Foi então que ela recorreu a um dos seus acessórios favoritos na infância: o matka – um pote de barro composto por dois tipos diferentes de argila e projetado para funcionar como bebedouro em casa.
“Tenho dentes sensíveis, então beber água
refrigerada é um choque para o meu sistema; o matka mantém a água fria o
suficiente para que bebê-la seja reconfortante”, diz ela, lembrando como um
pano de musselina molhado em cima do pote ajudou a diminuir ainda mais a
temperatura da água.
"Lembrei como essa água naturalmente gelada
era agradável nos verões quentes de Mumbai quando eu era criança, então, quando
o clima de Bengaluru começou a se comportar como o de Mumbai, decidi comprar um
pote semelhante."
A matka tem raízes antigas. Quando a água enche o
pote de barro, ela penetra em todos os poros e fendas. À medida que a água
presa dentro desses poros evapora, o processo retira lentamente o calor latente
da água interna. O pote esfria depois de perder o calor por evaporação e assim
a água restante dentro dela também esfria.
Durante séculos, portanto, as zonas rurais da Índia recorreram a potes de barro para as suas necessidades de arrefecimento – com os primeiros registos conhecidos a remontarem à civilização Harappa, há mais de 3.000 anos. No Brasil, os filtros de barro são uma tradição nas cozinhas, sendo usados até hoje para estocar água limpa e fresca.
Como alguém que cozinha muito e autora do livro Everyday Superfoods (“Superalimentos no dia a dia”, em tradução livre) Iyer diz que quase não há espaço em sua geladeira para resfriar várias garrafas de água, então sua matka acaba economizando um espaço precioso também.
Mas nos últimos anos, à medida que a Índia enfrenta
um calor extremo, a necessidade de frio se torna mais urgente. As ondas de
calor na Índia neste verão foram implacáveis, com uma estação meteorológica em
Delhi registrando temperaturas de até 52,3°C, o que pode ser um recorde, se
confirmada. De 2019 a 2023, a necessidade de ar condicionado em dias muito
quentes fez com que a demanda média de energia do país aumentasse 28%.
Com soluções de refrigeração agora vitais para a
sobrevivência, a antiga aplicação do barro está encontrando um novo uso muito
além das cozinhas domésticas.
Vida nova para uma tecnologia antiga
Terracota significa "terra cozida" em
italiano e teve destaque no mundo antigo, desde a cerâmica chinesa e grega até
a arte egípcia. Em português, é o nome dado à argila cozida no forno. Em 2014,
Monish Siripurapu, fundador e principal arquiteto da CoolAnt, parte do Ant
Studios perto de Nova Delhi, se viu recorrendo a esse material antigo com novos
olhos.
Um de seus clientes, um fabricante de eletrônicos,
teve um problema. Um gerador a diesel nas suas instalações expelia tanto ar
quente no espaço entre dois edifícios que o calor era insuportável para os
funcionários, causando dores de cabeça e náuseas. Siripurapu queria ver se a
terracota, combinada com novas técnicas, poderia ajudar: “Mantendo a natureza
como foco central em todo o meu trabalho, quis explorar tecnologias
emergentes”.
A ideia do matka passou pela cabeça de Siripurapu.
"A água no pote de barro é naturalmente fria porque, quando evapora, suga
o calor do pote. Mas e se eu invertesse esse processo? Me ocorreu que
poderíamos resfriar o ar ao redor do barro da mesma maneira", ele diz. No
projeto do Siripurapu, a água reciclada é bombeada sobre a terracota. À medida
que a água evapora de dentro dos poros do barro, ela esfria o ar ao seu redor.
Chamado de Beehive, entre 800 e 900 cones de barro
foram feitos à mão e organizados pela CoolAnt em um design de favos de mel,
montado em torno de uma estrutura de aço inoxidável. “Empilhar os cones como
uma colmeia melhora a área de superfície necessária para um resfriamento
eficaz”, diz Siripurapu.
Desde a sua primeira instalação em colmeias, a
empresa criou 35 torres de resfriamento em escolas, espaços públicos,
aeroportos e edifícios comerciais em todo o país, de Pune a Jaipur. Além do
desenho da colmeia, eles também experimentaram designs que empilham o barro em
diferentes formatos, e até mesmo um que não utiliza água.
Os pesquisadores também fizeram experiências com
protótipos de resfriamento de barro. Estudantes de engenharia mecânica de
Maharashtra, na Índia, construíram um ar condicionado de barro, que usava um
ventilador para sugar o ar e expulsá-lo sobre a argila molhada. Isso resultou
em uma queda de 1,5°C na temperatura ambiente, relataram.
As empresas de arquitetura na Índia afirmam que as
suas instalações em barro produziram quedas de temperatura muito mais
significativas – acima dos 6ºC, e podem arrefecer espaços exteriores e
edifícios inteiros de forma mais natural.
Por meio de vídeos enviados por clientes e visitas
ao local, a CoolAnt afirma ter registrado uma queda de até 15°C, usando designs
como o Beehive. “Foi muito melhor do que esperávamos”, diz Siripurapu. No
entanto, essa queda na temperatura depende das temperaturas do bulbo úmido de
uma área (uma medida do calor e da umidade na atmosfera).
Se já estiver muito úmido, não pode haver uma queda
tão acentuada, porque o potencial de evaporação é menor, observa Siripurapu.
(Pense no céu sobre uma cidade como uma esponja molhada – se já houver água
demais, não é possível absorver mais água.) E, no entanto, mesmo uma queda de
alguns graus na temperatura pode fazer uma diferença crucial.
Edifícios que respiram
O Ant Studio também está longe de ser a única
empresa de arquitetura que utiliza o barro como solução de resfriamento.
"Nos últimos 100 anos, as tecnologias modernas
revolucionaram o nosso arrefecimento do ar. No entanto, tiveram um impacto
negativo no nosso ambiente", afirma Avinash Ankalge, arquiteto e um dos
co-fundadores do A Threshold, um escritório de arquitetura com sede em
Bengaluru que tem experimentando argila reciclada para construir sistemas de
refrigeração passivos para edifícios.
“Estamos recorrendo ao barro em muitos dos nossos
projetos recentes”, diz Ankalge. "Nós usamos isso de muitas
maneiras." Por exemplo, telhas recuperadas de uma fábrica próxima foram
usadas para criar telas de terracota. Os designs são inspirados na natureza e
envolvem os edifícios como uma pele protetora, diz ele.
Em um edifício comercial no sul de Bengaluru, um
dos projetos do A Threshold para espécie de treliça de barro foi instalado no
lado sul do edifício, para proteger do sol.
“Entre o meio dia e as três da tarde, quando o sol
está mais intenso, a sombra do ladrilho superior é projetada sobre o fundo,
garantindo que o brilho não penetre no edifício”, diz Ankalge. "Chamamos
isso de princípio de sombreamento mútuo. Isso foi usado em muitas cidades
indianas mais antigas no Rajastão - especialmente em Jaipur e Jaisalmer. Foi
usado em casas, palácios, em todos os lugares - há quase 500 anos."
Em projetos modernos que utilizam este princípio, o
edifício principal começa de 91 a 121 cm depois da tela de barro. Os ladrilhos
estão dispostos como o bico aberto de um pássaro, o de cima projetando sombras
profundas. Um sistema de sprinklers – como aqueles que são ativados em prédios
em casos de incêndio, para jorrar água - suspenso, programado para funcionar
nos horários mais quentes do dia, garante o resfriamento evaporativo.
"A terracota, sendo um material natural, é
sempre dominada pela vegetação, o que tem um efeito refrescante adicional. Ela
sustenta a vida e uma biodiversidade saudável. Ainda há muita luz fluindo
dentro de casa, mas não calor", diz Ankalge. "Estamos criando um
microclima dentro de uma casa – e moderando o calor extremo lá fora. É também
uma tela acústica, porque corta o ruído externo e proporciona privacidade aos
ocupantes.".
Em uma fazenda a 40 km de Bengaluru, o escritório A
Threshold fez experiências com tijolos de barro como alternativa aos tijolos
normais para resfriamento. São mais baratos e melhores para o meio ambiente,
diz Ankalge. Os tijolos de terracota assam entre 600 e 700°C, metade das
temperaturas necessárias para assar tijolos normais, e observaram uma queda de
temperatura de 5-8°C dentro dos edifícios resultantes.
Insights artesanais
Na sua missão de refrescar os espaços, os
escritórios de arquitetura também contam com a ajuda dos artesãos de argila
indígenas da Índia.
Um deles é Dolan Kundu Mondal, que mora em Calcutá
e cuja obra de arte em argila ganhou um prêmio nacional. Quando criança, Mondal
passava os dias coletando argila na margem do rio para moldar pequenas bonecas,
animais, pássaros e cabanas. A casa dela também foi construída com barro, mas
sem nenhuma impermeabilização, então a cada temporal, a casa ficava
completamente destruída. “Minha avó, minha irmã mais velha e eu cortávamos
pedaços de palha para misturar no barro e reconstruíamos a casa para morarmos.”
Mondal diz que sempre sonhou em esculpir algo novo
com argila e recentemente recebeu uma oferta para trabalhar em uma tela de
terracota para uma casa. “Desde muito cedo sempre vivi no abraço do barro e do
barro no meu abraço”, diz Mondal.
Soumen Maity, vice-presidente de alternativas de
desenvolvimento, um think tank com sede em Gurugram, no norte da Índia, diz que
é animador que as construções em barro proporcionem meios de subsistência aos
artesãos rurais – mas existem algumas desvantagens.
As estruturas adicionais de argila nos edifícios –
como telas e painéis – podem ocupar muito espaço em cidades já apertadas. Além
disso, a eficiência do resfriamento pode diminuir com o tempo: os microporos do
barro podem ficar obstruídos por depósitos minerais, tornando essenciais a
limpeza e a manutenção meticulosa.
Se a argila for usada mais amplamente como material
de construção e fabricada em escala nas fábricas, então também poderá haver
outro custo oculto: mais energia necessária para o transporte, aponta Niyati
Gupta, associado sênior em Nova Delhi do programa climático do think tank
Instituto de Recursos Mundiais.
“As telhas de barro industriais tendem a ser mais
pesadas do que os tijolos de argila convencionais que os artesãos fabricam à
mão, e consumirão solo fértil [que de outra forma poderia ser usado para a
agricultura]”, diz Gupta. Ladrilhos de barro fabricados localmente e cozidos no
local oferecem uma solução mais ecológica, mas à medida que as necessidades de
resfriamento aumentam, a produção em escala industrial pode ser inevitável.
Para quem não tem planos de construção, armazenar
água em uma simples matka continua a ser algo básico no verão da Índia – uma
homenagem ao antigo costume.
Nandita Iyer menciona em seu livro Everyday
Superfoods como potes de barro são usados na culinária e que
garrafas de barro de um litro com tampa agora também são usadas para armazenar
água.
Para manter as garrafas de água de barro em boas
condições, Iyer aconselha: “Esfregue bem [os utensílios de barro] a cada dois
ou três dias com uma escova de coco e coloque-os ao ar livre, ao sol, para
evitar que acumulem musgo”.
(Fonte: BBC)
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