de
derrota”, lamenta Renata.
Entre
os funcionários de segurança, impera a ignorância sobre o significado da
ressocialização. “Muitos acham que é dar ao preso tudo o que ele quer. Não é: é
um direito”, desabafa. Quem, como ela, busca um olhar mais humanizado, recebe
de volta a animosidade de muitos policiais penais. De abril a dezembro de 2022,
Renata esteve afastada de sua função por motivos psiquiátricos, e entende que
as situações de estresse no trabalho foram determinantes para seu adoecimento.
Em sua avaliação, os carcereiros não conseguem entender que o que segura a
cadeia, ao contrário do que muita gente pensa, não é a força bruta. “Por que os
presos não fazem rebeliões sempre? Porque têm coisas a perder: escola,
atendimento de saúde, psicólogo. A ressocialização é uma medida de segurança”.
Interessado
em alterar essa realidade, ele teve uma ideia: abrir uma oficina de marcenaria
e serralheria que, a um só tempo, auxiliaria a prefeitura construindo placas de
trânsito e consertando carteiras escolares e capacitaria os presos para exercer
um ofício quando saíssem da prisão. Kalil escreveu o projeto, a prefeitura
comprou a ideia, uma empresa entrou na parceria e um deputado se dispôs a
destinar uma emenda parlamentar para a compra de material e maquinário. Faltava
a aprovação da direção do presídio. Os policiais penais até elogiaram a
iniciativa, mas, na hora de implementá-la, desconversavam, adiando a decisão
para uma reunião futura.
Certo
dia, depois de muitos adiamentos e desculpas, o assistente social foi informado
de que, “por questão de segurança”, o projeto fora vetado pela direção do
presídio. “Entendi que não conseguiria fazer nada ali dentro, porque projetos
como esse não são para dar certo”, diz. Para compreender o porquê disso,
ingressou no mestrado em Segurança Pública e Cidadania na Universidade do Estado
de Minas Gerais. E a impressão empírica sobre a lógica policialesca dominante
nos presídios se confirmou. “A ideia punitiva, que ignora quase completamente a
perspectiva da ressocialização, é institucionalizada. Está além de qualquer
servidor específico”, afirma.
Outro
flagrante desrespeito à LEP é a prisão de pessoas em locais distantes de seu
núcleo familiar. Kalil estima que, no presídio em que trabalha, metade dos
presos são de outras cidades – alguns, inclusive, de outros estados. “O
critério de manter a pessoa perto da família não é levado em conta”, diz. Ele
critica também a falta de acompanhamento sobre a ressocialização: “O Estado não
tem nenhum parâmetro para determinar se alguém se ressocializou ou não”.
Sobre
a falta de psicólogos, assistentes sociais e pedagogos, a Sejusp informou que o
último concurso para essas áreas ocorreu em 2013, e que “não há previsão para
novo certame para estes cargos”. Já a área de segurança está com um concurso em
andamento, “podendo ser nomeados mais de 3 mil novos policiais penais”.
A
secretaria destacou ainda a atuação do Programa de Inclusão Social de Egressos
do Sistema Prisional (PrEsp), que no ano de 2022 auxiliou 4919 pessoas
egressas, prestando atendimentos psicossociais e encaminhando-as para o mercado
de trabalho. A população carcerária de Minas é de 60 mil pessoas.
O
PrEsp, com efeito, foi elogiado por Kalil, Angelita e outros profissionais
entrevistados pela Pública, que lamentaram, porém, sua pouca abrangência. Dos
854 municípios mineiros, o programa está presente em 15 cidades, sendo
responsável, assim, por atender os egressos oriundos das 172 unidades prisionais
do Estado.
O
PrEsp trabalha com a adesão voluntária, isto é, os egressos não são
encaminhados ao programa após o cumprimento das penas. Cabe a eles a iniciativa
de procurar uma das sedes do projeto.
Jéssica Borges, 32, lidera o PrEsp de BH, que conta com uma equipe de oito funcionários. “O que a gente faz é tentar que todas as pessoas egressas do sistema prisional consigam chegar ao programa. Mas a gente tem limite na nossa mobilização, no nosso alcance”, reconhece.
(Jornal
do Brasil - Leandro Aguiar)
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