Debêntures são títulos de dívida que empresas emitem para captar
dinheiro de investidores e, em troca, pagam juros e devolvem o principal no
vencimento. Ao menos cinco de cada 10 reais captados pelas empresas, por meio
de títulos com incentivos públicos, não foram usados para melhorias do setor,
mas para concentrar o controle do mercado.
“O incentivo virou motor de privatização”, resume a pesquisadora Livi
Gerbase, do Cictar. O relatório registra que, a partir da Lei 14.801, de 2024,
o benefício fiscal migrou do investidor para a empresa emissora, permitindo
deduzir juros de Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e Contribuição
Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).
A partir dessa alteração legal, a empresa que toma o dinheiro no mercado
pode descontar parte dos juros do imposto; isso vale para emissões até 2030 e
cobre gastos de até 5 anos atrás. Em outras palavras, se uma companhia emite um
título em 2025, paga R$ 100 milhões/ano de juros e tem lucro, ela pode usar uma
parte desses R$ 100 milhões para reduzir o IRPJ/CSLL a pagar.
O problema constatado pelo estudo O sequestro do financiamento do
saneamento básico no Brasil é que o dinheiro captado não está
sendo investido em melhorias no saneamento e abastecimento de água das cidades
brasileiras. “O que a gente está mostrando é que isso tem sido utilizado para
essas grandes empresas pagarem o valor das outorgas”, salienta Gerbase.
Enquanto isso, cada vez mais refém do mundo dos negócios, o país segue
distante da universalização prometida pelo Marco Legal do Saneamento
Básico, que completa 5 anos. Houve, em vez disso, retrocessos. O
estudo Avanços do Marco Legal do Saneamento Básico no Brasil de 2025,
divulgado em agosto, mostrou que o acesso à água passou de 83,6% da população,
em 2019, para 83,1%, em 2023 ─ uma queda de 0,5 ponto percentual. Já o
tratamento de esgoto passou de 46,3% para 51,8%.
A meta instituída pelo Marco Legal continua sendo 99% de água e 90% de
esgoto até 2033. “Não existe solução mágica”, diz Gerbase. “Saneamento precisa
de financiamento volumoso e de longo prazo — e bancos públicos como BNDES e
Caixa têm que voltar a puxar esse crédito.”
“No atual ritmo, só seria em 2070”, assinala a pesquisadora.
Para o dirigente Fernando Biron, do Sindae, trata-se de uma manobra com
objetivo de “socializar o risco e privatizar o lucro”. Ele afirma que “as
empresas pegam dinheiro público para comprar o que era público; quando a conta
chega, vai para o consumidor e para o trabalhador”.
Biron defende um fundo nacional de saneamento e a liderança dos bancos públicos
no crédito de longo prazo, e critica “PDVs [planos de demissão voluntária]
pressionados, enxugamento de quadro e burnout” como
efeitos recorrentes das privatizações.
“Se o governo quer universalizar, tem que blindar o incentivo contra uso
em outorgas”, reforça Livi Gerbase.
Caso BRK expõe limites do modelo
O caso BRK é o exemplo mais detalhado no estudo. Em 2020, a empresa
venceu a concessão da Região Metropolitana de Maceió com outorga de R$ 2
bilhões. Para isso, captou R$ 3,75 bilhões em debêntures, sendo R$ 1,95 bilhão
com incentivo fiscal. Segundo o relatório, uma parte relevante foi classificada
como blue bond no mercado, mas utilizada para
refinanciar a outorga e não para obras que beneficiem a população.
Blue
bond (em tradução, título azul) é um tipo de debênture rotulada para
financiar projetos ligados à água: tratamento de esgoto, redução de perdas na
rede, despoluição de rios, proteção de mananciais, costas e oceanos, etc. O
“azul” é só o rótulo temático: a empresa diz que o dinheiro será carimbado para
metas ambientais de água e se compromete a publicar relatórios de alocação e,
idealmente, de impacto.
Nos três primeiros anos de concessão, o Capex público identificado somou
R$ 409 milhões (2020–2023). A companhia alega ter R$ 904 milhões investidos
(2021–2025). Para cumprir o que foi acordado — R$ 2 bilhões em seis anos —
teria de aportar cerca de R$ 1,1 bilhão apenas em 2026. “É o caso-limite do
modelo: dívida alta, rolagem de passivos e juros comendo o caixa”, resume
Biron.
Capex é a sigla que define no mundo dos negócios aqueles investimentos
que permitem manter ou expandir a capacidade do serviço prestado no longo
prazo, como obras, máquinas, instalações e redes.
O peso do serviço da dívida, em contrapartida, aparece nas
demonstrações: em 2024, a BRK pagou R$ 1,139 bilhão em juros — 25% acima da
folha de pessoal — e superior aos gastos com investimentos e com imposto de
renda, com amortizações anuais relevantes ao menos até 2034.
Entre 2017 e 2024, a BRK emitiu R$ 12,2 bilhões em debêntures, das quais
R$ 2,4 bilhões incentivadas. O estudo registra que os principais investidores
são grandes fundos brasileiros e estrangeiros, e projeta milhões em pagamentos
de juros nos próximos anos.
“Parece que tarifas mais altas cobradas dos consumidores estão
alimentando esses pagamentos de juros”, diz o relatório.
Em paralelo, a tarifa média reportada pela BRK subiu 71,35% entre 2017 e
2024 (de R$ 3,70/m³ para R$ 6,34/m³), praticamente o dobro da inflação do
período, segundo a própria empresa.
E enquanto pesa no bolso dos consumidores, a empresa tira do bolso dos
trabalhadores, sempre que pode. “Para elevar o dividendo dos acionistas, a
empresa enxuga o máximo possível”, explica Biron, que completa: “de norte a sul
do país precarização e demissão é sinônimo justamente das privatizações”.
“Essas empresas não têm o compromisso social com seus trabalhadores. Elas têm
compromisso com o seu lucro”, resume o sindicalista.
Sanções e controle estrangeiro
O estudo da Cictar e do Sindae também reúne denúncias e sanções
registradas em outras regiões do país. Em Tocantins e em Blumenau (SC), foram
abertas comissões parlamentares de inquérito para apurar falhas no serviço,
como interrupções, qualidade da água e descumprimento de metas.
Em Blumenau, por exemplo, a prefeitura e a agência reguladora revisaram
mudanças no contrato e chegaram a revogar um deles; a concessionária tentou
derrubar a decisão na Justiça, mas o pedido de liminar foi negado. Além disso,
o material reúne autos de infração e multas ambientais em diferentes cidades
por problemas no tratamento de esgoto e lançamentos irregulares, que, somadas,
chegam à casa das dezenas de milhões de reais.
O
número de municípios atendidos por empresas privadas de saneamento cresceu 525%
nos últimos cinco anos. “O setor está cada vez mais nas mãos de grandes grupos
estrangeiros”, afirma Livi, citando o controle canadense da BRK e a presença de
fundos globais em outras companhias.
Na avaliação dela, saneamento combina uma demanda fixa com a
possibilidade de reajustes no valor do serviço, o que reduz risco e torna o
negócio atraente. “Sem uma espécie de golden share ou
salvaguardas, o país perde capacidade de orientar a expansão do saneamento
conforme o interesse público.”
BRK rebate estudo, que cobra blindagem dos incentivos
Procurada nos autos do estudo, a BRK nega as conclusões. Em texto
reproduzido no relatório, a empresa afirma que “os municípios atendidos pela
BRK estão entre os mais bem avaliados do país”, citando ranking Trata Brasil, e
diz que na RMM Maceió “já foram investidos mais de R$ 770 milhões”, com
“cronograma robusto de obras em andamento”. A companhia sustenta que as
debêntures são instrumento legítimo, previsto em lei e supervisionado pela CVM,
e atribui o pico de juros à alta da Selic.
O Brasil de Fato também entrou em contato com a BRK
com questionamentos sobre este tema, mas não obteve retorno até a publicação da
reportagem.
O relatório recomenda que o governo proíba o uso de debêntures
incentivadas para pagar ou refinanciar outorgas e que Caixa/FGTS e BNDES deixem
de sustentar conglomerados privados com instrumentos de mercado sem
adicionalidade, direcionando recursos diretamente para obras, com transparência
e controle social.
“Se nada mudar, universalização vira promessa adiada”, diz Biron. Livi
reforça: “É financiamento estável e de longo prazo — não marketing financeiro —
que tira milhões da vala da desigualdade.”
(Brasil de Fato)
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