A emergência provocada pelo
coronavírus e a reação de governantes como Donald Trump e Jair Bolsonaro — em
geral, mais cética às evidências científicas e, no caso do brasileiro, reativa
às orientações de isolamento social da população e minimizando o poder
destrutivo do vírus — podem enfraquecer modelos populistas nos EUA e no Brasil,
opina o acadêmico Yascha Mounk, pesquisador das crises vividas pelas
democracias liberais e do populismo, estrutura política da qual é crítico
contumaz.
O alemão Mounk é também professor associado de Prática de
Assuntos Internacionais na Universidade Johns Hopkins, nos EUA, e autor de
livros como O povo contra a democracia - por que nossa liberdade corre perigo
e como salvá-la.
Em entrevista à BBC News Brasil, ele opina que a pandemia
pode fazer sociedades "aprenderem lições difíeis de serem aprendidas em
tempos normais" a respeito dos impactos do desdém de governos populistas à
ciência e a instituições democráticas. Em contrapartida, diz ele, o atual momento
pode também fortalecer alguns governos populistas de tendências autoritárias,
como tem acontecido na Hungria.
"Eu acho que vai haver uma mistura desses dois
cenários — em países onde o populismo está mais entrincheirado, essa é a
oportunidade de criar ditaduras que vão ser difíceis de desmontar."
BBC News Brasil - Até agora, qual acha que foi
o impacto da pandemia em democracias ao redor do mundo?
Yascha
Mounk - É importante dizer que o primeiro
impacto tem sido na vida dos cidadãos, mais do que no sistema político. Este
(momento) é o maior perigo à saúde e à segurança das pessoas, certamente nas
democracias desenvolvidas, que vemos em muito tempo.
Ainda é cedo para dizer se vamos limitar as fatalidades
por essa doença a um nível tolerável ou se teremos milhões de mortos ao redor
do mundo. E essa é a pergunta mais importante.
Mas óbvio que, em tempos em que a democracia está sob
ataque em muitos países, tem uma segunda pergunta muito importante: o que isto
fará com nossos sistemas políticos?
O que vemos, até agora, em alguns
dos países onde ditadores estavam já bem entrincheirados, (a pandemia) lhes deu
uma desculpa e uma oportunidade de destruir instituições democráticas mais
rapidamente e amplamente do que poderiam ter feito em outras circunstâncias.
A Hungria é o exemplo mais
extremo disso. (O premiê) Viktor Orbán rapidamente usou a crise como desculpa
para essencialmente abolir o Parlamento e a liberdade de expressão no país.
Também há desdobramentos preocupantes em países como as Filipinas (onde o
Congresso recentemente aprovou leis que dão mais poderes ao presidente Rodrigo
Duterte), mostrando que o mesmo pode acontecer em outros países.
BBC
News Brasil - As democracias têm se mostrado capazes de lidar com uma crise
desta dimensão e com os dilemas de isolar as pessoas? Tem sido dito que a
China, com um regime autoritário, conseguiu fazer o isolamento das pessoas mais
rapidamente.
Mounk
- Também ainda é muito cedo para falar
qual regime político vai se mostrar mais eficiente. Até agora, vimos que
virtualmente todos os países e todos os regimes fracassaram em lidar com a
doença adequadamente. É enfurecedor mas, se tratando de uma epidemia diferente
de tudo o que vimos nos últimos cem anos, talvez tampouco seja motivo de
surpresa.
Quando olhamos para ditaduras, o histórico é misto. Veja
o Irã, onde (a situação) é terrível, com sua falta de liberdade de expressão e
com a falta de resposta (à pandemia) para sua população. A própria China, que
lidou com o vírus de forma bastante impressionante sob alguns aspectos, também
carrega uma grande culpa pela pandemia global por suas falhas em como respondeu
no início da crise.
As democracias não estão se cobrindo de glória, mas ainda
é cedo para saber se se sairão piores no longo prazo.
Mas acho que a questão é: é tentador pensar que as
democracias, por suas regras rígidas, são incapazes de colocar limitações na
população, que são incapazes de lidar com a pandemia. E países como a Coreia do
Sul provam que isso está errado.
É uma democracia que conseguiu responder de modo ágil às
demandas da pandemia. E vemos alguns países seguir o mesmo receituário.
Nada sobre a natureza da
democracia pode nos impedir de ter uma resposta enérgica ao vírus e, dado o
perigo à vida de tantas pessoas, devemos estar dispostos a fazer sacrifícios
temporários no modo como vivemos.
O importante é que todas as medidas tomadas sigam três
precondições rígidas: 1) sejam temporárias e reautorizadas em curtos períodos
de tempo; 2) sejam sujeitas ao controle democrático e judiciário, para que,
caso o presidente ou premiê diga 'quero manter esses poderes por mais tempo',
haja um mecanismo de controle que o impeça; 3) sejam precisamente customizadas
para a salvação das vidas.
O que Orbán está fazendo na Hungria não cumpre com nenhum
desses requisitos - prender as pessoas pelo que elas falam nas redes sociais ou
abolir o Parlamento não são medidas necessárias para salvar vidas.
BBC
News Brasil - E quanto a outros governos ditos populistas? Trump mudou bastante
seu discurso, enquanto no Brasil Jair Bolsonaro aparentemente se isola
criticando o isolamento social. Qual acha que será o efeito da pandemia sobre o
populismo?
Mounk
- Há uma possibilidade otimista. Os
críticos do populismo sempre advertiram do perigo para a vida dos cidadãos de
que se você fere as instituições democráticas e desdenha os especialistas, no
fim das contas as pessoas pagarão por isso. Em tempos normais, essa é uma lição
difícil de ser aprendida. Nos EUA, muitos americanos poderiam dizer, 'minha
vida está indo muito bem, não sinto o impacto disso (erosão das instituições)
na minha vida'. Isso porque o Estado é uma máquina bem azeitada, que consegue
seguir normalmente mesmo quando sob ataque ou sob lideranças incompetentes.
Em um momento de crise, todos esses defeitos ficam mais
dolorosamente evidentes. A ausência de liderança, a desconfiança dos
especialistas e inabilidade de coordenação custam vidas americanas, e talvez
custem mais vidas brasileiras nos próximos meses.
Nisso, a possibilidade otimista é que as pessoas
reconhecem o dano disso e se rebelem contra o populismo.
A possibilidade pessimista é de que as pessoas se alinhem
a suas bandeiras e seus governos, mesmo que ele seja incompetente. E de que a
ideia de que o mundo é um lugar perigoso e de que precisamos de restrições às
viagens e a pessoas de fora e de que precisamos de um líder forte pode ter mais
apelo em tempos perigosos, do que em tempos menos perigosos. Isso favoreceria o
populismo.
Eu acho que vai haver uma mistura desses dois cenários —
em países onde o populismo está mais entrincheirado, essa é a oportunidade de
criar ditaduras que vão ser difíceis de desmontar.
Mas acho que na maioria dos países, a perda de vida que
estamos experimentando e as dificuldades econômicas à frente vão favorecer a
oposição. Em lugares como os EUA ou o Brasil, acho que o populismo ficará
enfraquecido, porque as pessoas vão culpá-los (governos) pelas dificuldades que
virão.Talvez em países como a França, onde populistas são a oposição, (a crise)
pode ajudá-los a ascender ao poder.
Yascha Mounk pesquisa democracias liberais e populismo
BBC
News Brasil - No Brasil, então, você acha que pode enfraquecer o populismo.
Mounk
- Como diria Churchill (líder
britânico durante a Segunda Guerra), ainda estamos no fim do começo, mais do
que no começo do fim. Então vai depender de muitos fatores políticos, inclusive
se Jair Bolsonaro vai finalmente fazer a coisa certa (em promover o isolamento
social) e proteger os brasileiros da doença. Dado o fato de como ele tem negado
a realidade e sido incompetente em sua resposta, e quantos brasileiros podem
sofrer por causa disso, ele ficará mais enfraquecido.
BBC
News Brasil - Tanto Twitter quanto Facebook apagaram postagens de Bolsonaro por
contradizerem os critérios estabelecidos para fatos científicos. As redes
sociais são uma importante ferramenta da estratégia política do presidente.
Acha que isso mudará como ele se relacionará com sua base?
Mounk
- Não, acho que ele continuará a manter
seu contato vias redes sociais, e não está clara para mim a sabedoria (das
redes sociais) em apagar essas postagens. Acho que há algumas pessoas que, pela
importância do cargo político que ocupam, devem ter sua presença nas redes
sociais tolerada, mesmo que eles digam coisas que são erradas ou mentirosas. E
duvido que apagar os posts limite o alcance de sua mensagem — porque, é claro,
todos imediatamente escrevem reportagens a respeito e sobre o fato de que as postagens
foram apagados, e assim a mensagem alcança um número maior de pessoas.
Acho que o único jeito de combater palavras é com
palavras melhores.
Felizmente, estamos em um cenário em que a mentira de que
esta doença não é particularmente perigosa, de que é só uma gripe, vai ser
desmentida perante nossos olhos, inclusive nas ruas do Brasil.
da repulsa de que um presidente que jurou
proteger seu povo esteja fracassando em fazê-lo. (Mas) a solução para isso é
críticas, protestos, eleições, e não censurar as palavras de um presidente.
BBC
News Brasil - Falando sobre eleições, é discutida a possibilidade de se adiar
eleições tanto nos EUA quanto no Brasil. Qual acha que seria o impacto disso?
Há quem diga que o impacto seria enorme para as democracias.
Mounk
- A extensão da polarização e a extensão
da desconfiança que a oposição corretamente tem a respeito de governos, da
Polônia ao Brasil e aos EUA, limita as opções.
Em tempos menos polarizados,
poderia-se imaginar, em governos sem ambições autocráticas, que as pessoas
tolerariam o adiamento de eleições por motivos extraordinários de saúde
pública.
Quando temos presidentes e
premiês que sistematicamente minaram instituições públicas e expressaram desdém
pelo sistema democrático, é difícil para a oposição (...) aceitar o adiamento
de pleitos. Então acho que é certo que haverá eleições nos EUA em novembro, mas
o que precisa ser feito agora é colocar em marcha as condições para que elas
ocorram de modo seguro - disponibilizar o voto postal em todos os lugares,
buscar formas de voto online. De modo que se a emergência de saúde pública
persistir, teremos eleições de modo legítimo.
BBC
News Brasil - Nesse sentido, podemos ver novas formas de colocar a democracia
em ação? Você mencionou o voto online. Tampouco pode-se protestar agora. Podem
novas formas de relacionamento com governos emergir?
Mounk
- Não acho que serão inteiramente novos.
Muitos Estados (americanos) já têm a habilidade de votar por correio. Já há
muito ativismo online, em vez de pessoalmente. Mas acho que haverá uma
aceleração na mudança.
BBC
News Brasil - Acha que a ciência e o jornalismo profissional, que passavam por
momentos difíceis, vão ser vistos de forma diferente após esta pandemia?
Mounk
- Eu faria uma distinção entre a
ciência e o jornalismo neste caso em particular. Espero que isto faça as
pessoas levarem a ciência mais a sério e riscos invisíveis mais a sério. Fazia
anos que especialistas em saúde pública alertavam sobre vírus que passam de
animais para hospedeiros e para humanos e que quando tivéssemos azar, um deles
seria muito mortífero e para isso precisávamos de uma melhor infraestrutura de
saúde pública e mais dinheiro para monitoramento. E esses especialistas foram
amplamente ignorados, porque 'faz cem anos que não temos uma pandemia, por que
teríamos uma agora?'. E acabou que tivemos.
Há muitos desafios potencialmente fatais que têm a mesma
estrutura (que o coronavírus). Um exemplo que todos os que estudam isso sabem:
a crescente incidência de bactérias resistentes a antibióticos. Sabemos que
estamos ficando sem antibióticos e que a expectativa de vida seria
significativamente encurtada se não pudéssemos ir ao médico local sem ser
infectado por algum desses micro-organismos. E, no entanto, o dinheiro que
estamos investindo em novas drogas para isso é minúsculo.
Novamente, é bom deixar claro que
drogas antibacterianas não têm nada a ver com o corona, que é um vírus. Mas a
estrutura do problema é a mesma, e espero que, a partir da experiência com o
coronavírus, as pessoas digam 'precisamos ter cuidado também com outros
problemas de saúde pública que podem ser ainda mais desastrosos e causar ainda
mais mortes'.
Mas sou cético quanto a se a
crise vai aumentar a confiança no jornalismo profissional. Por enquanto, as
pesquisas nos EUA mostram aumento na confiança e gratidão a professores
escolares, profissionais da saúde e funcionários de supermercados, governadores
— mas não a jornalistas.
Acho que isso se deve parcialmente a uma exageração (de
críticos) às falhas do jornalismo, mas também parcialmente aos erros do jornalismo.
Alguns dos mais respeitados jornais e revistas estavam, em janeiro e fevereiro
e início de março, 'eis por que é irracional se preocupar demais com uma
pandemia e por que ela não vai afetar sua vida pessoalmente'. E eles estavam
errados. Não acho que os jornalistas devam estar celebrando agora.
Viktor Orbán, premiê da Hungria, aumentou os próprios poderes em meio à pandemia
BBC
News Brasil - Você acha que os perigos foram minimizados?
Mounk
- Há dois níveis de fracasso aqui, para
políticos e para o jornalismo. Há as pessoas que ativamente negaram a ciência e
estavam mais preocupados com suas próprias mensagens políticas do que com
salvar vidas e, como resultado, farão essa pandemia pior do que poderia ser.
Isso inclui gente como Trump e Bolsonaro e incluiu por muito tempo emissoras
como a FoxNews. Esse é o nível mais profundo de fracasso.
Mas há outro nível: de todos os líderes democráticos e
jornalistas que não são hostis à ciência que moveram mais rapidamente quando
perceberam a natureza (da crise), mas que demoraram demais a reconhecer que
isto não é igual à Sars, que não é igual a ameaças de outras doenças prévias, e
que medidas extraordinárias serão necessárias para resolver. E que também não
ficaram à altura de seus cargos.
BBC
News Brasil - Estamos vendo grandes gastos de governo em buscas por vacinas, em
renda adicional para seus cidadãos. Acha que mudarão as expectativas dos
cidadãos quanto a seus governos - por exemplo, de cidadãos americanos quanto à
saúde pública?
Mounk
- É provável que leve a mais
aumentos nos gastos de saúde pública em diferentes países. Nos EUA, espero que
leve à uma passagem para um sistema mais universal de saúde pública, além de
mais regulação (de licença de trabalho) para que pessoas doentes possam ficar
em casa e serem remuneradas.
Sem dúvida, individualmente cada
país viverá mudanças. Se isso levará a mudanças sistemáticas em como os
sistemas de saúde funcionam, eu ainda duvido.
BBC
News Brasil - De volta aos três sacrifícios que você recomendou para o momento
atual - que recomenda que sejam temporários, validados pela Justiça e adequados
à salvação de vidas -, acha que devemos aceitar que perderemos liberdades
individuais por conta da pandemia? Até qual limite isso é aceitável?
Mounk
- Estamos em uma situação
extraordinária em que você pode estar se sentindo perfeitamente bem, mas estar
infectada e, ao sair para um café, acabar infectando um grande número de
pessoas. E se todos nós fizermos isso, nossos hospitais ficarão sobrecarregados
em poucas semanas.
Acho que somos moralmente obrigados a fazer sacrifícios
neste momento, que não tem precedentes, pelo menos na minha existência. Nunca
foi o caso, durante a minha existência, em que uma saída para tomar um café
poderia resultar na morte de pessoas e na sobrecarga do sistema de saúde.
Felizmente, essa situação é temporária - vamos achar
drogas e vacinas eficientes contra o coronavírus. E, nesse momento, o cálculo
moral mudará.
A questão política é: até que extensão devemos tolerar
que o Estado imponha essas questões morais sobre nós? A minha resposta é que
isso nunca é fácil, é uma troca muito difícil. Mas enquanto as restrições do
Estado cumprirem esses requisitos - sujeitas ao controle democrático,
temporárias e plausíveis de que vão salvar muitas vidas -, devemos ao menos
considerá-las.
BBC
News Brasil - Sei que é difícil prever isso agora, mas o que acha que as
populações de países democráticos vão aprender com esta crise, na forma como se
relacionam com seus governos e entre si, como sociedade?
Mounk - Ainda é um pouco cedo para dizer. Dependerá de quão
competentes os governos se mostrarem - se conseguirem nos tirar desta sem
perdas de vidas em escala massiva, se protegerem indivíduos e empresas o
bastante de modo a nossas economias não colapsarem completamente, e se fizerem
isso sem (serem alvo de) protestos nas ruas ou grande distúrbios sociais,
talvez haja esperança de que a profunda desconfiança, polarização e o ódio
mútuo que caracterizaram tantos países nos últimos anos se dissipe e fiquemos
mais tolerantes e solidários. Mas isso é mais uma esperança do que uma
previsão.
BBC
News Brasil - Acadêmicos dizem que pandemias mudam sociedades profundamente.
Acha então que podemos sair desta menos polarizados?
Mounk
- Acho que vai variar de país para
país - alguns ficarão menos polarizados se governantes conseguirem ser
competentes e unificadores; em outros, podem polarizá-las ainda mais, porque o
governo será incompetente e divisivo. Infelizmente, do jeito como as coisas
andam, o Brasil parece estar na segunda categoria, em vez de na primeira.
BBC
News Brasil - É cedo para perguntar quais governantes ou instituições podem
sair da atual situação mais fortes ou mais fracos?
Mounk
- Estamos ainda nos momentos
preliminares. Acho que, após alguns tropeços iniciais, os políticos
democráticos no poder há algum tempo e que sabem usar o poder do Estado e
confiam nos especialistas parecem estar tomando as decisões corretas - seja o
governo da Coreia do Sul ou Angela Merkel na Alemanha e Emmanuel Macron na
França.
Até agora, sua reação se mostra mais favorável do que a
de Trump nos EUA, AMLO (André Manuel Lopez Obrador) no México e Bolsonaro no
Brasil.
(BBC)
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