Em 2024, os estados-membros da União Europeia (UE)
aprovaram a exportação de quase 122 mil toneladas de agrotóxicos cujo uso é
proibido em suas próprias fazendas. Isso representou um aumento de 50% na
comparação com as 81 mil toneladas notificadas em 2018.
Em números de produtos, 75 agrotóxicos proibidos
para proteger a saúde humana e o meio ambiente nos países europeus foram
notificados para exportação da UE em 2024. Isso é quase o dobro dos 41 produtos
exportados em 2018.
No total, as exportações de agrotóxicos proibidos
pela UE foram destinadas a 93 países diferentes no ano passado; 75% deles eram
países de baixa e média renda, onde as regulamentações são mais frágeis. Os
Estados Unidos são o maior importador, seguido pelo Brasil, o maior mercado mundial de agrotóxicos.
“Como a gente diz no Brasil, dois pesos e duas
medidas, que é isso: ‘o que para mim é proibido, mas eu exporto para vocês’.
Então, é claramente esse ‘dois pesos e duas medidas’ que a Europa tem adotado”,
afirma a pesquisadora Larissa Bombardi, autora
do livro Agrotóxicos e o colonialismo químico. Ela atribui o
aumento significativo da exportação desses produtos a um forte lobby exercido
pela indústria química nos países do bloco.
“A França foi o primeiro país a tomar a decisão de
proibir a produção, a estocagem e a exportação de substâncias proibidas aqui na
Europa. E, no fim, na prática, isso continua acontecendo. Mas o lobby das
indústrias foi enorme. Na França, durante o processo de decisão, as indústrias
foram massivamente contra esse projeto de lei. O argumento principal é a
justificativa econômica da Europa perder sua importância no cenário econômico
mundial. Então as indústrias fazem um lobby enorme”, relata Bombardi.
“Cada ano que eu acompanho, na verdade, a proporção
de agrotóxicos proibidos na União Europeia na lista dos dez mais vendidos no
Brasil, só aumenta”, segue a pesquisadora. “E isso me choca, porque antes eram
três, quando eu comecei a lidar com esses dados, cinco e agora sete dos dez
mais vendidos, são proibidos na União Europeia”, pontua.
Apenas promessas
Em outubro de 2020, a Comissão Europeia prometeu
“dar o exemplo” e pôr fim à exportação de agrotóxicos proibidos na União
Europeia (UE), como parte de uma nova estratégia para produtos químicos
apresentada como um pilar do “Pacto Verde Europeu”.
Alan Tygel, integrante
da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida,
embora a Europa tenha sido uma espécie de “horizonte civilizatório”, ao impor
restrições a substâncias químicas nocivas, nos últimos anos, sobretudo pelo
avanço da direita e extrema direita em vários países, o perfil colonial dos
países europeus tem predominado.
“Esse aumento na exportação de agrotóxicos banidos
da União Europeia para o Brasil, e para outros países do Sul Global não provoca
um grande espanto, porque a gente que acompanha o dia a dia da política, vem
percebendo o avanço da direita, o avanço da extrema direita, e a Europa
mostrando a sua verdadeira face, que é a face da pilhagem do lucro a qualquer
custo, em cima das vidas e dos territórios do Sul Global e, em especial, do
Brasil”, destaca.
Tygel lembra que, historicamente, o registro de
agrotóxicos no Brasil obedecia a uma análise tripartite, que envolvia o
Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama), a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) e o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa). No entanto,
mudanças legislativas foram enfraquecendo o papel das agências reguladores e
dando poderes a mais ao Mapa, dominado pelo lobby do agronegócio. Essa situação
tem resultado em um aumento gradativo da liberação dessas substâncias, ainda
que um setor do governo defenda abertamente o banimento dos banidos.
“Se a gente olha os dados de 20 anos atrás, só
aumenta o uso de agrotóxicos, aumenta a área plantada com agrotóxicos, aumenta
o faturamento da indústria de agrotóxicos, que é um faturamento pornográfico.
Não há nada na economia brasileira que cresça 8% ao ano nos últimos 20 anos
constantemente. Nada, nem inflação, nem PIB, nem lucro de banco, nada. É só o
mercado de agrotóxico que cresce nessa taxa”, ressalta.
Mediocridade colonial
Segundo Diego Moreira, da direção nacional do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a posição dos países
europeus revela uma postura “medíocre” dos países centrais e a submissão dos
países em desenvolvimento a essa lógica neocolonial.
“Nós estamos envenenando o nosso solo, envenenando
a nossa água, envenenando a nossa população. A custo do quê? A custo de lucros
que vão atender alguns egos e engordar algumas contas de algumas pessoas por
aí”, disse o dirigente.
“Além dessa postura medíocre dos países centrais,
dos países neocolonialistas”, seguiu Moreira. “Tem uma postura muito mais
medíocre da elite, da burguesia brasileira que se presta a esse papel em
relação à sua soberania e ao seu povo. Então, é muito importante que nós
possamos continuar fazendo essa conscientização do povo brasileiro e que nós
possamos virar as costas para isso o mais breve possível. Não aceitar mais o
papel de ser a espécie de aterro sanitário, de ser uma espécie de lixão dos
países coloniais aqui no Brasil”, completou.
Colonialismo químico
Estudiosa do tema, Larissa Bombardi lembra que o
pensamento colonial tem raízes históricas que relacionam o Brasil e a
Europa.
“A gente ocupa um lugar historicamente subordinado
que tem a ver com a nossa formação socioterritorial, e que é uma história do
colonialismo. Quer dizer, a gente não entende essa atitude colonialista da
Europa de continuar exportando essas substâncias se a gente não entender
justamente porque a gente continua aceitando. E a gente continua aceitando
porque justamente a colonialidade continua marcando a nossa formação
socioterritorial”, destaca.
Para Bombardi, há uma tríade perniciosa que explica
parte da história econômica do Brasil, e que segue vigente, guardadas as
devidas proporções.
“A colonialidade é essa característica dos países
da América Latina de terem se desenvolvido e se constituído enquanto países por
meio da escravização de seres humanos e por meio do controle absoluto da terra,
do genocídio, da expulsão dos povos originários. Então, eu diria que essa
tríade aí: a escravização dos seres humanos, o controle absoluto da terra por
uma elite branca e o genocídio, é a marca da nossa formação e não, ela não tá
no nosso passado”, afirma a pesquisadora.
Por outro lado, ela destaca a necessidade de
perseguir o objetivo de democratizar o acesso a terras, historicamente com
altos índices de concentração. “A gente, no Brasil, continua tendo essa marca
da extrema concentração fundiária em que 1% dos proprietários controla 50% das
terras e que acaba definindo como esse território vai ser ocupado”.
Com um imenso potencial agrícola e um histórico de
decisões equivocadas quanto ao projeto estratégico de produção agroalimentar, e
batendo recordes atrás de recordes no uso de agrotóxicos, Bombardi acredita que
o Brasil pode cumprir um papel fundamental na luta contra o colonialismo
químico.
“O papel do Brasil é acordar e dizer: ‘Não é isso
que a gente quer como nação. A gente quer outra coisa. A gente quer soberania e
segurança alimentar. Chega de ter esse lugar subordinado em tantas instâncias,
econômica, social. A gente quer um outro pacto social e civilizatório’”,
propõe.
Os venenos têm nome
As exportações de produtos banidos na União
Europeia ao Brasil chegaram a 14.643.565 kg/litro, e a lista de produtos é
enorme, entre os quais, Mancozebe, Atrazina, Cyanamide, Thiram, Thiamethoxam,
Cyproconazote, Dimethoate, Thiophanate-metyl e Propargite.
Os maiores volumes foram do Glufosinate, que
superou os 2 milhões kg/l, produzido na Alemanha; o Picoxystrobin, com 5
milhões kg/l, produzido na Bélgica, Espanha, França e Hungria; o Epoxiconazole,
com 2.472.000 kg/l, produzido na Alemanha; e o Fipronil, que teve 1.466.250
kg/l exportados ao Brasil, e é produzido na Alemanha, Dinamarca e França.
“A gente tem um quadro assustador em que justamente
essas substâncias são proibidas aqui na Europa, porque trazem muitos
malefícios”, alerta Larissa Bombardi, ressaltando algo que deveria ser — mas
não é — óbvio: “Essas substâncias elas são proibidas na União Europeia
justamente porque tem um efeito muito severo na saúde humana e também na saúde
ambiental.”
“Por exemplo, a Atrazina que está nessa lista e é
proibida na União Europeia, está associada a câncer de estômago, câncer de
próstata, câncer de tireoide, câncer de ovário, Mal de Parkinson,
infertilidade, baixa qualidade do sêmen, malformação fetal e danos às células
do fígado. O uso da Atrazina na Amazônia brasileira aumentou 575% nos últimos
dez anos, só para você ter uma ideia. E é uma substância que se dispersa
facilmente na água. Imagine essa substância na Amazônia brasileira? É disso que
a gente tá falando”, sublinha a pesquisadora.
Bombardi cita o exemplo dos agrotóxicos
neonicotinoides, altamente nocivos aos chamados insetos polinizadores,
essenciais para a conservação e reprodução da biodiversidade. “Desses, o Brasil
é o principal destino dos chamados neonicotinoides, que são substâncias
proibidas na União Europeia, justamente porque são substâncias que afetam os
insetos polinizadores. Então, há um risco enorme de perda de biodiversidade em
função da diminuição da polinização e mesmo perda de produção agrícola no
futuro em função da diminuição dos insetos polinizadores”, alerta.
E o Lula com isso?
Em setembro de 2024, durante reunião com os chefes
dos Três Poderes para discutir a emergência devido aos incêndios que se
alastraram pelo país, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
(PT) defendeu o “banimento dos banidos”.
“Não é possível que 80% dos agrotóxicos proibidos
na Alemanha possam ser vendidos aqui no Brasil, como se a gente fosse uma
republiqueta de bananas”, disse o presidente.
Alan Tygel lembra ainda que, em julho deste ano, os
movimentos socioambientais obtiveram uma vitória pontual, que foi o lançamento
do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), pelo
governo federal, após sucessivos adiamentos motivados pela pressão do
agronegócio e pela negativa do Mapa em aderir ao plano. O programa é articulado
no âmbito do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo) e da
Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo), e foi objeto de
disputa interna dentro do governo.
“Nós estamos agora cobrando e construindo o Pronara
que queremos. Que é construir zonas livres de agrotóxicos, que é acabar com a
pulverização aérea, que é uma fiscalização dos drones que hoje estão aí
passando veneno impunemente, que é acabar com a guerra química, o uso de
agrotóxicos para a expulsão de comunidades tradicionais, que é proteger as
comunidades indígenas que hoje, em muitos lugares, estão numa situação de
calamidade com relação aos agrotóxicos”, afirmou o ativista.
Para Bombardi, no momento em que o Brasil discute e
promove a defesa de sua soberania, e às vésperas de realizar uma Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30),
em Belém (PA), o debate sobre agrotóxicos deve ser colocado em pauta.
“Que a COP seja um lugar para a gente entender que
agrotóxico tem a ver com alteração climática, que a própria produção, a
produção industrial dos agrotóxicos, envolve um uso significativo de
combustível fóssil, que as substâncias que compõem os agrotóxicos também têm
essa origem. E acho que a COP é um momento incrível para a gente poder discutir
isso”, avalia.
O que dizem as autoridades?
O Brasil de Fato entrou
em contato com o Ministério do Meio Ambiente (MMA), Mapa, Ibama e com a Anvisa,
órgãos envolvidos no processo de autorização de uso de agrotóxicos no Brasil.
Apenas o MMA retornou à reportagem. Em nota,
afirmou que “acompanha os estudos e levantamentos sobre o tema” e que “mantém
posição clara quanto à necessidade de fortalecer o controle sobre substâncias
químicas com potencial nocivo e de promover modelos de produção agrícola
ambientalmente responsáveis e seguros para a saúde da população”.
O ministério menciona no comunicado uma série de
instrumentos internacionais, como a Aliança Global sobre Agrotóxicos
Altamente Perigosos (Highly Hazardous Pesticides Alliance)
e as convenções de Estocolmo, Roterdã e Basileia, das quais o Brasil é
signatário, “promovendo a adoção de medidas preventivas, restritivas e de
substituição de substâncias reconhecidas por seus efeitos tóxicos, persistentes
e bioacumulativos”.
Além disso, afirmou que o MMA atua “na formulação e
no fortalecimento de políticas públicas voltadas à redução do uso de
agrotóxicos altamente perigosos, como o Programa Nacional de Redução de
Agrotóxicos (Pronara) e a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica
(Pnapo)”.
O MMA afirmou ainda que o controle da entrada,
comercialização e uso de agrotóxicos no Brasil é exercido de forma
interinstitucional entre o Mapa, a Anvisa e o Ibama, conforme a Lei nº 14.785, de 27 de dezembro de 2023, e o Decreto nº
4.074, de 4 de janeiro de 2002.
Por outro lado, destacou que “a nova lei atribui ao
Mapa a competência pelo ato de registro”, reservando à Anvisa e ao Ibama a
análise de toxicologia e risco ambiental, “etapas indispensáveis e
intransferíveis para a proteção da saúde e do meio ambiente”.
Reavaliação
O Ministério do Meio Ambiente afirmou ainda que a
“legislação brasileira prevê a reavaliação de agrotóxicos sempre que surgirem
evidências científicas de riscos à saúde humana ou ao meio ambiente”.
“O Ibama, conforme a Portaria nº 84/1996, realiza a
reavaliação ambiental dos produtos com base em parâmetros como persistência,
bioacumulação, toxicidade para organismos aquáticos e terrestres, transporte
ambiental, mutagenicidade e carcinogenicidade, classificando-os em quatro
classes de risco — de I (altamente perigoso) a IV (pouco perigoso). A Anvisa
conduz as reavaliações toxicológicas de acordo com a RDC nº 294/2019,
observando critérios internacionais do Sistema Globalmente Harmonizado de
Classificação e Rotulagem de Produtos Químicos (GHS). A agência pode restringir
ou proibir ingredientes ativos que apresentem risco inaceitável à saúde
humana”, explicou o ministério.
Por fim, a nota afirma que as reavaliações “seguem
padrões técnicos reconhecidos pela Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura (FAO), pela Organização Mundial da Saúde (OMS),
pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pela
Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA)”.
“O MMA defende o fortalecimento desses mecanismos,
garantindo que a ciência continue orientando as decisões regulatórias e a
proteção ambiental”, finaliza.
O espaço segue aberto às manifestações dos outros
órgãos procurados.
(Brasil de Fato)
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