A CIJ é um órgão das Nações Unidas que julga países, e não pessoas. O
processo ao qual o Brasil deverá aderir já está em curso desde dezembro de
2023. O julgamento ainda está em andamento e ainda não há prazo para a sua
conclusão. Apesar de a Corte já ter emitido decisões preliminares contra as
ações israelenses, essas medidas não foram cumpridas. A adesão de mais países à
ação aumenta a pressão internacional contra as ações de Israel.
Segundo essa fonte brasileira, o Brasil vai ingressar no processo
apresentando sua interpretação sobre como e se a Convenção das Nações Unidas
sobre Direitos Humanos está sendo ou não cumprida no conflito.
A informação havia sido inicialmente divulgada pelo jornal Folha de S.
Paulo e foi confirmada pela reportagem.
Em janeiro de 2024, o Brasil já havia anunciado que apoiava a ação
movida contra Israel, mas o desejo de aderir formalmente à ação foi comunicado
publicamente pelo ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, em entrevista
à rede de TV Al Jazeera, durante a cúpula dos Brics, no início do mês, no Rio.
A tendência é de que a posição do Brasil siga uma linha parecida com a
da África do Sul e acuse Israel de violar direitos humanos do povo palestino.
O processo pede o fim das ações classificadas pela África do Sul como
genocidas contra o povo palestino e o julgamento de pessoas e instituições que
praticaram ou contribuíram para esses supostos crimes. O eventual julgamento
das pessoas envolvidas por supostos crimes de genocídio é feito pelo Tribunal
Penal Internacional (TPI), que funciona em Haia, na Holanda, e do qual Israel
não é signatário.
A adesão do Brasil ao processo acontece em um contexto de turbulência
nas relações internacionais do país.
Na semana passada, os Estados Unidos, principal aliado militar
de Israel, anunciaram tarifas de 50% a produtos
brasileiros citando, entre os motivos para a decisão, o processo judicial que
tramita contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no Supremo Tribunal Federal
(STF).
Nos últimos anos, Bolsonaro
se apresentou como apoiador do Estado de Israel.
A ação contra Israel foi inicialmente movida pela África do Sul em
dezembro de 2023, quando as ações militares em Gaza se intensificaram após os
atentados promovidos pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, quando militantes do
grupo invadiram comunidades israelenses e mataram ao menos 1,1 mil pessoas.
Em resposta à ação do Hamas, Israel deu início a uma ofensiva na Faixa
de Gaza que, segundo a ONU, havia matado pelo menos 45 mil pessoas até dezembro
de 2024. Estudos mais recentes estimam entre 50 mil e 75 mil o número de
palestinos mortos pelas ações militares israelenses em Gaza.
A adesão do Brasil à ação vai na linha das recentes manifestações do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre o assunto.
"Não podemos permanecer indiferentes ao genocídio praticado por
Israel em Gaza e à matança indiscriminada de civis inocentes e o uso da fome
como arma de guerra", disse Lula durante discurso na Cúpula dos Brics, no
início do mês, no Rio de Janeiro.
As declarações Lula sobre a crise humanitária em Gaza fizeram
o governo israelense declarar que Lula é persona non grata em Israel.
Na linguagem diplomática, o termo é uma indicação de desagravo e
significa que o presidente Lula é uma pessoa não desejada no território
israelense.
Além do Brasil, países como a Espanha, Irlanda, Cuba, Bolívia e Turquia
também já aderiram à ação contra Israel.
A BBC News Brasil pediu um posicionamento sobre o assunto à Embaixada de
Israel no Brasil, mas até a publicação desta reportagem nenhuma resposta havia
sido enviada. O Itamaraty também não respondeu às perguntas enviadas pela
reportagem.
A Confederação Israelita do Brasil (Conib), entidade que atua na defesa
da comunidade judaica no país, condenou a decisão do governo brasileiro.
"A Conib condena nova sinalização do governo brasileiro de que
pretende apoiar formalmente a África do Sul na falsa alegação de genocídio em
Gaza [...] Infelizmente, o governo Lula abandonou a tradição brasileira de
amizade e parceria com Israel", diz um trecho da nota divulgada pela
instituição.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que a decisão do
Brasil pode gerar reações positivas de parte da comunidade internacional, mas
também deverá gerar reações negativas tanto fora quanto dentro do país.
Por que o Brasil aderiu?
Em entrevista à rede de TV Al Jazeera, do Catar, Mauro Vieira explicou a
decisão do governo.
"Nós fizemos grandes esforços para tentar chamar para negociações e
os acontecimentos dessa guerra nos fizeram tomar essa decisão de nos juntar à
África do Sul nesse caso no CIJ", disse Vieira.
A adesão do Brasil à ação era um movimento defendido por alas do governo
brasileiro desde 2023.
Um dos principais defensores da ideia é o assessor para Assuntos
Internacionais da Presidência da República, embaixador Celso Amorim.
Além dele, outros membros do entorno do presidente também defendiam a
medida apesar da expectativa de uma reação negativa tanto internacional quanto
doméstica.
Nos últimos anos, lideranças do segmento evangélico passaram a se
aproximar do governo de Israel e a rechaçar as posições do governo Lula que
fossem críticas às ações israelenses em Gaza.
Essa proximidade se deu, em parte, por conta da crença entre certos
grupos evangélicos de que a Bíblia determina que os cristãos defendam a
existência do Estado de Israel.
Apesar desse cálculo, o presidente Lula já vinha se manifestando
diversas vezes sobre o conflito em Gaza e usando o termo genocídio para
classificar o resultado das ações militares na região.
O tema também foi abordado em profundidade nas declarações finais das
últimas duas cúpulas dos Brics, grupo de 11 economias emergentes do qual o
Brasil faz parte.
Na mais recente cúpula do grupo, no início de julho, no Rio de Janeiro,
a declaração final criticou as ações israelenses em Gaza e pediu a retirada das
tropas do país da região.
"Exortamos as partes a se engajarem, de boa-fé, em novas
negociações com vistas à obtenção de um cessar-fogo imediato, permanente e
incondicional; à retirada completa das forças israelenses da Faixa de Gaza e de
todas as demais partes do Território Palestino Ocupado", diz um trecho da
declaração.
Para a professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de
São Paulo (Unifesp) Cristina Pecequillo, a decisão do governo brasileiro
estaria em linha com a tradição diplomática do Brasil de condenar abusos de
direitos humanos.
Apesar disso, ela avalia que o governo poderá enfrentar reações
negativas tanto de fora quanto de dentro do Brasil.
"Todos aqueles que apoiam Israel incondicionalmente, incluindo os
EUA, deverão fazer uma avaliação negativa da posição brasileira. São movimentos
geopolíticos esperados. Isso já vinha ocorrendo desde que o Brasil se
manifestou, pela primeira vez, no sentido de que estaria havendo um genocídio.
Houve pressão dos Estados Unidos e de Israel contra o Brasil", diz a professora
à BBC News Brasil.
Para ela, no plano doméstico, também deverá haver reações.
"Há risco de desgaste interno à medida em que a questão de Israel é
bastante instrumentalizada pela oposição junto ao eleitorado evangélico mais
radical", diz.
O professor livre-docente de Direito Internacional da Universidade de
São Paulo (USP) João Amorim pontua aspectos positivos da decisão brasileira.
"Essa medida coloca o Brasil junto à esmagadora maioria da opinião
pública internacional e fortalece a posição do país na defesa da proteção de
civis", argumenta.
Por outro lado, ele também considera que há riscos diplomáticos
envolvidos.
"Os efeitos negativos serão, provavelmente, o aprofundamento do
estremecimento das relações entre Brasil e Israel com a classificação dessa atitude
como um ato antissemita. Também há o risco de uma reação dos Estados
Unidos", avalia o professor.
O que diz a ação?
Na ação movida pela África do Sul, o país disse
que as ações de Israel "têm por objetivo provocar a destruição de uma
parte substancial do grupo nacional, racial e étnico palestino".
No documento de 84 páginas, o país africano argumenta que os supostos
atos genocidas de Israel incluem matar palestinos, causar graves danos mentais
e corporais e infligir deliberadamente condições destinadas a "provocar a
sua destruição física como grupo".
O documento também afirma que as declarações das autoridades israelenses
expressam intenções genocidas.
Por outro lado, o governo de Israel vem refutando as acusações feitas
pela África do Sul.
"Não, África do Sul. Não somos nós que estamos perpetrando
genocídio. É o Hamas. Ele (Hamas) mataria a todos nós se ele pudesse. Em
contraste, as FDI (Forças de Defesa de Israel) estão agindo tão moralmente
quanto possível", afirmou o primeiro-ministro israelense Benjamin
Netanyahu, em dezembro de 2023.
O julgamento é polêmico, entre diversos fatores, por conta da
dificuldade de se classificar o crime de genocídio.
Outro motivo que vem gerando polêmica é o fato de o crime ter sido
reconhecido internacionalmente pela primeira vez em 1946, um ano após o fim da
Segunda Guerra Mundial, em meio ao choque causado pelo holocausto de judeus
orquestrado pela Alemanha nazista. Estima-se que pelo menos seis milhões de
judeus tenham morrido durante o conflito.
Nos termos da Convenção das Nações Unidas sobre Genocídio de 1948, o
genocídio é um ato ou uma série de atos praticados com a intenção de destruir
total ou parcialmente um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.
Esse objetivo pode ser atingido a partir de práticas como: matar membros
do grupo; causar danos corporais ou mentais graves a membros do grupo; infligir
deliberadamente condições de vida calculadas para trazer destruição física;
impor medidas destinadas a prevenir nascimentos; e transferir de forma forçada
crianças do grupo para outro grupo.
Em janeiro de 2024, a CIJ emitiu uma ordem para que Israel suspendesse
"atos de genocídio" em Gaza, embora não tenha determinado um
cessar-fogo imediato. Israel não respondeu às determinações da Corte.
Além da ação movida pela África do Sul e com apoio de países como o
Brasil, pareceres elaborados pela relatora especial da ONU para os territórios
palestinos ocupados, Francesa Albanese, também classificaram as ações de Israel
como genocidas.
Em 2024, ela divulgou um relatório intitulado "Anatomia de um
genocídio", criticando as ações de Israel.
"Ao analisar os padrões de violência e as políticas israelenses no
seu ataque a Gaza, o presente relatório conclui que existem motivos razoáveis
para acreditar que o limiar indicando que Israel cometeu genocídio foi
cumprido", diz um trecho do documento.
Em resposta, a missão diplomática de Israel em Genebra, na Suíça, disse
que o relatório tem motivações políticas.
"Fica claro no relatório que a relatora especial começou com a
conclusão de que Israel está a cometendo genocídio e depois tentou provar as
suas opiniões distorcidas e politicamente motivadas com argumentos e
justificações fracos."
Albanese também é a autora de um relatório divulgado em julho para o
Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em que ela aponta que empresas
da América Latina, entre elas a Petrobras, estariam contribuindo para o esforço
de guerra israelense ao vender petróleo para o país.
"Enquanto a vida na Faixa de Gaza está sendo destruída e a
Cisjordânia é cada vez mais atacada, este relatório demonstra por que o
genocídio de Israel prossegue: porque é lucrativo para muitas pessoas",
afirma o relatório.
A Petrobras, no entanto, disse que não vendeu "petróleo bruto nem
óleo combustível para clientes israelenses durante o período mencionado" e
que não é possível concluir que a Petrobras tenha exportado petróleo para
Israel pelo simples fato de que a companhia detém grande participação nos campos
petrolíferos brasileiros.
Para a ex-juíza do Tribunal Penal Internacional (TPI), professora e
especialista em direito humanitário internacional Sylvia Steiner, ações como a
movida contra Israel têm mostrado uma deterioração do respeito ao sistema de
proteção internacional aos direitos humanos.
"O que estamos vendo são países violando as determinações da Corte
e não serem punidos por isso. Isso enfraquece o direito internacional e faz com
que nós retrocedamos a um tempo de barbárie. É o que estamos vendo em Israel e
na Rússia, por exemplo", diz Steiner à BBC News Brasil.
Steiner faz menção a decisões da Corte Internacional de Justiça que
determinaram o fim das ações militares de Israel na Faixa de Gaza e da Rússia
na Ucrânia e que, até hoje, nunca foram cumpridas.
(Fonte: BBC)
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