Decreto autoriza
compra de armas que eram proibidas para civis, entre elas, revólveres e
pistolas que podem romper coletes e blindagens; especialistas se dividem sobre
possível efeito de decreto - se influenciará ou não perfil de armas no mercado
ilegal.
Ao ampliar, por meio de decreto, o rol das
armas de uso permitido a civis, o presidente Jair Bolsonaro liberou acesso a
calibres que podem ameaçar até mesmo blindagens do nível mais resistente, o
III-A, adotado, por exemplo, em coletes balísticos e nos carros que transportam
o presidente.
Especialistas em materiais de proteção e policiais
ouvidos pela BBC explicam que coletes balísticos e blindagem de veículos têm a
função de proteger momentaneamente eventuais vítimas, até que elas possam fugir
da situação de risco, mas não garantem que não haverá perfuração. Isso
dependerá do número de tiros, da distância e do ângulo do disparo.
Eles dizem que uma blindagem de nível III-A tende a
resistir a tiros de armas autorizadas pelo decreto, mas pode, eventualmente,
romper.
No caso dos coletes balísticos, quanto maior
a potência do tiro, maior será o impacto no corpo do policial. Mesmo que o
colete não se rompa, pode haver consequências para a saúde do policial.
O decreto exige que sejam apresentadas provas
de que o solicitante da arma não tenha antecedentes criminais. No entanto,
segundo Bruno Langeani, do Instituto Sou da Paz, o mercado legal de armas
influencia o perfil de armas que circulam no mercado ilegal. Por isso, diz ele,
há um risco maior para policiais que atuam na linha de frente de ocorrências
criminais.
Uma análise feita pelo instituto do perfil de
armas apreendidas em 2014 pelos governos da região Sudeste do país mostrou que
cerca de 70% das armas apreendidas são de calibres permitidos.
"O tipo da arma do mercado legal
interfere no mercado ilegal. Não por acaso o revólver 38 é campeão das
apreensões há décadas", diz o pesquisador.
O que permite o decreto - O decreto autorizou a venda para civis de armas que, até
então, só podiam ser usadas por forças de segurança - as chamadas armas de uso
restrito. A potência das armas permitidas, que antes era de 407 joules (medida
de energia cinética) - um revólver de calibre 38, por exemplo -, aumenta em 4
vezes, para até 1.620 joules. Entre armas dessa potência estão, em tese,
pistolas 9mm, .44 Magnum, .40, .45 e .357 Magnum.
Nesse grupo estaria também o fuzil T4, calibre 556, de
fabricação nacional. No entanto, o governo recuou da liberação dessa arma,
assim como de carabinas e espingardas, e determinou que o Exército defina quais
serão ou não autorizadas.
Colecionadores, caçadores e atiradores continuam podendo
comprar armas de uso restrito, inclusive fuzis.
O decreto está sob questionamento em duas frentes: pode
acabar sendo suspenso total ou parcialmente pelo Supremo Tribunal Federal
(STF), ou ser derrubado pelo Congresso Nacional, que também tem instrumentos
legais para fazê-lo.
A Comissão de Constituição e Justiça do Senado derrubou o
decreto, na última quarta-feira, e a matéria deve ser votada nesta terça pelo
Senado; se o parecer da Comissão for aprovado, será enviado para a Câmara dos
Deputados.
Ameaça para policiais - Em 2017, 367
policiais foram assassinados no Brasil, segundo dados do Fórum Brasileiro de
Segurança Pública. Desses, 67 morreram em serviço. Os Estados com maior número
absoluto desse tipo de morte foram Rio de Janeiro (27), São Paulo (11) e Pará
(11). Rio e Pará tiveram as mais altas taxas de morte de policiais nessas
circunstâncias (0,6 a cada 100 mil, respectivamente).
A BBC News Brasil procurou os governos dos
três Estados para saber como suas forças de segurança estão se preparando para
uma realidade em que civis possam ter armas de calibre até então restrito.
A Secretaria de Segurança de São Paulo não respondeu
oficialmente. Editais da Polícia Militar mostram que a corporação compra
coletes de proteção nível III-A.
O vice-presidente institucional da Associação de Oficiais
da Polícia Militar de São Paulo, coronel Glauco Silva de Carvalho, diz que a
corporação também adota o nível II-A, de resistência inferior.
"Estaríamos armando um determinado segmento da
população que pode ser pacífica, mas que pode vir a ser furtada ou roubada e as
armas vão parar na mão da criminalidade", diz ele.
Para crimes comuns, como furtos e roubos simples,
criminosos costumam usam pistola ou revólver, afirma o coronel. Já em crimes
mais complexos, como roubos a banco, joalheria, carro-forte, são comuns armas
de longo alcance, como fuzis.
"Se um infrator roubar uma arma de longo alcance, o
que é vislumbrado pelo decreto, até em roubos 'simples' o indivíduo estaria
portando um fuzil, algo que hoje não é comum em São Paulo", diz o coronel.
Carvalho afirma que a probabilidade de rompimento do
colete não é alta, pois é pouco provável que o criminoso consiga acertar tantos
tiros numa ocorrência policial, que costuma ser dinâmica. Ainda assim, diz ele,
um disparo de uma arma mais potente pode causar danos à saúde do policial,
inclusive quebrar sua costela.
Ele lembra que o colete também pode atingir partes do
corpo não cobertas pelo colete. "Houve um caso de um policial que foi
atingido debaixo do braço por um tiro de revólver. A bala se alojou no coração
e ele morreu", conta o coronel.
O coronel diz ainda que as polícias brasileiras não têm
aparato para conter abusos no uso de armas. "Como vamos reprimir esse uso
indevido? Os Estados Unidos têm um setor só para armamentos e explosivos. Não
temos algo semelhante. Temos uma Polícia Federal eficiente, mas num número
pequeno para o tamanho do país."
O governo do Pará não respondeu aos
questionamentos da BBC News Brasil.
O Rio de Janeiro vive uma situação
particular, pois costuma registrar recordes de apreensão de fuzis, aos quais um
colete de nível III-A não resistiria, mas um de nível III pode, em tese.
A Polícia Militar não quis comentar oficialmente, dizendo
que dados relativos a aquisição de equipamentos, armamento e munições são
considerados reservados.
No entanto, se forem tomados como base editais de compra
de equipamentos feitos pelo Gabinete de Intervenção Federal durante o período
em que o Rio estava sob intervenção federal, há pedidos de compra de coletes
balísticos de níveis III e III-A.
O coronel Fábio Cajueiro, presidente da Comissão da
Análise da Vitimização Policial da Polícia do Rio, minimiza o efeito do decreto
sobre a segurança dos policiais, argumentando que armas não disponíveis a civis
já circulavam no Rio mesmo antes do dele.
"No Rio, somos atingidos por armas de calibres não
permitidos, como fuzis, que não são vendidos no mercado nacional. Os
autorizados praticamente não há", diz ele. Ele diz não acreditar em
estudos que apontam a relação entre mercado legal e ilegal.
O coronel afirma que, atualmente, os policiais fazem
patrulhas usando coletes de nível III-A com placas de redução de impacto que
podem resistir a um tiro de fuzil.
Ele diz que esses equipamentos servem para proteger
momentaneamente contra ataques, mas não impedem totalmente que tiros atinjam o
agente. "Mesmo se a bala não perfurar o colete, o policial pode até morrer
devido ao impacto", diz ele.
Blindagem de veículos - Um decreto de 2000
que discorre sobre a regulação das blindagens informa sobre o limite de joules
de cada nível de proteção. O nível III-A, o mais resistente disponível a civis,
resiste a até 1.411 joules, portanto suportaria tiros até de uma 9mm ou .44 Magnum.
No entanto, se diversos tiros forem dados num espaço restrito e a curta
distância, o material pode se romper.
O vice-presidente da Associação Brasileira de
Normas Técnicas, que desenvolve as normas para a concessão de certificados de
blindagem dada pelo Exército, Mario William Esper, explica que, a partir de
cinco tiros num espaço de 20,5 cm, é possível que o material se rompa.
"O acesso indiscriminado a esse tipo de armas é algo
ao que a norma tem que estar atenta. Estamos atualizando elas agora no sentido
de deixá-la mais rigorosa e o decreto só reforça nossa preocupação com
isso", diz Esper.
Deusdete Pereira, da Target Blindagem, empresa que blinda
automóveis, explica que, na prática, não é comum que tantos tiros sejam dados
num espaço tão restrito. "Aleatoriamente, ele pode suportar mais do que
isso, mas quanto mais tiro o material vai tomando, mais vai quebrando a
resistência. Se você der vários tiros no mesmo local, ele vai perfurar. O
blindado é uma célula de segurança por alguns minutos. É difícil que um bandido
atire um tiro em cima do outro, e se houver uma abordagem, o carro vai se
mover, mas se (o bandido) conseguir, alguma hora vai transfixar o vidro. Não
existe segurança 100%, a não ser que você esteja dentro de um tanque de
guerra", diz Pereira.
Esper, da ABNT, diz que uma série de fatores determinam
se a bala perfurará ou não o material, como a distância, o número de tiros e o
ângulo.
Um edital para a aquisição de veículos oficiais para o
Departamento de Segurança Presidencial de novembro de 2018 determina que os
veículos tenham blindagem de nível III-A. O mesmo vale para a locação de carros
para o presidente.
A Presidência foi procurada pela BBC News Brasil duas
vezes na última semana, mas não se pronunciou.
O nível III-A é o mais resistente de uso permitido para
civis e é também um dos mais procurados no mercado.
Segundo o Exército, que autoriza a blindagem de veículos,
um civil pode solicitar blindagem de uso restrito, que começam no nível III,
desde que não ultrapasse esse nível e a pessoa apresente justificativa que
comprove a necessidade. (BBC)
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