Os personagens do Guia do Mochileiro das Galáxias (Ed. Arqueiro, 2021), de Douglas Adams (1952-2001), compreendem qualquer idioma graças ao pequeno (e, infelizmente, fictício) peixe Babel.
"Se você introduzir no ouvido um peixe Babel, poderá compreender imediatamente tudo o que for dito a você, em qualquer língua", escreveu Adams.
Agora, esse sonho da ficção científica está
chegando mais perto da realidade com os novos AirPods Pro 3 da Apple, que
prometem tradução ao vivo.
A empresa afirma que os usuários podem escutar
conversas em diversos idiomas estrangeiros e ouvir as palavras traduzidas no
ouvido, com a transcrição simultânea na tela do celular. Tudo sem a necessidade
de transplante de um peixe alienígena.
À primeira vista, esta função tem o potencial de
deflagrar uma nova onda de viagens mais tranquilas, alterando a
forma como visitamos restaurantes em outros países, fazemos amigos no exterior
ou pedimos orientações em uma cidade desconhecida.
Mas será que esta fluência instantânea traz custos
escondidos?
Tecnologia profunda, mas imperfeita
A reação dos especialistas foi de satisfação.
"Isso é profundo", definiu uma crítica no jornal The New York Times,
referindo-se à inovação da Apple como "um dos mais fortes exemplos de como
podemos usar a inteligência artificial de forma prática
e integrada para melhorar a vida das pessoas".
Mas a tecnologia, atualmente, está longe de ser
perfeita. Uma análise de tecnologia do portal CNET relatou que o software,
ocasionalmente, inseriu palavrões dispersos na tradução.
Mas estes deslizes ocorrem com frequência nos
primeiros modelos das novas tecnologias. E as falhas podem ser rapidamente
corrigidas quando o desenvolvedor publica atualizações, sem falar em todas as
outras marcas que, agora, irão trabalhar furiosamente para lançar ferramentas
similares.
Ainda assim, mesmo neste estágio inicial, a
tradução ao vivo no seu bolso poderá incentivar milhões de pessoas a viajar
mais e com mais frequência.
Uma pesquisa do fornecedor de cursos de idiomas
Preply, realizada em 2025, concluiu que um terço dos
norte-americanos pesquisados seleciona intencionalmente destinos onde eles não
terão problemas com um idioma estrangeiro.
Dentre os que se aventuraram a visitar países que
não falam inglês, cerca de 25% afirmam terem se comunicado simplesmente falando
"mais alto e lentamente", o que raramente gera uma recepção calorosa.
A pesquisa também observou que 17% dos
participantes, temendo o labirinto de um menu estrangeiro, se restringem às
redes americanas de fast food para as refeições no exterior.
Mas a tradução instantânea poderá fazer mais do que
ajudar os indivíduos a mergulhar em novas culturas e iniciar conversas.
Ela poderá renovar setores inteiros da economia,
levando as pessoas além das cadeias familiares e das armadilhas para os
turistas, canalizando renda para pequenos fornecedores locais, cujo domínio do
inglês é imperfeito.
A executiva de serviços financeiros Gracie Teh conta
a dificuldade que enfrentou para encaminhar sua bagagem para um novo hotel,
quando visitou uma minúscula cidade no Japão.
Apesar de não falar inglês, o concierge "se
recusou a usar o Google Tradutor ou ler o que estávamos
digitando nele", lamenta ela.
Teh relembra as horas que passou sem saber ao certo
se teria suas roupas disponíveis nos próximos dias.
"Conseguir entendê-lo em tempo real pela
tradução do AirPod teria sido uma boia de salvação", segundo ela.
Fluência na linha de frente
A tradução em tempo real também poderá ser de
enorme ajuda para os profissionais do setor de transporte.
O Aeroporto John F. Kennedy em Nova York, nos
Estados Unidos, emprega dezenas de milhares de profissionais de atendimento a
clientes. Eles atendem viajantes que falam dezenas de idiomas.
Uma única interação que saia dos trilhos devido às
barreiras de idioma pode criar um gargalo que irá paralisar o fluxo de
passageiros em outras partes. Este fenômeno é tão comum que tem uma expressão
para defini-lo: propagação de atrasos.
Estudos demonstraram que uma retenção de
uma hora em um único voo de uma companhia aérea de manhã pode rapidamente
resultar em um atraso de sete horas em toda a sua frota, devido ao efeito
dominó do atraso das suas conexões.
Outra pesquisa indica que o orçamento dos
aeroportos menores, mesmo reconhecendo a necessidade de funcionários
multilíngues em terra, simplesmente não é suficiente para oferecer o ensino
formal de idiomas.
Isso pode fazer com que os funcionários pratiquem
seu inglês ouvindo músicas no idioma ou assistindo a filmes com legendas.
Durante o voo, os riscos são ainda maiores.
Diversos acidentes fatais já foram relacionados a mal-entendidos entre o
controle de tráfego aéreo e os pilotos.
O que pode ser difícil de entender no dia a dia,
como um forte sotaque ou uma gíria estranha, passa a ser mortal quando o
assunto são vetores de voo e a pista de aterrissagem correta.
Às vezes, as confusões chegam a ocorrer até mesmo
entre duas pessoas que falam o mesmo idioma.
Um estudo indica que, "em dois relatos,
um sotaque do sul dos Estados Unidos e outro de Nova York aumentaram a
dificuldade de compreensão das comunicações da aviação".
As traduções assistidas por inteligência artificial
poderão ajudar neste cenário, mas o treinamento humano provavelmente ainda será
necessário para fornecer às ferramentas de IA o diálogo mais claro para
trabalhar.
Vamos deixar de aprender idiomas?
Da mesma forma que as calculadoras reformularam
nosso relacionamento com a matemática, a tradução por IA poderá reduzir nossa
motivação para falar outras línguas.
Por isso, as empresas que oferecem cursos de
idiomas podem enfrentar dificuldades no futuro.
Ying Okuse é a fundadora da empresa Lingoinn,
que organiza estadias em residências que falam mandarim na China, Taiwan e
Singapura.
Ela conta que os tutores de IA já são populares
entre seus clientes. Mas ela considera que esta é uma tendência positiva que,
na verdade, poderá ampliar a demanda.
Para Okuse, "existe uma grande diferença entre
o que a IA pode oferecer e a experiência imersiva no mundo real de uma estadia
no exterior". Afinal, os aplicativos ainda não conseguem decodificar
indicações não verbais.
Seu italiano médio pode dizer muito com um
movimento desdenhoso do queixo, equivalente a dizer non me ne frega,
"não me importo", levantando as pálpebras ("tenha cuidado")
ou beijando a ponta dos dedos.
Já os britânicos e australianos costumam usar seus
mais fortes insultos como uma espécie de "cola social", para gerar
conexão com seus amigos próximos. Tudo isso exige experiência de campo para
apreciar.
"Este tipo de aprendizado vai além das telas",
explica Okuse. "O idioma, em última análise, é questão de conexão, de
entender as pessoas, a cultura e as emoções."
Bernardette Holmes é uma ativista que
promove o multilinguismo. Ela defende seus benefícios cognitivos.
Aprender um idioma, para ela, resulta em
"funcionamento executivo mais forte, maior controle da atenção, maior
flexibilidade cognitiva e memória funcional".
Ela destaca que a tradução em tempo real pela
tecnologia tem os seus usos, "mas não pode substituir a alegria de se
fazer entender em um novo idioma".
Tradução ao vivo nos AirPods
Disponível em contas da Apple fora da
União Europeia.
Idiomas atuais: inglês (britânico e
americano), francês, alemão, português (Brasil) e espanhol (Espanha).
(Fonte: BBC)
A serem lançados ainda este ano:
mandarim (simplificado e tradicional), japonês, coreano e italiano.
Funciona com AirPods Pro 2 e
posteriores, com traduções nos fones de ouvido e na tela.


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