A
conclusão está na 2ª edição do relatório As câmeras corporais na
Polícia Militar do Estado de São Paulo: mudanças na política e impacto nas
mortes de adolescentes, produzido pelo Fundo das Nações Unidas para a
Infância (UNICEF) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), lançado
nesta quinta-feira (3).
Foram
77 crianças e adolescentes entre 10 e 19 anos mortos por policiais militares em
serviço no estado em 2024, enquanto no ano de 2022, foram registradas 35
vítimas. O cenário é oposto ao observado na primeira edição do estudo, lançado
em 2023, que indicou redução de 66,7% das mortes, nesse mesmo recorte, entre
2019 e 2022.
Na
ocasião, a queda foi atribuída ao uso de câmeras corporais, com início em 2020,
e à adoção de políticas para controle do uso da força policial. Entre 2019 e
2022, houve também redução de 62,7% nas mortes gerais (todas as idades) por
intervenção de PMs em serviço e queda de 57% nas mortes desses agentes.
O
novo relatório revelou, no entanto, que mudanças nas políticas de controle da
força nos últimos anos resultaram em aumento de 153,5% nas mortes gerais em
decorrência de intervenção policial - PM em serviço - entre 2022 e 2024. O
estudo detalha o aumento das mortes provocadas pela polícia nos batalhões que
utilizam câmeras corporais (175,4%) e nos que não utilizam (129,5%).
Das
vítimas de mortes violentas na faixa etária de 0 19 anos, 34% foram
executadas por policiais militares em serviço em 2024, ou seja, uma em cada
três mortes violentas intencionais nessa faixa etária ocorreu em intervenções
policiais. Em 2022, esse percentual era de 24%. Entre adultos, a proporção
passou de 9%, em 2022, para 18%, no último ano.
Mudanças
nas políticas
"As
recentes mudanças nas políticas de controle de uso de força resultaram no
crescimento da letalidade policial tanto nos batalhões que utilizam as câmeras
como nos demais, na evidência de que a tecnologia é importante, mas precisa
estar associada a outros mecanismos de controle", afirmou Samira Bueno,
diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Entre
as mudanças citadas no relatório, estão a redução de 46% no número de Conselhos
de Disciplina, responsáveis por julgar praças que cometeram infrações ou
crimes; a queda de 12,1% no número de processos administrativos disciplinares e
de 5,6% nas sindicâncias.
A
quantidade de Inquéritos Policiais Militares (IPMs) registrada em 2024 foi a
menor dos últimos oito anos, com 2.222 procedimentos instaurados.
Em
relação ao funcionamento da Corregedoria da Polícia Militar, desde junho de
2024, o órgão passou a depender de autorização do subcomandante-geral da PM
para afastar policiais envolvidos em casos de atentado às instituições, ao
Estado ou aos direitos humanos, o que, segundo as entidades autoras do estudo,
pode impactar a agilidade das decisões.
A
Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) propôs ainda alterações
no uso das câmeras corporais. Edital lançado no ano passado previa que a
gravação deixasse de ser contínua, passando a depender do acionamento pelo
policial ou por equipe remota. Segundo o relatório, as mudanças podem
comprometer a transparência e a efetividade do monitoramento das abordagens
policiais.
"As
interações entre policiais militares e cidadãos ficaram mais violentas, por
isso gera grande preocupação a substituição das câmeras por uma nova tecnologia
que não possui gravação ininterrupta. É urgente que tenhamos uma política de
controle de uso da força robusta, com supervisão dos agentes", afirmou
Samira.
Racismo
O
relatório destaca que o crescimento da letalidade policial entre 2022 e 2024
afetou de forma desproporcional a população negra, inclusive entre crianças e
adolescentes. Enquanto a taxa de mortalidade de pessoas brancas cresceu 122,8%
em São Paulo no período, a de pessoas negras cresceu 157,2%.
No
ano passado, a taxa de letalidade da PM em serviço entre crianças e
adolescentes (10 a 19 anos) brancos foi de 0,33 para cada 100 mil, enquanto
para negros a taxa chegou a 1,22. Ou seja, crianças e adolescentes negros são
3,7 vezes mais vítimas em intervenções letais da PM no estado, concluíram as
entidades.
Para
Adriana Alvarenga, chefe do escritório do Unicef em São Paulo, o resultado é um
indicador do racismo que perpassa a sociedade como um todo. Ela avalia que,
para combater a ocorrência de racismo nas abordagens, é importante trabalhar
nas atividades de formação dos policiais sobre a existência de um ciclo
contínuo de violência racial na vida da população negra.
"Quando
a gente analisa os dados sobre infância e adolescência, em todos os
indicadores, crianças e adolescentes negros vão aparecer em situação de maior
vulnerabilidade. Então são os mais pobres, são os que estão mais fora da
escola, são os que têm menos acesso a serviços de saúde e isso se reflete
também na polícia: são os que mais morrem pela força policial."
Epidemia
de violência
O
advogado Ariel de Castro Alves, especialista em segurança pública e direitos
humanos e presidente de honra do Grupo Tortura Nunca Mais São Paulo, avalia que
há "uma epidemia de violência policial atualmente no estado, diante da
falta de ação dos órgãos de controle das atividades policiais, como as
corregedorias e o Ministério Público".
Os
casos que vêm sendo divulgados na imprensa e nas redes sociais, segundo o
advogado, denotam que existe uma escalada desenfreada de violência policial em
São Paulo e evidenciam que "os policiais militares receberam uma
verdadeira ‘licença’ para PMs cometerem abusos, torturas e assassinatos".
No
último dia 15 deste mês, um homem foi agredido e morto por dois policiais
militares durante abordagem no município de Barueri (SP). O caso foi registrado
como morte decorrente de intervenção policial e legítima defesa. Gravada por
motoristas que passavam pelo local, as imagens da ocorrência divulgadas pela
imprensa mostraram um dos policiais segurando o rapaz enquanto o outro dava
socos nas costas, no meio da avenida. Na calçada, um dos policiais atirou no
rapaz.
Na
semana anterior, a imprensa divulgou imagens de outra abordagem, desta vez das
câmeras corporais dos agentes, que também resultou em morte da pessoa abordada.
Na ocasião, um homem machucava um cachorro em um apartamento. No vídeo, é
possível ouvir um policial pedindo que ele soltasse uma "faca".
Minutos depois, diversos tiros são disparados. Os policiais pedem novamente que
ele solte a faca, e mais tiros são disparados na sequência.
Abuso
policial
Alves
lembrou ainda das ações policiais na Baixada Santista, durante as Operações
Escudo e Verão, em 2023 e 2024. Parlamentares e sociedade civil, incluindo
familiares das vítimas, chegaram a denunciar violência e execuções sumárias
durante as ações.
"O
governador Tarcísio de Freitas desdenhou de denúncias de violência policial
feitas por entidades de direitos humanos para a ONU, dizendo ‘pode ir na ONU,
na Liga da Justiça, no raio que o parta, que não tô nem aí’. Essas declarações
acabam configurando uma verdadeira ‘licença’ para abusos e violência
policial", avaliou o advogado.
Após
o caso do estudante de medicina morto também por policiais militares no ano
passado, Alves disse que o governador, antes contrário às câmeras nos uniformes
dos PMs, ensaiou um recuo, mas que teria sido tarde demais para conter a
escalada de violência policial.
"Todos
esses casos e os números evidenciam que os fatos de violência policial não são
isolados e, sim, se tornaram generalizados" , afirmou Alves.
O
advogado destacou que a Polícia Militar de São Paulo mantém, desde a ditadura
militar, uma formação militarista, que prepara os agentes, segundo ele, para
uma guerra onde os inimigos são jovens pobres e negros.
"Polícia
eficiente não é a que mata e tortura, mas sim a que evita e esclarece crimes.
E, infelizmente, nossas polícias não são eficientes na prevenção e no
esclarecimento de crimes."
Recomendações
De
acordo com análise do Unicef e do FBSP, nenhuma política pública sozinha pode
solucionar o problema multifatorial da violência, inclusive da violência fatal
e letalidade policial. O relatório apresenta recomendações para o poder público
sobre implementação de políticas de segurança baseadas em evidências
científicas.
A
implementação das câmeras corporais, apontam as entidades, deve vir acompanhada
de apoio político e fortalecimento de um programa de controle do uso da força.
A recomendação é que se priorize a gravação ininterrupta, que comprovadamente
colabora para que mais imagens sejam registradas e contribui para mais
transparência.
As
imagens produzidas devem ainda ser compartilhadas com todos os atores do
sistema de justiça sempre que houver necessidade de produção de provas. O poder
público deveria ainda permitir que atores externos civis apoiem o gerenciamento
das imagens captadas, não apenas a própria Polícia Militar.
As
entidades recomendam uma auditoria rotineira das gravações produzidas pelas
câmeras corporais, que deve acontecer por parte da polícia e por atores
externos.
SSP
A
Secretaria da Segurança Pública disse, em nota, que a atual gestão ampliou em
18,5% o número de câmeras operacionais e que os novos dispositivos, atualmente
em fase de testes, contam com novas funcionalidades, como leitura de placas,
comunicação bilateral e acionamento remoto, que será ativado assim que a equipe
for despachada para uma ocorrência.
"Além
disso, todo policial em patrulhamento deverá acionar a câmera sempre que se
deparar com uma situação de interesse da segurança pública", informou a
pasta.
Segundo
a SSP, as forças de segurança do estado não compactuam com desvios de conduta
ou excessos por parte seus agentes, punindo com absoluto rigor todas as
ocorrências dessa natureza. Desde 2023, mais de 550 policiais foram presos e
364 demitidos ou expulsos, informou a secretaria, acrescentando que as
instituições policiais mantêm programas de treinamento e formação profissional,
além de comissões especializadas na mitigação de riscos.
"Por determinação da SSP, todos os casos de MDIP [morte em decorrência de intervenção policial] são investigados pelas polícias Civil e Militar, com acompanhamento das corregedorias, do Ministério Público e do Judiciário", diz a nota.
(JB/Ag. Brasil)
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